quinta-feira, 19 de setembro de 2024

1832 – Publicação de «Da Guerra», de Clausewitz




O ge­neral prus­siano Carl von Clau­sewitz (1780-1831), para muitos «o mais pro­e­mi­nente es­tra­te­gista mi­litar e po­lí­tico da guerra li­mi­tada nos tempos mo­dernos», é uma fi­gura con­tro­versa que des­pertou o in­te­resse de per­so­na­li­dades tão dis­tintas como Lé­nine, Mao, Ei­se­nhower ou Henry Kis­singer. A sua obra-prima, Da Guerra (Vom Kriege, em alemão), es­tu­dada à época pelos mi­li­tares prus­si­anos, con­tinua a constar do pro­grama das aca­de­mias mi­li­tares dos EUA. Es­crito entre 1816 e 1830, o tra­tado sobre guerra e es­tra­tégia mi­litar ainda pro­voca po­lé­mica, sendo visto por uns como a favor da “guerra total”, e por ou­tros como en­si­nando a su­bor­dinar a guerra à po­lí­tica e aos con­flitos so­ciais. Equi­pa­rado a Tu­cí­dides, o ge­neral e his­to­ri­ador ate­ni­ense autor da ví­vida obra sobre a Guerra do Pe­lo­po­neso, Clau­sewitz tanto é apon­tado como a maior re­fe­rência his­tó­rica do pen­sa­mento es­tra­té­gico como acu­sado de ter aberto a porta às guerras to­tais do sé­culo XX. «A guerra é a mera con­ti­nu­ação da po­lí­tica por ou­tros meios», uma das frases mais fa­mosas do nosso tempo, é da sua au­toria. Ins­pi­rado no pen­sa­mento de Ma­qui­avel, Mon­tes­quieu, Kant e Fi­chte, Clau­sewitz ba­seia a sua obra, se­gundo al­guns ana­listas, num mé­todo se­me­lhante à di­a­léc­tica ló­gica de Hegel e Marx.

https://www.avante.pt/pt/2651/memoria/176998/1832-%E2%80%93-Publica%C3%A7%C3%A3o-de-%C2%ABDa-Guerra%C2%BB-de-Clausewitz.htm

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Amílcar Cabral ~ Morreu Lumumba, para que África viva!



* Amílcar Cabral

Fevereiro de 1961
Fonte: Buala.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

O original deste documento encontra-se nos arquivos de Amílcar Cabral na Casa Comum da Fundação Mário Soares em Lisboa, incluído no dossier intitulado Correspondência e documentos dactilografados assinados por Amílcar Cabral 1960. Encontra-se na pasta n.º 04616.076.024. A sua reprodução foi possível através da generosa autorização da Casa Comum / Fundação Mário Soares. A transcrição, onde se procedeu à correcção de gralhas e à actualização da ortografia sem jamais truncar o sentido do texto, é da responsabilidade da editora FALAS AFRIKANAS. O documento fac-similado encontra-se Falas Afrikanas.

Na tarde de 13 fevereiro de 1961, um comunicado proveniente do Katanga anunciou ao mundo a morte de PATRÍCIO LUMUMBA, primeiro ministro do Congo e dos seus companheiros de prisão, os ministros OKITO e M’POLO.

Esta notícia foi geralmente acolhida com espanto, horror e repulsa. Para a África que quer ser VERDADEIRAMENTE livre, é uma notícia de LUTO.

Nos dias seguintes, soube-se que, na realidade, LUMUMBA e seus companheiros tinham sido ASSASSINADOS pelos militares belgas havia já várias semanas, aquando da sua transferência da prisão de Thysville para o Katanga. Esta revelação veio ainda aumentar a indignação internacional.

As reacções a esse bárbaro e cobarde assassinato se fizeram imediatamente sentir, e continuam a manifestar-se no dia-a-dia: em quase todas as capitais e principais cidades do mundo as embaixadas da Bélgica e também as dos Estados Unidos foram atacadas pelo povo; diversas manifestações produzem-se todos os dias, não somente contra aqueles países mas também contra a Organização das Nações Unidas e principalmente contra o seu Secretário-Geral, Dag Hamarskjoeld, que é justamente acusado de principal responsável do assassinato de Lumumba e dos seus companheiros, como veremos mais adiante.

Na República da Guiné, o 14 de fevereiro foi decretado dia de luto nacional; após um meeting, o Governo tomou as seguintes decisões: 1.º: Mandar um enérgico telegrama às Nações Unidas, acusando essa Organização da responsabilidade desse odioso crime, e exigindo a imediata demissão do Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD; 2.º: Reconhecer o Governo do senhor Gizenga (sucessor legal de Lumumba), como único Governo legal do Congo, prometendo-lhe todo o seu apoio na sua luta para desembaraçar o Congo dos colonialistas e imperialistas; 3.º: Condecorar Patrício LUMUMBA, a título póstumo, com o grande cordão da Ordem da Fidelidade ao Povo (a Guiné já tinha agraciado LUMUMBA com o colar de COMPANHEIRO DA INDEPENDÊNCIA AFRICANA).


O Gana, o Mali, Marrocos, Indonésia, Cuba, Jugoslávia, Albânia, Polónia, Alemanha Oriental e a República Árabe Unida, também decretaram luto nacional, acusaram as Nações Unidas desse crime, exigiram a demissão de Hamarskjoeld, e reconheceram o Governo de GIZENGA, a quem estão dispostos a ajudar.

A União Soviética, não somente exigiu a demissão de Hamarskjoeld, mas declarou que, DESDE JÁ, deixava de o reconhecer como Secretário-Geral das Nações Unidas, e que vai ajudar a luta do Povo Congolês contra os imperialistas e seus lacaios.

Estamos certos que outros países que ainda não se pronunciaram, virão engrossar a lista de protesto contra esse bárbaro e selvagem assassinato.

Nenhuma dúvida subsiste em como o assassinato de Patrício LUMUMBA foi friamente tramado pelos imperialistas com a cumplicidade das Nações Unidas e do seu Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD, cuja atitude desde o início da questão congolesa foi mais que suspeita e por várias severamente criticado.

A opinião internacional está cada vez mais revoltada contra esse odioso assassinato, e é ainda muito cedo para prever as consequências de um tal barbarismo.

Mas, porque foi friamente tramado e executado esse bárbaro assassinato?

Porque quando o Colonialismo é forçado a retirar, ele deixa em seu lugar o neocolonialismo e o Imperialismo, tanto ou mais perigosos que o primeiro.

Porque no Congo os imperialistas tinham os seus dias contados enquanto vivesse Lumumba.

Porque LUMUMBA era um verdadeiro AFRICANO que não se deixava COMPRAR ou ser comandado pelos imperialistas.

Porque LUMUMBA era um patriota que lutava pela unidade dos povos do Congo e uma verdadeira INDEPENDÊNCIA DO SEU PAÍS.

Porque LUMUMBA lutava por um CONGO LIVRE, no seio de uma ÁFRICA LIVRE, sem obediência a quaisquer estrangeiros.

Porque LUMUMBA nunca cedeu às manobras dos imperialistas.

Porque LUMUMBA teve a coragem de lhes dizer publicamente: COLONIALISTAS E IMPERIALISTAS, FORA DE ÁFRICA! BASTA DE EXPLORAÇÃO DAS NOSSAS TERRAS!

Porque LUMUMBA foi sempre FIEL AO POVO que confiava nele, como o único que os poderia libertar do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo.

Há 80 anos que o Congo, um país de 1.500.000 quilómetros quadrados (como França, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal e Bélgica reunidos), com uma população de 14 milhões de habitantes, foi ocupado pelos belgas, um minúsculo povo europeu que, como todos os outros colonialistas, arrogaram-se da sagrada missão de trazer a África os “benefícios” dessa famosa civilização que ninguém encomendou, e que de resto não “espalharam”; como também todos os outros colonialistas, o que lhes interessava eram as imensas riquezas desse enorme país, cheio de recursos, terra de promissão para os famélicos belgas e fonte de receita para a insignificante Bélgica. Por isso, eles fizeram tudo para não perder o Congo, que nunca contavam abandonar (nem daqui a cinquenta anos)!

Para tal, o objectivo número um consistia em manter o povo na ignorância o mais longamente possível, o que se resume na célebre frase do General Janssens: “SEM ELITES, NÃO HÁ ABORRECIMENTOS”. E isso foi levado a cabo de tal maneira que hoje, após OITENTA ANOS da “presença civilizadora” dos belgas, somente seis congoleses obtiveram um diploma universitário, e isto à custa d’enormes sacrifícios das suas famílias. Apenas uns milhares sabem “ler e escrever”.

Essa revoltante política de ignorantismo e escravidão foi confiada às várias missões religiosas, subvencionadas pelos Belgas, que desempenharam com afinco a sua missão. Segundo as numerosas brochuras publicadas pelas missões, o catecismo dos congoleses, que eram tratados como “crianças crescidas”, consistia unicamente no RESPEITO E SUBMISSÃO AO BRANCO. Numa delas lê-se: O CONGOLÊS DEVE PREFERIR O CHICOTE DOS BELGAS À FOICE COMUNISTA. (Como se sabe, hoje em dia quando um povo aspira à sua liberdade é imediatamente acusado pelos colonialistas de “comunista” ou então dirigido por “comunistas”, pagos por Moscovo, como se nenhum povo quer ser livre sem ser comunista. Mas isto é já conversa fiada…).

