* LÚCIA GOMES
3.11.19
3.11.19
Tem 17 anos e já transpira colonialismo e saudosismo bafiento em cada palavra. A sua genealogia ditou que pudesse ser publicado num jornal de referência do mofo salazarista mas o seu artigo é, para além de decadente (porque o jovem com tanto para dar mais parece uma criatura mumificada acabada de encontrar num qualquer cenotáfio de um panteão com festas de uma startup), perigoso e sintomático de uma pretensa elitezinha que acha que o país precisa deles.
Vou dizer-te uma coisa, Manuel Bourbon Ribeiro: o país não precisa de ti. Nem precisa das tuas reflexões. O país teve décadas de gente como tu, ainda os tem, em lugares de poder. No teu caso, nem sequer se pode falar em meritocracia porque o que tu tens é a conta bancária dos papás e um família que enriqueceu à custa da apropriação da mais valia criada por outros e assim construiu a sua fortuna. Sabes, Manelinho, essa grandiosidade de que falas e que gabas ao longo da tua composição, foi feita à custa da escravização dos povos. Do nosso e dos povos africanos, dos povos indígenas da América Latina. À custa da espoliação das riquezas naturais que lhes pertenciam e que nós dissemos serem nossas, desbaratando-as nesse império de tão grandes feitos e deixando algumas remanescências naquilo que alguns chamam museus mas que eu gosto de chamar arquivos do imperialismo. É que - e tu estás a estudar Direito, Manelinho, já deves ter aprendido uma ou outra coisa - esses tesouros foram roubados (sim, roubados - com violência. Não chegaram sequer a ser furtados, sabes a diferença, não é, Manelinho?) - e com eles há muitas histórias que podem ser contadas.
Mas como eu não quero chatear-te com coisas do passado, embora claramente prefiras viver nele, posso aconselhar-te alguns filmes, para não perderes muito tempo, em que com algumas horas do teu tempo certamente preenchido com actividades que mais ninguém com 17 anos pode ter - porque não tem dinheiro, Manelinho - poderás apreender a violência, a brutalidade, a desumanidade da grandiosidade que apregoas. Olha: podes começar com o Silence, do Martin Scorsese. Sabes que mesmo para contar esses factos históricos houve quem fosse preso pela PIDE, em 1964, interrogado, ameaçado, por simplesmente escrever sobre eles? Podes ler as “Raízes da Expansão Portuguesa”, de António Borges Coelho, historiador, combatente antifascista, que esteve 6 anos encarcerado por um regime que seguramente gostarás - enquadra-se nas tuas palavras e no que tu pretendes recuperar e dar ao teu país - durante seis anos, parte dos quais no isolamento onde "só há a memória”, que vai “a horizontes completamente inconcebíveis”. “Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada”.
Podes mesmo viajar até outros países, porque o teu continua num negacionismo sem paralelo, e ver fotografias, relatos, provas de que a quimera e os sonhos que dizes ter e que são os que outrora Portugal teve, se materializaram no facto de o povo português ser o mais bárbaro na sua tortura colonizadora. Sim, o mais bárbaro. Mais do que os ingleses e os holandeses e não deve ser tarefa fácil! É que, Manelinho, para indicarem que o território onde tinham chegado agora era seu, os portugueses colocavam à entrada estacas com indígenas empalados para que toda a gente soubesse quem estava no comando. Ou enfiavam nativos que se recusassem à conversão católica em buracos subterrâneos, presos pelos pés, para que morressem lentamente. Presumo que seja a isto que te referes quando falas em grandiosidade. Porque, Manelinho, especiarias e tecidos podiam ter trazido sem estas práticas. Mapas, também os podiam desenhar sem subjugar e dizimar povos e natureza.
Mas vê por ti, vai ao Merseyside Maritime Museum em Liverpool (aproveitas para tirar umas fotos para o teu Instagram a dizer como és tão culto e conheces os Beatles, não precisas de dizer a ninguém que foste a este museu) e lê. Lê, Manelinho. Tu deves saber várias línguas. Até deves compreender isto:
"To most white people, slavery and colonialism are just part of a distant memory of nothing in particular. For whites, slavery did not last particularly long, its benefits accrued only to a tiny proportion of white people and the evils of slavery are overshadowed by the role played by British abolitionists. In any case, the rise of Western nations, Britain, and the United States in particular, as the industrial supremos of the world, is explicable to them simply in terms of English innate genius. Poverty and penury in Africa, and racial inequality in the West, is explained in terms of black inability, incompetence or laziness. To black people, though, slavery and colonialism reiterate themselves in our everyday lives, and evoke poignant and immediate memories of suffering, brutalisation and terror. For black people, Western nations achieved their industrial growth and economic prosperity on the backs of slaves, abolished slavery primarily for economic reasons, have discriminated against black people ever since, and are unrepentant about any of it. African under-development and racial inequality in the West is understood primarily in terms of racism and racist hostility of whites.”
