A teoria revolucionária é a consequência do estudo da realidade política e social nada tendo a ver com a repetição empolgada de chavões ou a aplicação mecânica de princípios gerais a uma situação em específico, sem olhar a novas configurações do capitalismo, do Estado e da correlação de forças, por isso, não se confunde com o verbalismo vazio dos esquerdistas, nem com a chamada renovação que caracteriza o reformismo. “a teoria revolucionária não abdica nem dos princípios fundamentais do marxismo-leninismo (…), nem da necessidade de compreender novos fenómenos; a teoria revolucionária aplica criativamente os conceitos nucleares do marxismo ao contexto em que os revolucionários actuam numa determinada época e sociedade”.João Aguiar* - 22.06.09
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Na ciência burguesa é relativamente difundida a ideia que a célebre XI Tese sobre Feuerbach – «todos os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo, trata-se agora de transformá-lo» – seria uma afirmação em que Marx acharia desnecessária toda e qualquer teorização do real. Na realidade, tais noções não fazem sentido. Basta lembrar toda a imensa obra teórica de Marx (o actual projecto de publicação das obras completas de Marx e Engels em alemão será de 120 volumes, portanto, cerca de 72.000 páginas!) para se perceber o colosso intelectual do grande revolucionário alemão. Por outro lado, o marxismo nunca desqualificou o labor teórico. Mais uma vez, lembrem-se duas clarividentes lições de Lenine: «não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária" e a importância para os Partidos Comunistas da "análise concreta da situação concreta». Por conseguinte, há em toda a história do marxismo-leninismo uma ligação indissolúvel entre trabalho teórico e prática revolucionária.
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Qual a relação entre teoria revolucionária e luta prática?
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Para responder a esta questão, importa considerar dois elementos principais:
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1. a teoria revolucionária não existe fora da luta revolucionária.
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Quer dizer, Marx não nasceu comunista e até atingir os seus 25-26 anos de idade nunca se considerou socialista ou comunista, apesar de já ter entrado em contacto com as correntes anti-capitalistas da época. Para além da ruptura com o hegelianismo e da leitura do artigo «Esboço para uma crítica da economia política» de Engels e publicado nos Anais Franco-Alemães em 1844, foi o contacto de Marx com emigrantes e refugiados políticos socialistas de origem alemã em Paris e, sobretudo, com o desenvolvimento da luta operária – por exemplo, os tecelões da Silésia em luta no ano de 1843 – que iriam estar na génese do marxismo como teoria revolucionária.
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Um outro exemplo. A obra de teoria (científica e política) mais brilhante de Lenine é, não por acaso, "O Estado e a Revolução". Obra escrita em Julho e Agosto de 1917 em pleno fogo da luta revolucionária em ebulição. A percepção do poder de classe do Estado e a percepção das tarefas que cabiam (e cabem) ao proletariado num contexto de transição para o socialismo seriam aspectos de todo inacessíveis fora da luta revolucionária.
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2. a teoria revolucionária permite perspectivar as condições gerais e específicas em que decorre a luta revolucionária.
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Não se pense que o marxismo é um mero pragmatismo. De facto, a luta e a prática nas organizações marxistas necessitam sempre de um programa, de resoluções políticas, de debate político e ideológico. É quase como que «o pão para a boca» das organizações políticas e sociais da classe trabalhadora. Para recorrer a um outro exemplo, repare-se que, ao contrário do preconceito dos media dominantes de que o PCP seria um partido enquistado, sectário, sem debate político e condenado a desaparecer, a verdade é que o PCP não teria a força eleitoral e, fundamentalmente, social e sindical se não debatesse e aplicasse enunciados políticos e ideológicos que se ajustam à realidade concreta das massas populares.
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Consequentemente, a teoria revolucionária enquadra a luta das organizações operárias em dois níveis. Por um lado, a teoria revolucionária enquadra a luta em termos das condições gerais em que ocorre. Isto é, a teoria revolucionária permite compatibilizar a luta quotidiana com o processo histórico global, portanto, entre luta reivindicativa de massas e a luta geral contra o capital. Por outro lado, a teoria revolucionária permite compatibilizar a luta quotidiana na conjuntura nacional, social e temporal em que se desenrola num determinado momento.