Na já conhecida política de “dividir para reinar”, os colonialistas belgas atiçavam as rivalidades tribais, fomentando sangrentas lutas fratricidas entre as diversas raças do Congo.

E enquanto os congoleses se matavam entre eles, na miséria, na ignorância, na fome, e na escravidão, “sob o chicote dos Belgas”, esses novos “donos” da terra, com os seus amigos imperialistas esgotavam as riquezas do país, enriqueciam-se sem o menor esforço enquanto o povo morria de fome. O Congo pertencia aos grandes “trusts” internacionais. Só um banco, a “Sociedade Geral” possuía CINQUENTA empresas, entre as quais TRÊS companhias de Caminho-de-ferro!

Trinta mil Belgas ganhavam mais do que UM MILHÃO de Africanos!

Nunca uma “Colónia” rendeu tanto!

Foi então que apareceu PATRÍCIO LUMUMBA.

Filho do povo que sofreu todas as misérias e opressões do regime colonialista, esse originário de uma das menos importantes tribos do Congo, os Batetelàs, Patrício LUMUMBA conseguiu elevar-se entre os seus compatriotas pela sua firmeza de carácter, sua incorruptibilidade, sua decisão firme e inabalável de UNIR OS CONGOLESES e LIQUIDAR O COLONIALISMO.

Em 1958, numa época de plena euforia colonialista belga, época em que no Congo só existiam “associações” tribais ou regionalistas consentidas pelos colonialistas e que pelas suas rivalidades e lutas constantes enfraqueciam o país e só favoreciam os colonialistas, nesse ano, Patrício LUMUMBA formou o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS, verdadeira organização política, sem distinções de raças, origens ou religiões, que tinha como principal objectivo a UNIDADE do país e a LUTA pela sua Independência.

Em menos de dois anos, apesar das repressões colonialistas e dos ataques das “associações” raciais e regionalistas, o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS tornou-se a maior organização política do país, e a única que lutava ferozmente pela independência do Congo. E a sua luta ininterrupta foi tão renhida e tão bem dirigida que em princípios de 1960, os Belgas, que não esperavam largar o Congo nem daqui a cinquenta anos, manifestaram a sua intenção de negociar uma “autonomia”, que foi aceite pelos outros partidos. Mas imediatamente viu-se que nada se poderia levar a efeito no Congo sem o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS. Então LUMUMBA, que se encontrava encarcerado, foi libertado e conduzido a Bruxelas para fazer parte da “mesa redonda”, onde se negociava o futuro do Congo.

Durante essas negociações, os belgas disseram: vocês não sabem nada, não estão preparados, de maneira que devem contentar-se com uma pequena liberdade, uma semi-autonomia sob a nossa protecção. LUMUMBA respondeu aos Belgas: NÓS QUEREMOS A NOSSA INDEPENDÊNCIA! NÃO QUEREMOS MAIS FICAR SOB A DOMINAÇÃO ESTRANGEIRA!

E perante essa atitude inabalável e intransigente de Lumumba, os Belgas tiveram que ceder. Mas cederam na intenção de continuar na mesma a explorar o Congo como dantes por meio de acordos, tratados, etc., pois ainda consideravam os africanos como “crianças crescidas” que eles poderiam facilmente continuar a dirigir em seu proveito. Mas foram depressa desenganados. Imediatamente após a proclamação da independência, os Belgas e seus aliados imperialistas, que tinham interesses no Congo mais do que a própria Bélgica, viram que com LUMUMBA no Governo do Congo, findava-se a exploração do Congo e que o Congo passaria a pertencer inteiramente aos congoleses. Então os imperialistas utilizaram todos os meios para se desembaraçarem de LUMUMBA: os Belgas invadiram o Congo com tropas vindas da Europa, e além disso, fizeram com que TCHOMBÉ traísse LUMUMBA, declarando a secessão do Katanga, principal fonte de riquezas dos colonialistas e imperialistas no CONGO. O país, que apenas há alguns dias tinha adquirido a sua independência, não estava suficientemente organizado para castigar o traidor TCHOMBÉ e ao mesmo tempo resistir à agressão estrangeira.

Então, LUMUMBA fez apelo à Organização das Nações Unidas para o envio de tropas que o ajudasse a correr com os invasores Belgas e restabelecer a paz no país.

Pela acção das suas tropas e do seu Secretário-Geral Hamarskjoeld no Congo, as Nações Unidas revelaram ao Mundo e especialmente aos povos africanos que lutam pela sua liberdade que essa organização é um simples instrumento dos imperialistas. Com efeito, em vez de ajudar LUMUMBA, as Nações Unidas, pelo seu Secretário-Geral HAMARSKJOELD fizeram tudo para destituir LUMUMBA e colocar na chefia do Governo um homem de palha de sua devoção. Proibiu Lumumba de utilizar a rádio do seu país, não permitiu a reunião do Parlamento, que se manteve sempre fiel a LUMUMBA. Por fim, vendo que não havia maneira de destituir LUMUMBA pelas vias legais, as Nações Unidas e alguns países imperialistas procederam à obra de divisão, pela CORRUPÇÃO, do povo congolês. Foi assim que os imperialistas, por intermédio das Nações Unidas forneceram dinheiro, armas e munições ao coronel MOBUTU, chefe de estado-maior, homem de confiança de LUMUMBA, e fecharam os olhos à acção deste ignóbil INDIVÍDUO que TRAIU seu protector, TRAIU seu país, e TRAIU todo o Povo Africano, pois o caso do Congo é o caso de toda a África.

Finalmente, com conhecimento de HAMARSKJOELD e sem a menor reacção das suas tropas, as forças do TRAIDOR Mobutu, armadas e pagas pelas Nações Unidas, prenderam, maltrataram, espancaram até morrer, o grande patriota africano PATRÍCIO LUMUMBA, que só queria desembaraçar o Congo e a África dos Colonialistas e dos Imperialistas.

Vê-se, pois, que o principal responsável do maior crime da História Africana é o Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD que, para servir os interesses imperialistas, TRAIU Lumumba, que o chamou em seu socorro, TRAIU o conselho de Segurança que lhe tinha dado instruções precisas para ajudar LUMUMBA a pacificar o país, e TRAIU também todas as Nações que aspiram à LIBERDADE, e que até aqui depositavam inteira confiança nele.

Portanto DAG HAMARSKJOELD deve-se demitir, para que os povos que lutam pela liberdade possam enfim obter a sua independência.

LUMUMBA morreu, mas o “LUMUMBISMO” continua; mais vivo do que dantes. O “Lumumbismo” é hoje em dia a incarnação da luta de todos os povos pela sua liberdade, sua independência, pela liquidação completa do COLONIALISMO e do IMPERIALISMO.

LUMUMBA MORREU, PARA QUE A ÁFRICA VIVA, LIVRE, INDEPENDENTE E UNIDA.

POVOS DA GUINÉ E CABO VERDE:

Este longo relato sobre o que se passa no Congo, é muito interessante para nós. Leiam atentivamente este artigo, e encontrarão as mesmas semelhanças com o nosso caso, com o que se passou, com o que se passa nas nossas terras, desde a nossa situação de miséria, ignorância e escravidão, até aos nosso actuais problemas de UNIDADE para a LUTA. Porque a principal condição de LUTA é a UNIDADE.

Patrício LUMUMBA foi assassinado, porque os imperialistas COMPRARAM alguns traidores que provocaram a DIVISÃO do povo congolês. Ele não poderia ser assassinado se o povo continuasse UNIDO. 

Também nas nossas terras, onde sofremos a miséria, a fome, a escravidão, as nossas riquezas são exploradas pelos colonialistas e pelos “trusts” imperialistas. Apesar da bárbara repressão colonialista, conseguimos formar o PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA, que é o único partido que não faz distinção de raças, origens, etc. O PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA procura a UNIDADE dos nossos povos para a LUTA contra o colonialismo e contra o imperialismo. No interior como no exterior, nós somos cada vez mais fortes, a nossa luta cada vez mais renhida; temos a ajuda de todos os povos do mundo; agora a nossa vitória é certa, e já não está longe.

Mas, tomem cuidado! Deveremos agora ser mais vigilantes que NUNCA! Os colonialistas fizeram e fazem tudo para entravar a nossa luta: prisões, perseguições, desemprego, fome, etc. tudo SEM RESULTADO!

Agora, como eles vêem que estamos quase a correr com eles, os colonialistas e imperialistas começam a utilizar esta outra arma, mais perigosa, que é a DIVISÃO.

Eles estão a COMPRAR alguns dos nossos irmãos, para TRAÍREM a nossa causa, fomentando a discórdia entre os nossos povos com questões de raças, origens, religiões, etc.

Alguns desses traidores vendidos aos colonialistas, já começaram a sua nefasta campanha de DIVISÃO, procurando assim entravar a nossa LUTA.

Esses lacaios dos colonialistas que só procuram seus interesses pessoais, sabem conscientemente que estão a TRAIR os nossos povos, e que estão a SERVIR os COLONIALISTAS.

Portanto, esses indignos africanos SÃO TRAIDORES À CAUSA AFRICANA, e como TRAIDORES devem ser tratados.

Povos da Guiné e Cabo Verde! Vejam o caso do Congo:

O único partido que lutou e conseguiu a independência, é o partido que não fazia questões de raças, de origens, etc. O Nosso Partido Africano da Independência, que é o ÚNICO que LUTA pela independência das nossas terras, é também o ÚNICO que não faz questões de raças, origens, etc. O lema do nosso Partido É UNIDADE e LUTA. UNIDADE de todos para a LUTA contra o nosso inimigo: O COLONIALISMO E O IMPERIALISMO.

