* Bruno Vieira Amaral
Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras no Expresso Diário
Quem me dera ser criança outra vez para me poder espantar com as palavras. Naquele tempo, as palavras nasciam do chão e das vozes dos outros. Espalhavam-se pela alcatifa da sala, como brinquedos, ou flutuavam, incompreensíveis, mágicas, por cima de mim. No início, eram todas simples e podia tocar-lhes, mesmo quando, muito pequeno, trocava as sílabas e um chapéu era “pachéu” e um comboio era “begoio” e um sapato era “passato”. Os objetos eram inquestionáveis, reais, mas as palavras eram incertas, arbitrárias. Eram mais poderosas assim. Quando os meus amigos, anos depois, ainda diziam “desfesa” em vez de “defesa” e eu os corrigia, o que me sobrava em correção escapava-me em voo porque “desfesa” tinha asas que lhe permitiam agarrar a bola no ar e “defesa” tinha os pés bem cravados na ortografia. O erro estava de acordo com o movimento, com o gesto, e a palavra correta só estava de acordo com as regras.
Mas as palavras existiam antes das regras. Palavras como “mesa”, “cadeira” ou “copo” tinham corpo, estavam ali, embora pudessem ser deslocadas para outro lado, outras funções. O banco de madeira, por exemplo, era azul e era nele que eu me sentava às refeições. Depois, eu deitava o banco no chão e assim, na horizontal, já podia ser cavalo ou carro. A tampa de uma panela passava a ser volante e para cada mudança operada pela imaginação havia sempre uma palavra. O camião-betoneira que, à tarde, passava nas traseiras do prédio, e que eu via da janela do meu quarto, ainda não era betoneira, era apenas a “baleia grande”, sem repuxo e sem o canto atlântico das baleias, só aquele roncar mecânico que é a linguagem desencantada das máquinas.
“Dentro de quatro paredes” era outra expressão que me confundia porque, nas minhas contas, as casas tinham muito mais do que quatro paredes. Alguém se enganara nos cálculos, julgava eu
Lá fora, sim, lá fora havia muitas coisas por descobrir, muitas palavras. Brincávamos no “patamar”, que era ainda extensão da casa, mas a “rua” era tudo o que a casa não era, tudo a que a casa não chegava. A rua era o mundo quando a palavra mundo ainda era demasiado larga e abstrata. Depois, na minha mitologia pessoal, “mundo” tornou-se outra coisa, um lugar de ameaças e perigos do qual tínhamos de nos manter afastados. Mundo, palavra que uso tantas vezes, até no plural porque tantos são os mundos, trazia com ele um erro. Não era sinónimo de tudo o que existe, mas de tudo o que nos tenta. O mundo eram os outros. O mundo era o inferno.
Porém, antes do mundo com as suas conotações religiosas, havia a rua. “Este miúdo só quer é rua, rua, rua”, dizia a minha avó, que me queria domesticado, debaixo das suas saias, fechado nas quatro paredes da casa. (A expressão “debaixo das saias” lembrava-me o Leão, cão comunitário, de porte e pelo leoninos, donde o nome, mas muito assustadiço, que assim que ouvia foguetes vinha enroscar-se às pernas da minha avó, que também tinha um pavor sobrenatural dos trovões e tapava os ouvidos quando, em noites de tempestade, eles rebentavam mesmo por cima do prédio. “Dentro de quatro paredes” era outra expressão que me confundia porque, nas minhas contas, as casas tinham muito mais do que quatro paredes. Alguém se enganara nos cálculos, julgava eu.)
2019.11.02
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