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Assim, considere-se a relação entre teoria e luta revolucionária a partir das seguintes noções:
• a teoria revolucionária faz parte da luta de ideias, da batalha política e ideológica contra a ideologia dominante;
• a teoria revolucionária não é o repetir de chavões ou o aplicar mecânico de princípios gerais a uma situação em específico, sem olhar a novas configurações do capitalismo, do Estado e da correlação de forças – a teoria revolucionária não se confunde com o verbalismo oco do esquerdismo;
• a teoria revolucionária não é igual à revisão de princípios do marxismo em favor da busca de pretensas soluções novas para uma realidade social capitalista que, apesar de novos ajustamentos, continua a reproduzir os seus pilares fundamentais (exploração da força de trabalho; mercantilização de todas as actividades sociais, culturais e naturais; Estado de classe controlado pela burguesia; força e peso da ideologia dominante, etc.) – a teoria revolucionária não se confunde com a busca da “renovação" pela “renovação” típica do reformismo;
• a teoria revolucionária não abdica nem dos princípios fundamentais do marxismo-leninismo (primado da luta de classes, papel de vanguarda da organização revolucionária, natureza de classe das várias instituições da sociedade, etc.), nem da necessidade de compreender novos fenómenos;
• a teoria revolucionária aplica criativamente os conceitos nucleares do marxismo ao contexto em que os revolucionários actuam numa determinada época e sociedade.
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Aplicações necessárias da teoria revolucionária à realidade actual: algumas questões que se colocam e que importa dar resposta
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1ª necessidade: aprofundar a compreensão da real dimensão da actual crise estrutural do capitalismo.
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Aspectos a aprofundar:
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a) relação do capital fictício em hipertrofia com as dificuldades de produção de mais-valia na esfera produtiva.
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b) de que forma a bolha financeira despoletará uma crise ainda mais profunda ao nível das relações de produção capitalistas.
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c) de que modo se relacionam crises cíclicas no seio da crise estrutural mais geral do capitalismo.
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Importância prática desta questão:
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a) desmontar a mecânica interna do imperialismo, como forma de explicitar as raízes estruturais de um sistema explorador e opressor dos povos e dos trabalhadores.
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b) compreendendo a essência do funcionamento do capitalismo, torna-se mais fácil rebater soluções políticas supostamente «de mudança» (como Obama e toda a campanha propagandística em seu torno) e, ao mesmo tempo, de rebater soluções pretensamente milagrosas para o sistema financeiro. A crise estrutural do capitalismo não pode ser regulada, como defendem certas concepções próximas ao keynesianismo, nem é superada por receitas que passem por introduzir «mais mercado» como apregoam as correntes mais abertamente neoliberais. De facto, a crise estrutural do capitalismo demonstra, por um lado, a vulnerabilidade do indivíduo perante toda a mecânica do sistema onde é apenas mais um recurso para extrair mais-valia e, por outro lado, que a sociedade alicerçada na exploração do trabalho humano tem limites estruturais profundos. Compreender a existência destes últimos não significa, evidentemente, que o capitalismo poderia desaparecer por si mesmo mas que, tendo em conta as dificuldades do sistema para incrementar a extracção de crescentes volumes de mais-valia, só a luta colectiva dos trabalhadores e dos povos pode ultrapassar uma sociedade ancorada na exploração do homem pelo homem.
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2ª necessidade: aprofundar a compreensão do desenvolvimento da configuração interna dos Estados e correlativas vias de fascização de novo tipo.
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Aspectos a aprofundar:
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a) papel da securitização do Estado na prevenção (e criminalização) de futuras movimentações operárias e populares.
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b) possibilidade de o capitalismo tentar controlar politicamente a grave crise económica e o crescente caos associado por via do recurso a vias de fascização da vida política.
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c) compreender como estas tendências fascizantes convivem com instituições formalmente democráticas e, mais importante, com a assunção de que tais processos seriam democráticos e realizados no interesse de todos os cidadãos.
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Importância prática desta questão:
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a) reafirmar a natureza de classe no Estado e dos processos políticos. O Estado nunca foi, e hoje muito menos, um aparelho neutro e desligado de interesses de classe. A existência de naturais diferenças entre várias formas de Estado (liberal, ditadura militar, fascismo, etc.) não deve obscurecer a tendência imanente de em situações históricas de crise o capital abraçar empreendimentos militaristas, repressivos e fascizantes.