Irmãos da Guiné e Cabo Verde! Continuemos sempre UNIDOS.

NÓS NÃO QUEREMOS AUTONOMIA. NÓS QUEREMOS A NOSSA INDEPENDÊNCIA COMPLETA!

Nas nossas terras não haverá TRAIDORES como TCHOMBÉ, MOBUTU e OUTROS.

Nas nossas terras haverá UNIDADE, PROSPERIDADE E BEM ESTAR.

Irmãos, PORTUGUÊS, é o europeu que nasceu em Portugal.

Qualquer africano que disser: EU SOU PORTUGUÊS, é um lacaio dos colonialistas, é um TRAIDOR, que deve ser LIQUIDADO de qualquer maneira.

E também o africano que disser que o Fula não é igual ao Bijagó, que os guineenses não devem dar-se com os caboverdianos, etc. etc. esse africano é também UM TRAIDOR, que deve ser ELIMINADO.

Todos os africanos que disserem que são portugueses ou que tentam dividir-nos com questões de raças, origens, etc. são traidores à causa africana, pagos pelos colonialistas para retardarem a liberdade e a independência dos povos africanos.

Esses traidores devem morrer!

Conacry, fevereiro de 1961.

https://www.marxists.org/portugues/cabral/1961/02/40.htm

Amilcar Cabral - Lénine e a luta de libertação nacional



Uma luz fecunda ilumina o caminho da luta

*  Amilcar Cabral

Abril de 1970

Observação: Retomamos, nesta pequena brochura, editada pela Comissão de Informações do Partido, parte dos temas abordados no nosso discurso improvisado no Symposium d'Alma-Ata - República Socialista Soviética do Cazaquistão, em Abril de 1970.

Fonte: http://www.didinho.org/Arquivo/umaluzfecundailuminaocaminh.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

 O valor e o carácter transcendente do pensamento e da obra humana, política, científica, cultural — histórica— de Vladimir llitch Lénine são há muito já um facto universalmente reconhecido. Mesmo os mais ferozes adversários das suas ideias tiveram de reconhecer em Lénine um revolucionário consequente, que soube dedicar-se totalmente à causa da revolução e fazê-la, um filósofo e um sábio cuja grandeza só é comparável à dos maiores pensadores da humanidade. 

Actualmente, não é raro ouvir políticos—mesmo os mais anti-socialistas — citar Lénine ou gabar-se de ter lido as suas obras. É evidente que não podemos acreditá-los à letra, mas isso dá bem a medida da importância (mesmo da necessidade) do pensamento de Lénine e da vastidão das consequências práticas da sua acção no contexto histórico actual. 

Para os movimentos de libertação nacional, cuja tarefa é fazer a revolução, modificando radicalmente, pelas vias mais adequadas, a situação económica, política, social e cultural dos seus povos, o pensamento e a acção de Lénine têm um interesse especial. 

Mas Lénine não deixou apenas a sua obra. Foi e continua a ser um exemplo vivo de combatente pela causa da humanidade, pela libertação económica e portanto nacional, social e cultural do homem. A sua vida e o seu comportamento como personalidade humana contêm lições e exemplos úteis para todos os combatentes da libertação nacional. Entre essas lições, as que nos parecem ser da maior acuidade para os movimentos de libertação referem-se ao comportamento moral, à acção política, à estratégia e à prática revolucionárias. 

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, especialmente em condições como as nossas, o comportamento moral do combatente, em particular dos dirigentes, é um factor primordial que pode influenciar significativamente o êxito ou o fracasso do movimento. É evidente que a luta é essencialmente política, mas as circunstancias políticas, económicas e sociais —históricas—, em que se estrutura e desenvolve o movimento, conferem aos problemas de natureza moral uma particular importância, devido principalmente às fraquezas próprias do movimento nacional de libertação nas colónias, ao oportunismo ou às possibilidades de oportunismo que o caracterizam, às pressões e manhas utilizadas pelo inimigo imperialista, assim como à dificuldade, mesmo a impossibilidade de um controle do movimento e dos seus chefes pelas massas populares nacionalistas.

 No movimento de libertação, como em qualquer outro empreendimento humano — e sejam quais forem os factores materiais e sociais que condicionem a sua evolução —, o homem (a sua mentalidade, o seu comportamento) é o elemento essencial e determinante. 

Lénine foi um exemplo de coerência consigo mesmo e de coerência entre as palavras e os actos. Soube, através de toda a evolução característica da sua personalidade, permanecer igual a si mesmo na verticalidade das suas opções e dos seus actos. Estes sempre corresponderam às suas palavras, pois soube rejeitar o verbalismo fácil, a adulação e a demagogia. 

Lénine foi um exemplo de honestidade, de probidade, de sinceridade e de coragem. Sempre colocou acima de todas as suas conveniências a necessidade de observar rigorosamente os deveres da moral e da justiça, recusar a mentira e praticar a verdade, sejam quais forem as consequências ou os problemas que possa criar. 

Como um ser humano integral, soube amar e odiar. Amar a causa da libertação do homem de qualquer espécie de opressão, a aventura maravilhosa que é a vida humana, tudo o que há de belo e construtivo no planeta. Odiar os inimigos do progresso e da felicidade do homem, o inimigo de classe, os oportunistas, a cobardia, a mentira, todos os factores de aviltamento da consciência social e moral do homem. Sempre considerou o homem como o valor supremo do Universo. A sua dedicação às crianças tornou-se lendária pois, para ele, esses seres delicados e tantas vezes incompreendidos, vítimas inocentes da exploração do homem pelo homem, são as flores da humanidade, a esperança e a certeza do triunfo de uma vida de justiça.

A luta de libertação nacional é, como já dissemos, uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotámos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo. Só encontrámos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino. 

O facto de travarmos uma luta armada de libertação em nada modifica o carácter essencialmente político do nosso combate. Pelo contrário, acentua-o. Ora, não há, não pode haver acção política, seja qual for a sua forma, sem princípios bem definidos, quer sejam bons ou maus. 

No plano político, Lénine foi um exemplo de fidelidade aos princípios. Soube fazer concessões sobre a forma de reivindicações, de acções, mas nunca sobre os princípios, principalmente quando se tratava de defender os interesses da classe e da nação que representava, assim como na prática consequente de um internacionalismo desprovido de reservas, de timidez ou de condicionalismos.

É igualmente uma lição de realismo, de noção clara da possibilidade e da oportunidade política, que encontra a sua expressão máxima na decisão de desencadear a insurreição de Outubro de 1917, apesar das enormes dificuldades para vencer as hesitações e as oposições mais ou menos fundamentadas. 

Uma lição de firmeza na via determinada para conduzir a acção política, ilustrada pelo combate sem tréguas que moveu a todos os desvios «de direita» ou «de esquerda» e que tantos inimigos lhe criou.

 Ultrapassando a concepção vulgar, segundo a qual a política é a arte do possível, Lénine demonstrou que é antes a arte de transformar o que é aparentemente impossível em possível (tornar possível o impossível), rejeitando categoricamente o oportunismo. Assim definida, a acção política implica uma criatividade permanente. Para ela, como para a arte, criar não é inventar. 

A acção de Lénine é caracterizada por uma grande flexibilidade construtiva. Em cada problema, em cada facto da luta, mesmo no mais negativo, soube discernir o lado positivo para dele extrair todas as vantagens e fazer avançar a luta. Nesse âmbito, como noutros, demonstrou uma perseverança a toda a prova. 

Ele, que considerava que «os factos são teimosos», era teimoso como os factos. Confiando na opinião dos outros, apesar disso, certo de que todo o combatente tem necessidade dos outros, sempre soube mudar de opinião quando a razão — a verdade científica — não estava do seu lado.

Crítico rigoroso, mesmo violento, tanto dos seus adversários como dos seus companheiros de luta caídos em erro, Lénine soube praticar exemplarmente a autocrítica. Sabia reconhecer os seus erros e elogiar o valor dos outros, mesmo dos seus mais ferozes adversários; mas soube usar de uma severidade sem limites para atacar os que considerava como inimigos de classe e da revolução. 

Lénine sempre demonstrou uma confiança sem limites na capacidade das massas, mas soube no entanto demonstrar claramente que estas nunca deviam agir com anarquia, sem um plano bem concebido, correspondendo às possibilidades concretas de acção. Para ele, as massas nunca devem ser acéfalas. 

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, tal como em qualquer confrontação, pacífica ou não, há a necessidade vital de descobrir as leis gerais da luta e agir com base num plano geral concebido e elaborado a partir da realidade concreta do meio e dos factores em presença. Isto quer dizer que qualquer movimento de libertação necessita de uma estratégia.

Na elaboração dessa estratégia é preciso ser capaz de distinguir o essencial do secundário, o permanente do temporário. Sem nunca confundir estratégia e táctica, a acção deve basear-se numa concepção científica da realidade, seja qual for a influência dos factores subjectivos que é necessário enfrentar. 

Também nesse plano Lénine deu uma lição muito útil aos movimentos de libertação, aos combatentes da liberdade. Tinha uma nítida consciência do valor da unidade como meio necessário para a luta, mas não como um fim em si. Para Lénine, não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem. A unidade, como qualquer outra realidade, está sujeita às transformações quantitativas, positivas ou negativas. A questão é descobrir qual é o grau de unidade suficiente que pode permitir o desencadear e garantir o avanço vitorioso da luta. E, posteriormente, preservar essa unidade contra todos os factores de dissolução ou divisão, tanto internos como externos. 

