OPINIÃO
É nestas alturas que eu tenho
muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem
hesitação e dirigir-se aos manifestantes.
16 de Novembro de 2019, 6:03
Um secretário de Estado,
responsável por uma história pouco esclarecida a propósito das concessões
mineiras do lítio, foi a um dos
locais onde é suposto ir haver as ditas minas. Foi a Boticas,
e escolheu muito mal a terra, por razões que adiante se verão.
Chegou lá e havia um ajuntamento
hostil à sua espera. O homem encolheu-se e voltou para trás. Chamou a GNR e
voltou lá de novo, pensando certamente que a protecção dos guardas metia medo
aos habitantes de Boticas. Não meteu medo nenhum, e ele nem saiu do carro,
encolheu-se de novo, retirou-se, para depois fazer a habitual acusação de que
estavam lá pessoas de Montalegre, que convinha dizer-lhe que é um pouco mais
acima.
É nestas alturas que eu tenho
muitas saudades de Mário
Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos
manifestantes. Posso falar à vontade, porque já me aconteceu coisa semelhante e
posso dizer-vos que, após um momento tenso, o PSD que estava “proibido”, por
umas milícias justiceiras de entrar numa terra de Aveiro, entrou solitário e
acabou por ganhar as eleições. Está na imprensa da época. Mas, pelos vistos, a
escola de Soares está em desuso.
Eu conheço bem Boticas, onde dei
aulas, naquela diáspora que os professores tinham que fazer. E foi um daqueles
tempos que nunca esquecem. Aprendi muito sobre a natureza, a mesma natureza que
as minas agora ameaçam. Aluguei uma casa na aldeia de Pinho, e lembro-me de que
tinha havido um grande incêndio entre Boticas e Pinho, estando tudo enegrecido.
Aprendi como o negro “comia” a luz dos faróis. Aprendi também o que era ter uma
nuvem no andar térreo, onde havia a arrecadação da lenha, e o primeiro andar da
habitação de onde, na varanda, se via um sol luminoso e quilómetros de serra.
Descia-se e era nevoeiro cerrado, meia dúzia de metros abaixo. E o frio que
fazia brilhar uma paisagem imaculada, que ia do Barroso até Vidago, onde
começava outro mundo.
Havia também outra natureza que
se aprendia. Uma vez, o então chefe de secretaria da escola, que era retornado,
perguntou-se se eu não tinha medo de morar sozinho numa casa isolada na
montanha. Eu disse-lhe que não, não era zona de lobos, e que a minha única
preocupação eram cães vadios, e à beira da cama tinha uma caçadeira, por isso
estava confortável. “Não, não era disso. Eu queria saber se não tinha medo do
Diabo”. E depois contou-me que uma vez o Diabo lhe tinha puxado os cobertores
da cama. Bom, com o Diabo não havia muito a fazer. E havia os meus jovens
alunos que vinham das aldeias da serra com uma espécie de pistola de madeira e
fulminantes para assustar os lobos e que pediam autorização para escrever na
“coroa” da página. E um padre que parecia saído de um livro de Aquilino, com
quem almoçava num restaurante sobre o qual Ferreira de Castro tinha escrito, e
que me dizia que quando as mulheres lhe pediam para as abençoar a elas e aos
bois, lhes dizia “vade retro mulieribus”,
e elas ficavam muito contentes. Não me esqueço do que devo a Boticas e, num
irrelevante agradecimento, ajudei a recuperar alguns elementos para a
monografia da terra.
A beleza de Boticas não era
resultado de uma opção, mas da pobreza e da interioridade. Não havia fábricas,
o mais parecido era a empresa das águas de Carvalhelhos e, nas aldeias à volta,
havia a economia de subsistência do Barroso e do Larouco, algum comércio de
gado, e de produtos florestais. Também não me esqueço do que me disse um homem
da terra “não sei como o senhor doutor gosta disto, são só serras e árvores”.
Por isso, assustei-me com a
história do lítio, não sem alguma dúvida sobre como os homens e as mulheres de
Boticas iam receber a possibilidade de não ser “só serras e árvores”. Nestes
anos, todos Boticas estragou-se alguma coisa mas pouco. A sua população tem
muito serviços essenciais, melhorou a sua condição e diminuiu o isolamento das
aldeias da montanha. Mas de Montalegre até ao Douro, vários ecossistemas foram
destruídos, desde as cumeadas cheias de eólicas, até aos vales dos rios
desaparecidos debaixo das barragens e, com eles, as velhas linhas férreas
herdeiras do Fontes Pereira de Melo.
O secretário de Estado, que
não saiu de dentro do carro ao ver uns cajados, trazia consigo um dilema que
não é fácil de resolver, uma promessa de empregos, de dinamismo económico
local, com o preço da destruição do meio ambiente disfarçado de juras sobre a
inexistência de impacto ambiental. O que os meus amigos transmontanos sabem de
ciência certa, é que em todos os sítios onde houve essas promessas, nem houve
emprego estável, nem desenvolvimento para as terras, mas situações de
destruição irreversível do valor ecológico, turístico, cultural das suas
terras. E sabem também que alguém lucrou muito, chegou lá, sugou tudo de valor,
e depois deixou os estragos.
Colunista
Sem comentários:
Enviar um comentário