quinta-feira, 7 de novembro de 2019

João Céu e Silva - Um jovem fugido da Dinamarca faz nascer Sophia no Porto

Para Sophia, primeiro era o Porto, depois gostou de Lisboa, a seguir apaixonou-se pelas praias do Algarve, que lhe faziam lembrar nos anos 1960 a Grécia mítica que tanto a inspirou.

João Céu e Silva
2019.11.06

A cidade do Porto além de insinuada em vários pemas de Sophia também suege num conto, intitulado "O Homem", no qual a autora coloca um indivíduo a passear pelas ruas da cidade - que nunca é reconhecido - como sendo Cristo a regressar. © Arquivo DN

A vivência da cidade do Porto está muito presente na obra da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen e pode até se dizer que está na génese dos seus primeiros trabalhos literários, além de bastante reconhecível no livro inicial, Poesia (de 1944). Uma edição de trezentos exemplares custeada pelo pai mas que irá pagar-se a si própria e na qual, principalmente, se observa a influência da natureza daquela cidade nos seus tempos de criança e de adolescente.

Essa inspiração não foi nunca escondida e a própria poeta a exalta quando recorda o Porto e as memórias da juventude, como é o caso do lugar muito importante que é o atual Jardim Botânico do Porto, que ocupou parte da propriedade familiar da Quinta do Campo Alegre até 1949 e que foi também parcialmente ocupada com a nova Ponte da Arrábida. Seria este espaço, com extensos e belos jardins, que inspiraria Sophia durante toda a vida e cujas sensações a poeta irá reproduzir na escrita sob variadas formas, destacando-se a liberdade de movimentos para as brincadeiras infantis que irão estar presentes nos livros infantojuvenis e nos poemas em que a natureza domina.

O Porto está muito presente na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, aqui a escrever à janela. Sobre esse espaço mágico dirá Sophia: "Não era propriamente a casa da minha avó a que eu ia, mas à quinta que a rodeava - os maravilhosos jardins, os buxos, as rosas, as glicínias, os muguets - os altíssimos plátanos do parque e os seus troncos, onde estavam inscritas iniciais e datas e, às vezes, desenhados os corações de todos os namorados da família, as suas penumbras verdes na primavera e no verão, a luz doirada do outono e o chão juncado de folhas, o desenho dos ramos nus no céu frio de inverno, o cheiro intenso e húmido da terra, do lago e dos musgos - o pomar, o ténis, as hortas, os tanques, o pinhal, os campos -, tudo isto era para mim um mundo de inesgotável e contínua descoberta."

Trata-se de Jan Heinrich Andresen, um jovem que foge da ilha dinamarquesa de Föhr e que dará origem à família de Sophia. Tanto assim que um dos seus livros, Saga, narra a viagem de Jan até ao Porto e conta a aventura do bisavô que decide instalar-se em Portugal.

Não muito distante da magia do Porto que a Quinta do Campo Alegre lhe proporcionava, Sophia escolhe uma das praias que os portuenses frequentam, a da Granja, para registar em vários textos futuros. Imagens de uma praia a norte que está implícita em poemas como "Homens à beira-mar" e "Mulheres à beira-mar". Inspiração que a poeta confirmaria mais tarde, numa entrevista - "esses poemas têm que ver com as manhãs de praia da Granja" -, mesmo que nessa resposta acrescente como a pintura de Picasso e a poesia de Lorca tinham sido importantes para os escrever.

Além do que era palpável fisicamente, havia outra memória que também teria a cidade do Porto como suporte através de um antepassado. Trata-se de Jan Heinrich Andresen, um jovem que foge da ilha dinamarquesa de Föhr e que dará origem à família de Sophia. Tanto assim que um dos seus livros, Saga, narra a viagem de Jan até ao Porto e conta a aventura do bisavô que decide instalar-se em Portugal.

Numa das raras entrevistas dadas ao longo da vida, Sophia explicou esse Porto que estava em Saga, apontando as frases com que identificara a cidade, como a descrição da entrada do navio pelo rio Douro, onde o bisavô se esconderia na fuga da terra natal: "Barra estreita de um rio esverdeado e turvo", os " escuros granitos", ou os "carros de madeira, que chiavam sob o peso de pipas, pedra e areias" ao passarem "à porta das adegas" ou pelas "igrejas de azulejo e talha".

A cidade do Porto, além de insinuada em vários poemas, também surge num conto, intitulado O Homem, no qual Sophia coloca um indivíduo a passear pelas ruas da cidade - que nunca é reconhecido - como sendo Cristo a regressar.

Num desabafo posterior, a poeta confessará o amor pela geografia de jovem, que mudará com a vivência de outros locais: "Quando eu era nova e vim para Lisboa senti-me longíssimo da praia porque no Porto vivia mais perto do mar. Não gostava de Lisboa, tinha uma grande nostalgia do norte. Depois isso foi passando. E hoje gosto de Lisboa."

Se o Porto, a quinta e a praia da Granja ocupam grande parte dos primeiros temas e dos poemas, será outra a inspiração geográfica que vai modelar a descendente de Jan Heinrich Andresen: as praias do Algarve, tão parecidas com as que também amava, as da Grécia. Com estas, a água fria, os limos e as ondas a bater no litoral de forma violenta seriam imagens perdidas para uma nova poesia, a da idade adulta.



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