Por outro lado, Lénine tinha uma consciência profunda da necessidade de conhecer o melhor possível, na luta, as forças e as fraquezas do inimigo, tal como as nossas próprias forças e fraquezas. A concepção leninista da estratégia implica que devemos agir no sentido de aumentar as fraquezas do inimigo e transformar as suas forças em fraquezas e, simultaneamente, preservar e reforçar as nossas forças e eliminar as nossas fraquezas ou transformá-las em forças. Isto é possível pela aliança permanente e dinâmica entre a teoria e a prática.

 A vida de Lénine é a aplicação consequente desta máxima dialéctica de Paul Langevin: o pensamento deriva da acção e, no homem consciente, deve regressar à acção. Isso implica que, como Lénine demonstrou através de toda a sua vida, a acção deve basear-se na análise concreta de cada situação concreta. De acordo com Lénine, tanto na luta como em qualquer outro fenómeno em movimento, as transformações qualitativas só se operam a partir de determinado nível de modificações quantitativas, o que significa que o processo da luta evolui por etapas, por fases bem definidas. Nessa base e nesta perspectiva devem ser estabelecidas as tácticas a seguir, que são incompatíveis mesmo com os recuos que, em determinados momentos, podem ser o único meio de fazer progredir a luta.

Qualquer luta é experiência nova, seja qual for a soma de conhecimentos teóricos ou de experiências práticas que lhe dizem respeito. Qualquer luta implica, portanto, um determinado grau de empirismo, mas não é necessário inventar o que já o foi: é sim preciso criar nas condições concretas em que a luta se trava. 

Ainda neste ponto a lição de Lénine é pertinente: ele detestava tanto o empirismo cego como os dogmas. A assimilação crítica (dos conhecimentos ou das experiências dos outros) é tão válida para a vida como para a luta. O pensamento dos outros, filosófico ou científico —por mais lúcido que seja—, é apenas uma base que permite pensar e agir, portanto, criar. Para criar na luta é necessário conduzi-la, desenvolver todos os esforços e aceitar os sacrifícios necessários. A luta não é feita de palavras mas de acção quotidiana, organizada e disciplinada, de todos os elementos válidos. A actividade múltipla desenvolvida por Lénine no decurso de uma longa luta é um exemplo de continuidade e consequência, de esforços e sacrifícios, assim como da capacidade para mobilizar as forças necessárias no tempo e no espaço necessários.

Demonstrando que, numa luta, as dificuldades subjectivas são as mais difíceis de ultrapassar, Lénine tinha consciência desta realidade: a luta é feita de êxitos e fracassos, de vitórias e derrotas, mas avança sempre e as suas fases, mesmo as mais idênticas, nunca se repetem, pois a luta é um processo e não um acidente, uma corrida de fundo e não de velocidade: as derrotas eventuais não podem justificar nem a desmoralização nem a desistência, porque mesmo os insucessos podem ser uma base de partida para novos êxitos. 

Essa ultrapassagem só é possível se extrairmos uma lição de cada erro, de cada experiência positiva ou negativa e partindo do princípio de que, se é certo que a teoria sem prática é uma perda de tempo, não há prática consequente sem teoria. 

Principal artífice da grande Revolução de Outubro, que modificou o destino não apenas do povo russo mas da humanidade; criador do primeiro Estado socialista; dirigente supremo da Revolução nas antigas colónias tsaristas; teórico e prático conhecedor na solução do delicado problema que representava a questão nacional no país dos sovietes; militante catalisador do movimento operário internacional — Lénine marcou o século e o futuro do homem com a sua personalidade de revolucionário, legando às gerações que lhe sucederam uma obra tão singular como cheia de lições. Para os movimentos de libertação, Lénine forneceu mais esta valiosa contribuição: demonstrou, definitivamente, que os povos oprimidos podem libertar-se e ultrapassar todos os obstáculos para a construção de uma vida de justiça, de dignidade e de progresso. 

É desejável que, independentemente das suas tendências ou opções políticas, os autênticos movimentos de libertação possam beber nas lições e no exemplo de Lénine a inspiração necessária para o seu pensamento, para a sua acção e para o comportamento moral e intelectual dos seus dirigentes. No interesse geral da luta contra o imperialismo e se tivermos em consideração algumas contradições que caracterizam as actuais relações entre as outras forças anti-imperialistas e mesmo alguns aspectos da sua acção, não seria justo nem, talvez, objectivo limitar esse desejo unicamente aos movimentos de libertação.

Acontece hoje com a doutrina de Lénine o que já se verificou mais de uma vez na história com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos chefes de classes ou nações oprimidas em luta pela sua libertação. Durante a vida dos grandes revolucionários, as classes opressoras recompensam-nos com incessantes perseguições: acolhem as suas doutrinas com um furor selvagem, com um ódio tenaz, com as mais intensas campanhas de mentiras e calúnias. Depois da sua morte, tentam fazer deles ícones inofensivos, canonizam-nos, por assim dizer, rodeando o seu nome com uma certa auréola a fim de «consolidar» as classes ou as nações oprimidas e de as mistificar; fazendo-o, esvaziam a doutrina revolucionária do seu conteúdo, depreciam-na e destroem-lhe a força revolucionária. 

É nessa forma de «arranjar» o leninismo que hoje coincidem a burguesia e os oportunistas, tanto do movimento operário como do movimento de libertação nacional. Esquecem, amordaçam, alteram o lado revolucionário da doutrina, a sua alma revolucionária. Colocam em primeiro plano e exaltam o que é ou parece ser aceitável, mesmo conveniente, para a burguesia e para o imperialismo.

O leitor deve já ter notado que o que acaba de ler é a paráfrase de parte de uma lapidar afirmação de Lénine referente a Marx. Modificámos os nomes e adaptámos o discurso à realidade essencial da história dos nossos dias: a luta de vida ou de morte contra o imperialismo. Temos de admitir que o discurso se adapta perfeitamente ao próprio Lénine, em especial quando consideramos o que ele escreveu sobre o imperialismo e a luta contra o domínio imperialista. 

Sem ter a pretensão ou a audácia de querer restabelecer a doutrina de Lénine acerca do movimento de libertação nacional, gostaríamos, no entanto, de evocar determinados aspectos que nos parecem importantes —, principalmente para os que lutam pela libertação e o progresso dos seus povos. 

Lénine demonstrou de forma muito clara que o movimento de libertação nacional, que adquiriu força desde o começo do século não é um facto novo na história. Em todos os continentes, em épocas mais ou menos recuadas, houve, não apenas luta de libertação tribal ou étnica mas também movimento de luta de libertação nacional. Os povos da antiga Indochina e de outras regiões da Ásia; do México, da Bolívia e de outros países do continente americano; da Grécia, dos Balcãs em geral, mesmo de Portugal, na Europa; do Egipto, da África Oriental e da África Ocidental — para só citar estes — tiveram, no passado, a sua experiência de luta de libertação nacional. 

Esses movimentos sofreram vitórias ou derrotas, mas existiram e deixaram vestígios indeléveis nos povos que afectaram, no âmbito das coordenadas históricas das sociedades em questão, numa determinada etapa da evolução económica e política da humanidade. 

Não há no entanto lugar para confusões. Lénine demonstrou que o império romano, por exemplo, não é a mesma realidade histórica que o império britânico, embora ambos tenham em comum o que parece ser, até agora, uma necessidade ou uma constante nas relações entre as sociedades humanas: a tentativa ou o êxito do domínio político e da exploração económica de certos povos ou nações por Estados estrangeiros ou, o que vem a dar no mesmo, por classes dirigentes estrangeiras.

É evidente que Carlos Magno não foi nem podia ser César ou Átila, mas é ainda mais evidente que qualquer chefe de Estado imperialista não é, nem poder ser, o Gana do império africano que tem o seu nome, nem um imperador da família dos Ming, nem um Cortez, conquistador das Américas, nem o tsar das Rússias. Da mesma maneira e pelas mesmas razões, os bancos e os monopólios imperialistas não são as antigas associações dos comerciantes de Veneza ou a Liga Hanseática. 

Lénine demonstrou que a luta de libertação contra o domínio de uma aristocracia militar (tribal ou étnica), contra o domínio feudal e mesmo contra o domínio capitalista estrangeiro do tempo do capitalismo de livre concorrência não é a mesma realidade histórica que a luta de libertação nacional contra o imperialismo, contra o domínio económico e político dos monopólios, do capitalismo financeiro, actuando sob a forma do colonialismo, do neocolonialismo. Tomou-se e deve ser evidente para todos hoje que o aparecimento do imperialismo operou uma transformação profunda e irreversível no movimento de libertação nacional, definindo-se este como a resistência natural e necessária ao domínio imperialista.

Definindo as características internas e externas do imperialismo — estado supremo do capitalismo, resultado da concentração do capital financeiro em algumas empresas de uma meia dúzia de países, domínio insaciável dos monopólios —, Lénine caracterizou simultaneamente as transformações irreversíveis operadas no conteúdo e na forma do movimento de libertação nacional, do qual previu, cientificamente, a linha geral de evolução. 

Cabe a Lénine o mérito de ter revelado, e mesmo previsto, as realidades essenciais da luta dos nossos dias, pois foi até ao fundo na análise do facto imperialista e da luta geral contra o imperialismo.