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b) compreendendo a substância dos Estados – cada vez menos democráticos e cada vez mais autoritários na sua actuação quotidiana – mais facilmente se colocará perante as massas que a superação do sistema implica uma transformação do aparelho de Estado, num sentido da sua democratização e do seu controlo político pelo povo e pelos trabalhadores.
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3ª necessidade: aprofundar a compreensão das transformações na esfera cultural e ideológica.
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Aspectos a aprofundar:
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a) compreender como ideologias de classe (pós-modernismo, teorias sobre a sociedade do conhecimento e correlativo fim do trabalho e das classes, teses sobre a superioridade numérica das chamadas classes médias e dos «colaboradores», etc.) se apresentam como pretensamente não-classistas e compreender o seu impacto nas dificuldades de identificação colectiva de camadas da classe trabalhadora.
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b) perceber a relação entre crise estrutural do capitalismo/tendência fascizante de organização do poder político/estetização da política e da vida quotidiana. Por outro lado, a crise do capitalismo, do ponto de vista dos interesses do grande capital, implica que os trabalhadores adoptem comportamentos individualistas e refractários à luta reivindicativa. Neste capítulo, a difusão de ideologias consumistas junto de novas camadas de trabalhadores actua como um poderoso factor para fazer recuar a consciência operária e popular nas suas forças.
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Importância prática desta questão:
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a) compreender a ligação entre a produção cultural, a difusão ideológica, os mecanismos de condicionamento na formação da opinião e a legitimação do capitalismo.
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b) desconstruir a noção de que o que os indivíduos pensam (e que lhes transmitem nos media e noutras instâncias culturais) é natural, lógico e inquestionável, mas que se encaixa perfeitamente nos processos de dominação ideológica do grande capital.
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c) um mais apurado entendimento destes fenómenos permite um avanço na luta ideológica contra o capital e, portanto, na luta mais geral contra o capitalismo.
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4ª necessidade: aprofundar a compreensão das causas fundamentais do findar da ex-URSS.
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Aspectos a aprofundar:
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a) decifrar como se operou a interacção causas internas e causas externas na derrota do socialismo. Quer dizer, a relação complexa e vasta entre: o colossal cerco imperialista; a relação triangular edificação do Estado socialista – transformação das relações de produção – desenvolvimento das forças produtivas; as modalidades específicas e a variável intensidade da luta de classes no processo de construção do socialismo; o sucesso ou insucesso na formação de quadros e no maior ou menor fomento da participação popular, etc.
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Importância prática desta questão:
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a) uma compreensão sólida do que se passou nas experiências de construção do socialismo assegurará que o ideal comunista se afirme como alternativa ao capitalismo. Ou seja, o socialismo só passará à ofensiva ideológica se for capaz de compreender mais cabalmente esta questão. Um dos eixos mais relevantes que o capital tem aproveitado na luta ideológica passa pela assunção de que não existiria alternativa ao actual sistema. A criminalização do socialismo soviético aparece aqui como central nesse desígnio ideológico do grande capital e do imperialismo. Nesse sentido, a reposição da verdade sobre as experiências de construção do socialismo consubstancia-se como um passo fundamental nesse processo.
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Conclusão
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Uma compreensão mais profunda dos fenómenos acima mencionados permitirá a desmontagem de enunciados da ideologia dominante. Evidentemente, os comunistas e revolucionários têm um largo património teórico sobre estas questões. Assim, trata-se aqui da necessidade de se aprofundar ainda mais esse património e não de o descartar ou ignorar.
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Com efeito, a própria teoria revolucionária será tanto mais eficaz quanto mais se avançar na discussão colectiva dos problemas em causa. Discussão colectiva que tem de estar sempre inserida no quadro de fortalecimento da luta de massas e das organizações da classe trabalhadora. Só a luta dos trabalhadores e dos povos e das suas organizações de classe poderá transformar o mundo.
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Animada por esse objectivo, a teoria poderá interpretar mais correctamente o mundo social e político, por conseguinte, melhorando as probabilidades de sucesso da luta popular pela transformação da sociedade. E porque o marxismo consagra essa unidade entre pensamento e acção, só a luta (teórico-ideológica e de massas) é o caminho!
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*Sociólogo
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