Pai e filho
Sou o teu pai. Quando te seguro ao
colo, entro no teu olhar, passo-te os dedos pelas faces e sinto que também eu
tenho duas semanas porque uma parte de mim nasceu contigo há duas semanas.
Agora, enquanto dormes, escrevo-te e imagino que, num instante longe deste
instante, chegará um dia em que tu serás grande e segurarás uma folha escrita
com estas palavras. Estas palavras são uma corda que une este momento presente
e passado a esse momento futuro e presente. Daqui, desta ponta da corda, se der
um pequeno puxão nas palavras, tu irás senti-lo aí. Se eu disser verdades, tens
duas semanas, és pequenino, eu e a tua mãe amamos-te, tenho a certeza que irás
sentir estas verdades aí. No entanto, hoje, aqui, eu não posso saber a maneira
como irás sentir estas verdades, estes pequenos puxões, porque eu não sei tudo
aquilo que irá acontecer entre este momento e o momento em que serás grande e
segurarás uma folha escrita com estas palavras. Seguro numa ponta da corda, mas
não sei o seu comprimento, a sua forma ou a sua resistência. Ainda assim, sei,
imagino, que estás aí nessa ponta das palavras e quase que tenho vergonha de
falar contigo. É difícil escolher palavras para falar com essa pessoa em
que te tornaste. Ainda não conheço esse rosto que lê cada palavra deste meu embaraço.
Além disso, tenho medo que estas palavras envelheçam mal ou que eu próprio
envelheça mal. Talvez encontres aqui adjectivos que deixem de se usar. Talvez
comeces a ler estas palavras e talvez, na tua ideia, eu seja alguma coisa que
deixou de se usar. Irás olhar para aquilo em que me tornarei e tentarás
entender aquilo que quis dizer-te hoje pelos significados que, nessa idade,
tiver dado às palavras. Filho, eu tenho trinta anos e sou o teu pai. Tu tens
duas semanas, és pequenino, és querido, eu e a tua mãe amamos-te. Quando
percebemos que estás feliz, ficamos felizes. Quando choras, ficamos inquietos e
não paramos, fazemos tudo, fazemos tudo até ficares feliz de novo. Filho, eu
tenho trinta anos, mas sinto que também tenho duas semanas porque uma parte de
mim nasceu contigo há duas semanas. Estas são as palavras que quero dizer-te.
Os seus significados são simples e não tenho medo de dizer que são puros porque
são puros mesmo. No dia em que leres estas palavras, saberás muitas coisas. Eu
também já soube muitas coisas. Ser pai não é apenas saber, ser pai é
compreender. Por isso, espero que possas reler estas palavras num dia em que
sejas pai também. Eu, que sou o teu pai, tive um pai e tive um avô. Tão bem
como eu sei que o meu pai era uma pessoa, quando fores pai, saberás que eu,
aquele que hoje te escreve e aquele que há duas semanas começou a viver
paralelo a ti, sou uma pessoa. De mim, espera amor e espera uma pessoa. Como as
pessoas, às vezes, engano-me, não sei respostas, tenho medo, tenho frio, minto,
faço coisas feias, desisto, escondo-me e fujo. Eu compreendo que tu irás
enganar-te muitas vezes, não saberás respostas, terás medo, terás frio,
mentirás, farás coisas feias, desistirás, esconder-te-ás e, quando todos te
procurarem, terás fugido. Eu compreendo-te. Segurei-te ao colo, entrei no teu
olhar. Foi há menos de uma hora. Passei-te os dedos pelas faces, tentando
imaginar a forma como o teu rosto vai crescer. Estas palavras serão o espelho
do teu rosto. O teu rosto ficará parado sobre elas. Gostava que soubesses que,
hoje, quis tanto ver esse teu rosto que lê. Se puderes, passa agora os dedos
pelas tuas faces. Talvez no dia em que leres estas linhas tenhamos deixado
crescer entre nós o pudor de nos tocarmos com afecto simples e puro. Pai e filho.
Por isso, passa os dedos pelas faces para sentires aquilo que sentiste hoje,
duas semanas de vida, pequenino e amado. Ou então, chama-me para junto de ti.
Na outra ponta destas palavras, serei outro. Terá passado tempo que, agora, não
posso imaginar. Mas, nesse dia, quando chegar a estas palavras que me preparo
para deixar agora, assim que olhar para elas, lembrar-me-ei daquilo que é
estar a escrevê-las, ter trinta anos e estar a escrever enquanto tu, com duas
semanas, estás a dormir. Será como se eu, hoje, fosse também filho desse eu que
irá ler estas palavras. O rosto que tenho hoje estará dentro desse rosto que
terei da mesma maneira que o teu rosto de criança estará também naquele de
quando leres estas palavras. Filho, eu tenho trinta anos e sou o teu pai. Tu
tens duas semanas, és pequenino, és querido, eu e a tua mãe amamos-te. Quando
percebemos que estás feliz, ficamos felizes. Quando choras, ficamos inquietos e
não paramos, fazemos tudo, fazemos tudo até ficares feliz de novo. Filho, eu
tenho trinta anos, mas sinto que também tenho duas semanas porque uma parte de
mim nasceu contigo há duas semanas. Estas são as palavras que quero dizer-te.
Os seus significados são simples e não tenho medo de dizer que são puros porque
são puros mesmo. Chama-me para junto de ti. Mostra-me estas palavras que
escrevi hoje e pede-me para te passar os dedos pelas faces com o mesmo carinho
e com a mesma ternura com que hoje toquei os teus contornos de menino. Tenho a
certeza que não terei esquecido. Por mais que aconteça entre hoje e esse dia,
por mais mortes e terramotos, tenho a certeza que não terei esquecido. E
obriga-me a jurar que nunca deixaremos crescer entre nós um pudor que impeça de
nos abraçarmos, de nos beijarmos, de passarmos os dedos pelas faces um do
outro. Pai e filho. Eu sou o teu pai. Tu és o meu filho.
*Publicado originalmente no Jornal de Letras.
Postado por: José Luís
Peixoto | 10/11/2008
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