 Na sua crítica genial, Lénine esclareceu o carácter essencialmente económico do imperialismo, estudou as suas características internas e externas e as suas implicações económicas, políticas e sociais, tanto dentro como fora do mundo capitalista. Pôs em relevo as forças e as fraquezas dessa nova realidade que é o imperialismo (quase da sua idade), que abriu novas perspectivas à evolução da humanidade.

  Situando geograficamente o fenómeno imperialista no interior de uma parte bem definida do mundo; distinguindo o factor económico das suas implicações políticas ou político-sociais, sem esquecer as relações de dependência dinâmica entre esses dois aspectos de um mesmo fenómeno; e caracterizando as relações do imperialismo com o resto do mundo, Lénine situou objectivamente tanto o imperialismo como a luta de libertação nacional nas suas verdadeiras coordenadas históricas. Estabeleceu assim, de forma definitiva, a diferença e as ligações fundamentais entre o imperialismo e o domínio imperialista. 

A análise de Lénine revela-se desta forma como um encorajamento realista e uma arma poderosa para o desenvolvimento ulterior e multilateral do movimento nacional libertador. É necessário, no entanto, notar que esta análise vai ainda mais longe na contribuição que fornece à evolução desse mesmo movimento. 

Com efeito, se podemos dizer que Marx, principalmente na sua obra principal — O Capital —, procedeu à anatomia ou à anatomia patológica do capitalismo, a obra de Lénine referente ao imperialismo pode ser considerada como a pré-autópsia do capitalismo moribundo. Não é exagerado afirmar que, para ele, a partir do momento em que o domínio económico e político do capital financeiro (os monopólios) se consolidou em alguns países e se concretizou no exterior desses países pelo movimento de partilha do mundo, especialmente em África, com o monopólio das colónias—o capitalismo, tal como se definira anteriormente, transformou-se num corpo em putrefacção. 

Um estudo, mesmo superficial, da história económica contemporânea dos principais países capitalistas (talvez mesmo dos menos importantes), revela que a luta tenaz entre o capital financeiro (representado pelos monopólios e os bancos) e o capital de livre concorrência se salda geralmente pela vitória do primeiro, isto é, do imperialismo.

Temos pois de verificar que Lénine tinha razão: o capitalismo criou o imperialismo e criou simultaneamente os elementos propícios à sua destruição. O imperialismo matou e continua a matar o capitalismo. Com efeito, as transformações profundas realizadas nas relações de forças no âmbito da livre concorrência levaram aos monopólios, à acumulação gigantesca do capital financeiro privado no interior de certos países e, como consequência disso, ao domínio político destes pelos monopólios, o que os transformou em países imperialistas. Esta nova situação está na origem de uma confrontação permanente, aberta ou não, «pacífica» ou não, entre os países imperialistas que procuram novos equilíbrios na relação de forças, em função do grau relativo de desenvolvimento das forças produtivas e da necessidade crescente tanto de obter matérias-primas como de conquistar mercados, isto é, da realização insaciável de mais-valia ou de rendimento para o capital financeiro.

Com base numa análise tão lúcida e realista, era normal que Lénine extraísse conclusões importantes para o desenvolvimento ulterior da luta contra o imperialismo. 

Entre essas conclusões, estas parecem-nos extremamente ricas em consequências: 

A acumulação desenfreada do capital financeiro e a vitória dos monopólios como fase última da apropriação privada dos meios de produção—com o agravamento da contradição entre essa apropriação e o carácter social do trabalho produtivo—criaram as condições propícias à revolução, que progressivamente acabará com o regime capitalista, actualmente representado pelo imperialismo. 

É possível, necessário e urgente fazer a revolução, se não em vários países, pelo menos num, principalmente no momento em que a agressividade característica do imperialismo se manifesta numa guerra entre os países capitalistas para uma nova partilha do mundo (Primeira Guerra Mundial). 

A criação de um Estado socialista desferirá um golpe decisivo no imperialismo e abrirá novas perspectivas ao desenvolvimento do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional.

É possível uma nova confrontação armada entre os Estados imperialistas-capitalistas, pois a hipótese do ultra-imperialismo ou superimperialismo, que resolveria as contradições entre os Estados imperialistas «é tão utópica como a da ultra-agricultura». Essa confrontação enfraquecerá inevitavelmente o imperialismo (Segunda Guerra Mundial). Criar-se-ão assim condições mais favoráveis para o desenvolvimento das forças cujo destino histórico é destruir o imperialismo: instalação do poder socialista em novos países, reforço do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional. 

Os povos oprimidos da África, da Ásia e da América Latina são necessariamente chamados a desempenhar um papel decisivo na luta pela liquidação do sistema imperialista mundial, de que são as principais vítimas. 

Estas conclusões de Lénine, explícita ou implicitamente contidas na sua obra consagrada ao imperialismo e confirmadas pelos actos da história contemporânea, são mais uma notável contribuição para o pensamento e para a acção do movimento de libertação. 

Sendo marxista ou não, leninista ou não, é difícil a alguém não reconhecer a validade, mesmo o carácter genial da análise e das conclusões de Lénine, que se revelam de um alcance histórico imenso, iluminando com uma claridade fecunda o caminho

quantas vezes espinhoso e mesmo sombrio dos povos que se batem pela sua libertação total do domínio imperialista.

https://www.marxists.org/portugues/cabral/1970/04/40.htm

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónica de Carlos Coutinho: PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente

* Carlos Coutinho

PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente. Homero, que não escreveu nem um único verso da “Odisseia”, embora o culpem disso há três milénios, é citado como havendo deixado para a posteridade os versos que a contemplação do mar lhe inspirava, neles pondo a sua ideia de humanidade: “Os homens são como as ondas /Quando uma geração floresce, a outra declina.”

   Virgílio, logo a seguir, no seu latim puríssimo, também cedeu à inspiração produzida pelas imagens: “Enquanto os rios correrem para o mar, os montes fizerem sombra aos vales e as estrelas fulgirem no firmamento, deve durar a recordação do benefício recebido na mente do homem reconhecido."

   Petrarca, o italiano inventor do soneto como poema de 14 versos, definia-o como “a forma perfeita” da poesia. E escreveu:   “Amor, comigo noutro tempo estavas / Entre estas margens do pensar amigas / E p'ra saldar nossas razões antigas / Comigo e o rio arrazoando andavas: / Floras, frondes, sombras, ondas, antros, cavas.” 

   Também Gil Vicente pôs por escrito: "Vi venir serrana, gentil, graciosa, cheguei-me per'ela com grã cortesia.”

   Já o Zé Gomes Ferreira confessava: “Do que sou /ao que penso /paira um voo / suspenso… // Mas tão subtil /que nem ata / o pântano vil / à nuvem de prata. // (Homem: não tenhas vergonha / de ser pântano como eu. / o pântano é que sonha / a nuvem do céu).”   

   Ora, o velho Casc, numa das suas crónicas mais citadas, confessa que se ajoelhou maravilhado e frisa: “Nem um único exemplar da curial pilosidade púbica se contorcia nas proximidades da grande ranhura erótica, embora o suave cômoro venusino iniciasse curialmente, com absoluto langor imaginário, a maciíssima planura abdominal que uma cratera apagada vesuvianamente definia lá longe.” 

  Nas artes plásticas a coisa também não difere muito. Botticelli, por exemplo, quase enlouqueceu enquanto pintava “O Nascimento de Vénus”, porque o corpo da deusa ia ficando excessivamente perfeito, e Picasso, para esquartejar um cavalo e um toiro na “Guernica”, teve de os acompanhar de outros fragmentos vivos. Até de humanos gritantes.

2024 09 09

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DOS múltiplos e interessantíssimos efeitos nunca bem explicados que são produzidos pelas imagens, como aleguei no meu apontamento de anteontem, recordo um fragmento de “A Epopeia de Gilgamesh” na versão de um grande poeta português já falecido, Pedro Tamen, que se serviu da tradução de António Ramos para nos lembrar que, muito antes de Homero e Virgílio, alguém grafou em tabuinhas de barro, 1 500 anos antes da “Ilíada” – ou “Odisseia”, como queiram –  que em Uruk vivia Gilgamesh e que “ninguém prevaleceu contra ele, pois ele é forte como uma estrela do céu". 

   E sentenciou:
   "Vai a Uruk ter com Gilgamesh e exalta a força desse selvagem. Pede-lhe que te dê uma cortesã, uma prostituta do templo do amor; regressa com ela, e o seu poder de mulher dominará esse homem. Quando ele descer para beber nos poços, ela estará nua; e quando ela vier fazer-lhe mal, há-de abraçá-la; e então os animais bravios haverão de rejeitá-lo”. 

   As tabuinhas foram encontradas e traduzidas seguidamente para aramaico, tendo o escriba depositado o seu trabalho no palácio de Assurbanípal, “o Rei do Mundo” que, de facto, só era rei da Assíria, o que dá para pensar que, “quando os deuses criaram Gilgamesh”, o que fizeram foi, afinal, “o último grande rei do império assírio, um temível guerreiro que devastou o Egito e Suso” e que também “juntava livros numa biblioteca fabulosa” com “narrativas históricas sobre o seu tempo, poemas, textos religiosos científicos”, como e os considerava, após ter esquadrinhado “os arquivos das cidades onde essa cultura florescera, como Babilónia, Uruk ou Nippur”, filas e filas de “tabuinhas esbranquiçadas, em forma de pequenas almofadas cobertas de minúsculas incisões, de desenho tão apertado que evocam um formigueiro emaranhado e fervilhante”.