Depois, Manelinho, não tentes - a sério, nem tentes - fingir que sabes o que é uma mãe não ter dinheiro para uma creche - até porque deves ser contra as famílias monoparentais, por exemplo, porque irão contra a tua noção patética de família. Não digas que não te deixam escolher hospitais: tu tens dinheiro para ir onde quiseres e nós, os que não temos, temos um Serviço Nacional de Saúde que é dos melhores do mundo. E sim, precisa de investimento, mas não para podermos ir a um privado. Porque no público temos os melhores profissionais, a melhor tecnologia, os melhores assistentes operacionais e enfermeiros e tu serás melhor tratado num hospital público do que num qualquer privado, ainda que não tenhas um quarto só para ti e wifi para navegares. Porque quando falas em liberdade de escolha o que queres dizer é desvio de recursos para financiamento dos grupos económicos que enchem os bolsos de famílias como a tua. Seja na saúde, seja na educação. Porque é a escola pública que garante a igualdade, o progresso, o desenvolvimento integral. Que permite que pessoas como tu, racistas, supremacistas, aprendam valores de solidariedade, tenham uma educação de excelência reconhecida mundialmente, progridam em todos os ciclos de ensino sem que o dinheiro dos papás seja condição para terem a educação até ao grau que pretendem ter.
Não pretendas saber, Manelinho, o que é não ter dinheiro para comprar livros, para ir até à escola porque não se tem carro, para ir comprar medicação, o que é o isolamento dos idosos, o que é estar endividado. Sabes porquê, Manelinho? Porque nós, os que estudámos com livros emprestados, os que tínhamos boleia de vizinhos ou íamos a pé quilómetros até à escola, os que vimos os nossos avós a morrerem sozinhos, os que vimos os nossos pais morrerem de cancro aos 54 anos, os que só comíamos sopa porque o salário das nossas mães não dava para mais do que pagar a casa, as roupas e a alimentação (e olha que roupa só era comprada duas vezes ao ano, de resto era dada), os que sempre passamos férias em casa, os que temos vários tios (porque os nossos avós tinham 8 filhos mas não eram como os teus seis irmãos, trabalhavam desde os 12 nesses tempos áureos que evocas), os que trabalhamos para pagar os nossos cursos, sabemos bem que os salários dos nossos pais são baixos porque os salários dos teus são altos (e são eles que detêm as empresas que exploram os nossos pais), porque as leis são feitas por e para os teus pais e os amigos dos teus pais, porque tu só escreves nos jornais porque os donos deles são os amigos dos teus pais e um dia serão os teus.
Não pretendas, Manelinho, jamais, achar que o teu curso de Direito valerá algum dia mais do que o meu, porque eu exerço-o do lado certo da barricada. Não julgues que os teus 17 anos algum dia darão a este país mais do que os meus 17 porque nessa idade já eu combatia, com tantos outros, racismos, xenofobias, classismos, opressão e exploração. E jamais penses que este país precisa de ti. Este país precisa de Serviço Nacional de Saúde público, gratuito, universal e de qualidade. Precisa da escola pública, gratuita e universal. Precisa de combater o preconceito - em função do sexo, da orientação sexual, da deficiência, da classe. Precisa de dar a conhecer em todo o lado - na escola, na rua, no parlamento - a Constituição, o combate ao fascismo, as histórias dos antifascistas, os relatos da tortura, a barbárie dos Descobrimentos, precisa de melhores salários para os trabalhadores, precisa de uma Administração Pública de qualidade que dignifique os seus trabalhadores e utentes, precisa de mais e mais serviços públicos, precisa de combater a violência policial.
Manelinho: nenhum fascista é necessário. Nem em Portugal nem em lado nenhum. E tu, com os teus 17 anos, deverias sentir uma profunda e enorme vergonha por estares do lado opressor da história. Porque não é a ti que ela dará razão.
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