   Ou seja, “quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso Sol, dotou-o de beleza; Adad, o deus da tempestade, dotou-o de coragem; os grandes deuses fizeram perfeita a sua beleza, que ultrapassava todas as outras e que aterrava como um grande touro selvagem. Dois terços o fizeram deus e um terço, humano. Em Uruk ele construiu muralhas, uma grande fortaleza e o bendito templo Eanna, para Anu, o deus do firmamento, e para também para Ishtar, a deusa do amor.”

   Todavia, também diz o supra-referido escriba que “Gilgamesh andou por terras estrangeiras, através do mundo, mas até regressar a Uruk ninguém encontrou que pudesse resistir aos seus braços. Porém, os homens de Uruk murmuravam em suas casas”, que “Gilgamesh toca o sino para se divertir, a sua arrogância não tem limites, nem de dia nem de noite. Nenhum filho é deixado com seu pai, porque Gilgamesh os tira a todos, mesmo às crianças. E, contudo, o rei deveria ser um pastor para o seu povo. O seu desejo não deixa uma só virgem para aquele que ama – nem a filha de um guerreiro, nem a mulher do nobre; contudo, ele é o pastor da cidade, sábio, gracioso e resoluto.”

   Daí que também eu tenha alguns segredos a preservar até não sei quando – por exemplo, não voltarei a certos lugares que foram muito importantes para mim nos últimos anos. 

      Momentos do pastor "dois terços divino e um terço humano"

2024 09 10 

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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Hugo Dionísio - Neoliberalismo: uma antecâmara do fascismo! Eis o que se esconde por trás das eleições alemãs.

 


* Hugo Dionísio

7 de setembro de 2024
As eleições ocorridas na Turíngia e Saxónia, vistas como um referendo à governação Scholz/Baerbock e uma amostra do que aí virá em 2025, confirmaram a erosão do governo alemão, demonstrando que a “maldição de Zelensky” está bem viva. Quanto maior a proximidade com o ex-Presidente da Ucrânia e momentâneo ditador delegado, maior a probabilidade de queda de um governo. Trata-se de uma tendência quase inexorável.
Contudo, quase 80 anos depois do fim do terror nazista, vem o centro neoliberal pregar o medo do fascismo, como sua bandeira preferida. Enquanto amedrontam os seus povos com a AFD desta vida, apoiam o Banderismo na Ucrânia, o Milei na Argentina e golpistas de extrema direita na Venezuela. E com isto os apanhamos: a luta do centro neoliberal contra a extrema direita não passa de um torpor oportunista, em que uma casta privilegiada que se considera civilizada, não quer ser exclusiva por outra casta mais trauliteira.
E enquanto acenam com os perigos da “extrema direita”, eliminando quem lhe poderia dar realmente combate, não impedem, no entanto, a sua própria autodestruição, como acontece com o executivo de Sholz/Baerbock. Esta é também a história de muitos outros governos conotados com o centro neoliberal. Mas esta suscetibilidade autodestrutiva, constitui apenas a face visível – na Alemanha – de uma dinâmica social ainda mais profunda e que se identifica por toda a União Europeia, vivida ao longo de todo o século XXI, e que se impõe, a meu ver, através de 4 processos aceleradores críticos, criados/utilizados para produzir o efeito político que hoje observamos. Essa dinâmica, a não ser travada, conduzidaá, propositada e inexoravelmente, a uma nova farsa fascista, neofascista, como lhe queiram chamar.
O primeiro processo crítico acelerador do projeto neoliberal, na Europa, coincidiu com a “Guerra ao Terror” de Bush, em que embarcou toda a OTAN, na sequência de atentados em Espanha, Inglaterra ou França, traduzida na invasão do Afeganistão e Iraque, construção da Primavera Árabe e destruição da Líbia e Síria. É nesta sequência que se impõe um processo de sobrevigilância e centralização da informação e inteligência a partir de Washington, atribuindo aos EUA o poder de analisar, monitorizar e coordenar esforços ao nível da segurança e criar, nas populações, as condições subjectivas para a acessíveis do que viria em seguida: a vigilância em massa de todos os seus passos, a propósito da manutenção de sua segurança.
Outro momento crítico foi a crise financeira de 2008, que impôs o “Estado de Austeridade Permanente”, estabelecendo as leis para a ideia de que o amanhã, afinal, não será melhor do que o ontem – apenas para alguns -, acelerando o processo de destruição do estado social e operando uma maior transição de valor, entre classes, de que há memória na história recente e que se havia operado nos EUA e no Reino Unido, logo após o inominável “Consenso de Washington”. É com a crise de 2008 que o Consenso de Washington se torna, finalmente, política oficial da União Europeia. Ao longo deste tempo, os “investidores” americanos ocuparam posições dominantes em setores importantes, por toda a Europa.
O terceiro momento crítico foi o Covid-19, com a introdução do “Grande Reset” de Davos e toda a ideologia do “novo normal”. Individualismo exacerbado, narcisismo, migração interna, das regiões mais pobres para as mais ricas e imigração de fora, para dentro do bloco ocidental, desenraizamento da população da sua terra natal, cultura e língua, desaparecimento da malha social que confere coesão às sociedades. A “Uberização” destruiu as fronteiras econômicas restantes que resistiam. Uma empresa na Califórnia, opera no ocidente, a partir dos EUA, sem intermediários, sem gastar um tostão em logística local. Passando por cima de leis e de toda a soberania nacional, recolha dados, vendas, classificações e recolha de ganhos. Por outro lado, o Covid-19, acompanhado de toda a lógica de submissão a recolhimentos impostos, contenção dos movimentos e vacinação obrigatória, criou as condições subjetivas para a submissão acrítica a um modelo de governação.
Como se já não fosse suficiente, com a operação Ucrânia, varre-se dos países centrais da “Ordem Baseada em Regras” a última réplica de soberania: as forças armadas. Voltou a “interoperacionalidade” e, com ela, a uniformização do padrão OTAN, o que equivale a dizer, padrão EUA, comprado nos EUA, feito sob licença dos EUA. Estratégia e tática militar passam a ser desenvolvidas em Washington, em que os estados europeus não passam de postos avançados da “Ordem Baseada em Regras”.
Informação e inteligência; economia e finanças; organização social e política; defesa e segurança; São as dimensões que foram sendo centralizadas e consolidadas em cada um dos momentos críticos. Cada um destes 4 momentos representou um salto evolutivo na força com que os EUA dominam a Ordem Baseada em regras. Para o novo século, o espaço vital tem de estar consolidado, coordenado a partir de um centro reconhecido, criando um bloco, em que as relações são definidas para um todo orgânico. Tudo para preparar o confronto entre blocos. Os resultados econômicos e sociais deste processo de aprimoramento, direcionado à Europa e feito para o secundário, determinaram uma perda relativa de poder, sentido pelas populações e estes, não a saber explicar, canalizam essa frustração para quem a verbaliza como ninguém: a extrema direita . Perante a impotência, promessas adiadas e contradição entre discurso e prática, provenientes do centro neoliberal, a solução está em quem se mostra resoluto e eficaz, mesmo que brutal.
Façamos uma comparação histórica pertinente, para sabermos do que estamos a falar. O período em que nasce o fascismo no ocidente (sim, nos EUA havia apartheid para os negros e fascismo, mesmo com supostas eleições), a riqueza estava distribuída da seguinte forma: entre os anos 20 e 40 do século XX, após o “Primeiro Terror Vermelho nos EUA”, os 10% mais ricos ficavam com uma parcela situada entre 43% e 49% do rendimento em cada ano, os 1% mais ricos, ficavam com 19% a 22%, já os 50% mais pobres ficavam com uma parcela que ia de 14% a 15%. O World Inequality Report não possui dados agregados para a Europa, mas na França, os resultados também não eram muito diferentes dos que vemos para os EUA. No fundo, os EUA representavam a tendência das economias mais avançadas.
A primeira conclusão que retirar daqui é segura: o período de crescimento do fascismo no mundo ocidental coincide com um período de agravamento das desigualdades, de concentração de rendimento, de enorme concentração de riqueza e consequente agravamento das condições de vida e de trabalho. A resposta do sistema para esta crise e reivindicação para o aumento do poder dos trabalhadores que se organizavam em poderosos sindicatos, coincidiu com a criação do fascismo, o corporativismo (que defende a paz social por oposição à luta dialética) e a repressão. Referimo-nos ao termo “crise” quando assistimos a um agravamento das contradições resultantes da disparidade na distribuição de rendimento entre os mais ricos e os mais pobres
A derrota do nazi-fascismo mudou tudo! Nos EUA, logo em 1945, os 50% mais pobres passam a agregar mais rendimento do que os 1% mais ricos (15,8% para 14,2%), enquanto os 10% mais ricos, desceram para 35,3%. É esta diferença, de quase 15% perdidos pelos 10% mais ricos, que se explica o fortalecimento da classe média americana e a construção do chamado sonho americano. Sem esta transferência, os EUA exclusivamente se tornaram na superpotência que foram, nem foram derrotados a URSS. Isto explica também a entrada em cena do Macartismo (o “segundo Terror Vermelho” de 1950 a 57), deriva fascizante que “limpou” sindicatos e organizações de classe nos EUA.
Até aos anos 70 do século XX, a situação dos trabalhadores americanos continuava a melhorar e os dados atestam-no. Em 1970, a riqueza controlada pelos 50% mais pobres atingiu o seu ponto alto (21,1%) e a dos 10% mais ricos (e 1% mais ricos também) atingiu o seu ponto mais baixo (34% e 10,1%, respectivamente). ). Os dados não puderam ser mais claros: o período de ouro dos EUA coincide com o período em que a distribuição da riqueza produzida foi mais justa; foi também o período com mais liberdade, democracia, engajamento político e melhores condições de vida.
Na França não foi diferente, uma vez derrotado o fascismo nazista e, logo a partir de 1945, os 10% mais ricos atingiram o seu ponto mais baixo (31,4%), o 1% mais rico 8,5% e os 50 % mais pobres passam de 14,6% em 1934 para 20,5% em 1945. É pena não termos dados da Alemanha, mas se estes não falam por si…
Esta relação, nos EUA, mal ou bem, contínua até ao final da URSS e, em 1995, tudo se voltou a inverter de volta ao período anterior à segunda guerra mundial. O “Consenso de Washington” ocorrido em 1989, que decretou a mundialização do neoliberalismo segundo a “escola de Chicago”, coincide com o ano em que os 1% mais ricos voltam a concentrar mais de 14% do rendimento anual, o que já não sucedia desde os anos 50. A partir de 1989 foi sempre a concentrar, até aos dias actuais, em que: em 2022, os 10% mais ricos atingiram 48,3% do rendimento anual, os 1% mais ricos 20,9% e dos 50% mais pobres, apenas 10,4%. Refira-se, a este propósito, que desde que existe registo, nunca os 50% mais pobres tiveram ficado com tão pouco rendimento anual. O mínimo que obtivemos, nos EUA, havia sido de 11% por volta de 1850!
Voltando às eleições alemãs. Estamos precisamente a viver o período da história ocidental moderna, em que a redistribuição da riqueza produzida (se falarmos da riqueza existente é pior ainda) está num dos níveis mais baixos de sempre. Na Europa, a situação ainda não é tão grave como nos EUA, mas estes 4 aceleradores críticos que identifiquei (Guerra ao Terror, Crise Soberana; Covid-19; Guerra Fria 2.0), produzindoão, necessariamente, o mesmo efeito de concentração da riqueza que já está a degradar e destruir o estado social europeu, construído à custa de uma redistribuição que, mal ou bem, ainda mantém alguns padrões de justiça.
Embora não tenham produzido grandes alterações na quantidade de riqueza prejudicada pelos 50% mais pobres, nos principais países europeus registados no World Inequality Report, é da chamada “classe média” que se ouvem muitas das queixas. Em países como a Suécia, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Países Baixos e outros, a tendência é, embora de forma mais tênue do que nos EUA, nos finais do século passado, para os 50% mais pobres perderem terreno para os 10 % mais ricos. Ou seja, paulatinamente, vão-se desenvolver as relações económicas que produzirão uma realidade material típica do período em que se formou o fascismo.
Daí que seja hora de desfazer um dos mais importantes mitos, ou dogmas, que a narrativa oficial propaga sobre o fascismo: a principal característica do fascismo não é a repressão, mas, ao invés, a influência da concentração da riqueza e a sua entrega a uma cada vez menor quantidade de pessoas. Cada vez menos pessoas têm mais poder económico, como o que compram poder político e fazem o sistema político, mesmo aqueles que se apelidam de “democráticos”, funcionar segundo os seus termos. O Lobbying, o financiamento de campanhas e Think Thanks ou até da própria academia, são alguns dos meios mais usados ​​para interferir e moldar as políticas soluções preconizadas.
Ao invés do processo de concentração da riqueza, já a repressão pode acontecer em qualquer sistema, quando você estiver em crise ou sentindo-se ameaçado. A não ser nos casos psicopatológicos, a repressão é uma resposta orgânica justificada com um ataque externo ou interno. Só alguém mesmo muito alheado ou alienado da realidade acredita que não existe repressão nos EUA e, mais recentemente, intensificada na União Europeia. Todos os sistemas estatais têm um aparelho repressivo ao seu dispor e à sua utilização – dos meios coercivos – depende do nível da ameaça. Num estado fascista, o poder repressivo está ao serviço das camadas mais ricas da população.
O mesmo se passa com as eleições. Não é uma existência de eleições que determine a natureza fascizante ou democrática de um sistema. O que determina a sua natureza democrática é a abrangência das suas políticas. Se abrangem os interesses da maioria, ou não. Uma escolha entre iguais, como acontece nos EUA, não é democracia, é sufragismo. No final será o complexo militar industrial e Wallstreet quem manda. Outra característica da democracia consiste na susceptibilidade de alterar a política económica, quando esta não serve os interesses da maioria. Eleições estereis, pouco participadas em que governam partidos minoritários, como acontece crescentemente na Europa, não se explicam através da democracia. Esses partidos minoritários governam porque a base econômica que servem, eles permitem fazê-lo, mesmo em minoria. Em resumo, é possível haver fascismo com eleições. E nunca observarei um fascista assumir que o é.
Se o estado em que os EUA já se encontram explicados o surgimento de um Trump, uma “resposta” impotente para acabar com os exércitos de sem abrigo, junkies e de gente a viver em carros, roulottes ou tendas; na União Europeia, esse processo não é distinto e, embora mais tardio, está agora a produzir-se. Também na Europa está a surgir a resposta do sistema à crise que resulta do aprofundamento da contradição na redistribuição da riqueza. Quanto maior a contradição, quanto mais injusta a redistribuição, mais o sistema produzirá os agentes demagógicos, reacionários, que encantarão as massas mais pobres, com a culpabilização dos também mais pobres: emigrantes, refugiados e outros, para aqui trazidos, precisamente, pelos que mais riqueza acumulada.
Não é admissível, portanto, que alguém responsável e conhecedor das dinâmicas sociais e em posse de informação confiável, fique admirado com o envio eleitoral para a “extrema direita”. Mais grave se torna quando os representantes políticos do centro neoliberal, que se situam, inclusive, entre o Wokismo e o ultraliberalismo (partidos wokistas eurosocialistas e sociais democratas acusam Maduro de cometer fraude, mas decidem Milei um jogador limpo!), uma vez mais, tal como nos anos 20 e 30 do século XX, surgem a criar as condições materiais, por sucumbirem às dinâmicas de concentração da riqueza, seja por corrupção, encantamento ou medo de serem destruídos (e que razão têm), conforto, por sua vez e uma mais uma vez, o surgimento da oportunidade fascista (seja o caso da AFD ou não). O momento em que os super-ricos usam a repressão estatal para proteger o processo de concentração da riqueza.
Assim, ninguém pode admirar que as massas trabalhadoras descontentes, empobrecidas, vítimas da rapina, muita dela exercida a partir de Washington, votem na “extrema direita”. Depois de ondas de revisionismo históricas para comparar o fascismo ao comunismo (e socialismo) e a URSS à Alemanha nazista, foi o próprio centro neoliberal que legitimou a extrema direita. Se compararmos partidos aceitos, que nunca promoveram o ódio e a discriminação (caso dos partidos comunistas), com partidos que fazem a doutrina do ódio e da discriminação como suas bandeiras, acabamos de normalizar os últimos últimos.
Cresce que, ao contrário do voto nos partidos progressistas (em sentido económico, marxista), que rejeitam e denunciam o wokismo enquanto apresentam desviante à direita, os partidos da “extrema direita”, ao contrário, não comportam qualquer perigo para a base económica que sustenta o centro neoliberal. Nenhum regime fascista alterou o processo de concentração de riqueza, ao invés, reforçou-o. Também hoje, a “extrema direita” defende apenas e tão só o aprofundamento do modelo económico existente e que, como demonstração, proporcionou o seu próprio desenvolvimento.
E aqui chegou, se demonstra que o revisionismo histórico não é inocente. Ele visa criar uma fuga, uma alternativa ao centro neoliberal, sem que o poder real, o poder da riqueza acumulada, na economia, transite de mãos. Assim, os grandes concentradores ganham tempo, enganando as massas uma vez mais, prendendo-as na repressão fascista. Quando derrubado o golpe fascista, o desvio fascizante ou a deriva extremista neoliberal, as massas voltam a ser enganadas com o centro neoliberal, na medida em que não o identificam como pertencendo à mesma base econômica que alimenta o estado fascista. E assim perpetuar sua exploração, circulando entre formas mais ou menos agressivas de um mesmo remédio.
Para já, as eleições alemãs apenas confirmaram este ciclo vicioso. E a prisão neste ciclo, uma vez mais, em processo de geração histórica, esconda a maior das conquistas do globalismo neoliberal, federalista, financeirizado: a formatação do conhecimento a um ponto em que os especialistas, competentes em sua área, são incapazes de olhar para além de coisas que ensinamos. Neste sentido, o fascismo não é mais uma especialização, um aprofundamento em relação ao estágio atual do neoliberalismo globalista. O próprio belicismo, seja dos EUA (e que não termina com Trump), seja no centro neoliberal (para já), constitui também uma das consequências do processo de “fascização económica” da vida política. Resultado de uma cada vez mais tendências para a apropriação de riqueza, nem que seja pela via da guerra.
Quando ouço economistas, competentes (não estou a ironizar), com canais concorridos, criticam o ocidente por estar a sucumbir, entre outras razões, por praticar exercícios elevados, percebe-se que a herança ideológica neoliberal é de facto pesadíssima. Nenhum desses economistas competentes é capaz de olhar para além do esquema neoliberal que lhe ensinaram. Apenas reproduzam o que lhe ensinaram, sendo meros instrumentos da lógica de acumulação e pilhagem ocidental.
A incapacidade de sonhar e almejar o que hoje se considera impossível, constitui a herança mais pesada dos últimos 100 anos, que os EUA tiveram para nos entregar. As eleições alemãs, na sua divisão entre sonhadores, situacionistas e aprofundadores, demonstram esta tensão latente. Demonstram que existe quem sonhe, mas as forças do medo, do ódio e da reação, são mais fortes que nunca. O neoliberalismo constitui o seu alimento preferido.
Neoliberalismo: uma antecâmara do fascismo! Eis o que se esconde por trás das eleições alemã

https://www.brasil247.com/blog/neoliberalismo-a-antecamara-do-fascismo

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Prabhat Patnaik - O estado bizarro da democracia ocidental


 * Prabhat Patnaik  [*]


Durante todo o período do pós-guerra em que existiu nos países metropolitanos, a democracia nunca esteve num estado tão bizarro como o atual. Supõe-se que a democracia significa a prossecução de políticas que estão em conformidade com os desejos do eleitorado. A conformidade entre os dois é tipicamente assegurada sob o domínio burguês pelo governo que decide sobre as políticas de acordo com os interesses da classe dominante, e depois tem uma máquina de propaganda que persuade o povo sobre a sabedoria dessas políticas. A conformidade entre a opinião pública e o que a classe dominante quer é assim alcançada de uma forma complexa cuja essência reside na manipulação da opinião pública.

Mas o que se passa atualmente é completamente diferente:   a opinião pública, apesar de toda a propaganda que lhe é dirigida, quer políticas completamente diferentes das que são sistematicamente seguidas pela classe dominante. Por outras palavras, as políticas favorecidas pela classe dominante estão a ser prosseguidas apesar de a opinião pública se opor palpável e sistematicamente a elas. Isto é possível graças ao facto de a maioria dos partidos políticos se alinhar por essas políticas; ou seja, graças ao facto de um espetro muito vasto de formações políticas ou partidos apoiar essas políticas contra a vontade da maioria do eleitorado. A situação atual caracteriza-se, portanto, por duas caraterísticas distintas:   em primeiro lugar, uma ampla unanimidade entre a maior parte das formações políticas (partidos); e, em segundo lugar, uma total falta de congruência entre o que estes partidos acordam e o que as pessoas querem. Esta situação não tem precedentes na história da democracia burguesa. Além disso, estas políticas não dizem respeito a questões menores relativas a este ou aquele assunto, mas a questões fundamentais de guerra e paz.

Tomemos o exemplo dos Estados Unidos. A maioria das pessoas naquele país, de acordo com todas as sondagens de opinião disponíveis, está chocada com a guerra genocida de Israel contra o povo palestino; gostariam que os EUA pusessem fim à guerra e não continuassem a fornecer armas a Israel para a prolongar. Mas o Governo dos EUA está a fazer precisamente o contrário, mesmo correndo o risco de fazer escalar a guerra para envolver todo o Médio Oriente. Da mesma forma, a opinião pública nos EUA não quer a continuação da guerra na Ucrânia. É a favor do fim do conflito através de uma paz negociada; mas o governo dos EUA (juntamente com o do Reino Unido) tem sistematicamente torpedeado todas as possibilidades de uma solução pacífica. A sua oposição aos acordos de Minsk, uma oposição transmitida à Ucrânia através da viagem do primeiro-ministro britânico Boris Johnson a Kiev, foi o que deu início à guerra; e mesmo agora, quando Putin tinha feito algumas propostas para estabelecer a paz, incitou a Ucrânia a lançar a sua ofensiva de Kursk, que pôs fim a todas as esperanças de paz. O que é significativo é o facto de tanto os Republicanos como os Democratas nos EUA estarem de acordo com esta política de fornecimento de armas a Netanyahu e Zelensky, apesar de a opinião pública desejar a paz e apesar de qualquer aventureirismo da Ucrânia correr o risco de desencadear uma conflagração nuclear.

Este contraste entre o que o povo quer, apesar de toda a propaganda a que tem sido sujeito, e o que o establishment político ordena, aflige todos os países metropolitanos; mas em nenhum outro lugar é tão flagrante como na Alemanha. A guerra da Ucrânia afecta diretamente a Alemanha de uma forma que não atinge nenhum outro país metropolitano, uma vez que a Alemanha estava inteiramente dependente do gás russo para as suas necessidades energéticas. As sanções contra a Rússia causaram uma escassez de gás; e a importação de substitutos mais caros dos EUA fez subir os preços do gás para níveis que afectam fortemente o nível de vida dos trabalhadores alemães. Os trabalhadores alemães exigem urgentemente o fim da guerra na Ucrânia, mas nem a coligação no poder, constituída pelos Sociais-Democratas, os Democratas Livres e os Verdes, nem a principal oposição, constituída pelos Democratas-Cristãos e os Socialistas-Cristãos, estão a mostrar qualquer interesse numa resolução pacífica do conflito. Pelo contrário, a classe política alemã está a tentar suscitar o medo de que apareçam tropas russas nas fronteiras alemãs, quando, ironicamente, são tropas alemãs que estão atualmente estacionadas na Lituânia, nas fronteiras da Rússia!

No seu desespero para pôr fim à guerra na Ucrânia, os trabalhadores alemães estão a voltar-se para o AfD neofascista, que professa ser contra a guerra (embora se saiba que irá inevitavelmente trair esta promessa assim que se aproximar do poder) e para o novo partido de esquerda de Sahra Wagenknecht, que se separou do partido de esquerda-mãe, Die Linke, precisamente por causa desta questão da guerra.

Exatamente o mesmo se passa com as atitudes alemãs em relação ao genocídio em Gaza. Enquanto a maior parte da população alemã se opõe a este genocídio, o governo alemão criminalizou toda a oposição ao genocídio israelense, alegando que constitui “anti-semitismo”. Chegou mesmo a interromper uma convenção que estava a ser organizada para protestar contra o genocídio, para a qual tinham sido convidados oradores de renome internacional como Yanis Varoufakis. A utilização do bastão do “anti-semitismo” para derrotar toda a oposição à agressão de Israel também é generalizada noutros países metropolitanos. Na Grã-Bretanha, Jeremy Corbyn, o antigo líder do Partido Trabalhista, foi expulso do partido, ostensivamente com base no seu chamado “anti-semitismo”, mas na realidade devido ao seu apoio à causa palestina; e as autoridades universitárias dos EUA invocaram esta acusação contra os protestos universitários generalizados que abalaram o país.

Este tipo de domínio sobre a opinião pública é normalmente conseguido mantendo estas questões candentes da paz e da guerra fora da discussão política. Nas próximas eleições presidenciais americanas, por exemplo, uma vez que ambos os candidatos, Donald Trump e Kamla Harris, concordam com o fornecimento de armas a Israel, esta questão em si não figurará em nenhum debate presidencial ou na campanha presidencial. Enquanto outros temas em que divergem ocuparão um lugar central, o tema crucial que afecta as pessoas e sobre o qual têm uma opinião diferente da dos concorrentes não será objeto de debate.

Uma razão para o apoio do establishment político às acções israelenses, que está longe de ser negligenciável, é o generoso financiamento ao mesmo de doadores pró-Israel. De acordo com um relatório publicado na Delphi Initiative (21 de agosto), metade do gabinete de Keir Starmer, o recém-eleito primeiro-ministro trabalhista da Grã-Bretanha, havia recebido dinheiro de fontes pró-Israel para disputar as eleições que os levaram ao poder. O mesmo número da mesma revista informa também que um terço dos membros conservadores do parlamento britânico havia recebido dinheiro de fontes pró-Israel para as eleições. Por outras palavras, o dinheiro a favor de Israel está disponível para ambos os principais partidos da Grã-Bretanha, o que torna o apoio às ações israelenses um assunto bipartidário.

Por outro lado, o que acontece àqueles que se colocam ao lado da Palestina é ilustrado por dois casos nos EUA:   os membros do Congresso, Jamaal Bowman e Cori Bush, ambos representantes negros progressistas, que simpatizavam com a causa palestina e eram fortes críticos do genocídio israelense, foram derrotados pela intervenção do AIPAC (American-Israel Public Affairs Committee), um poderoso lobby pró-Israel, que investiu milhões de dólares no esforço. A Delphi Initiative de 31 de agosto informa que foram gastos 17 milhões de dólares para a derrota de Bowman e 9 milhões de dólares para a campanha publicitária contra Cori Bush. É interessante notar que a campanha contra Cori Bush não mencionou a agressão de Israel a Gaza, pois a AIPAC sabia que, nessa questão específica, o público teria apoiado Cori Bush e não o seu adversário, frustrando assim os seus planos para a sua derrota. O que tudo isto significa é que uma decisão fundamental sobre a guerra e a paz, que afecta toda a gente, está a ser tomada nos países metropolitanos , contra a vontade dos povos, por um establishment político que é financiado por lóbis com interesses instalados.

Assim, na metrópole, passou-se da “manipulação do dissenso” através da propaganda para a ignorância total do dissenso, mesmo o dissenso de uma maioria que se revelou imune à propaganda. Trata-se de uma nova etapa na atenuação da democracia, uma etapa caracterizada por uma falência moral sem precedentes do poder político. Essa falência moral do poder político tradicional constitui também o contexto para o crescimento do fascismo; mas, quer o fascismo chegue ou não ao poder, a atenuação da democracia nas sociedades metropolitanas já retirou ao povo um poder sem precedentes.

08/Setembro/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2024/0908_pd/bizarre-state-western-democracy

Este artigo encontra-se em resistir.info