sábado, 16 de novembro de 2019

JPP - Ó homem, os cajados são para suportar o corpo na idade e nas inclinações das serras!



José Pacheco Pereira

OPINIÃO

É nestas alturas que eu tenho muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos manifestantes.
16 de Novembro de 2019, 6:03

Um secretário de Estado, responsável por uma história pouco esclarecida a propósito das concessões mineiras do lítio, foi a um dos locais onde é suposto ir haver as ditas minas. Foi a Boticas, e escolheu muito mal a terra, por razões que adiante se verão.

Chegou lá e havia um ajuntamento hostil à sua espera. O homem encolheu-se e voltou para trás. Chamou a GNR e voltou lá de novo, pensando certamente que a protecção dos guardas metia medo aos habitantes de Boticas. Não meteu medo nenhum, e ele nem saiu do carro, encolheu-se de novo, retirou-se, para depois fazer a habitual acusação de que estavam lá pessoas de Montalegre, que convinha dizer-lhe que é um pouco mais acima.

É nestas alturas que eu tenho muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos manifestantes. Posso falar à vontade, porque já me aconteceu coisa semelhante e posso dizer-vos que, após um momento tenso, o PSD que estava “proibido”, por umas milícias justiceiras de entrar numa terra de Aveiro, entrou solitário e acabou por ganhar as eleições. Está na imprensa da época. Mas, pelos vistos, a escola de Soares está em desuso.

Eu conheço bem Boticas, onde dei aulas, naquela diáspora que os professores tinham que fazer. E foi um daqueles tempos que nunca esquecem. Aprendi muito sobre a natureza, a mesma natureza que as minas agora ameaçam. Aluguei uma casa na aldeia de Pinho, e lembro-me de que tinha havido um grande incêndio entre Boticas e Pinho, estando tudo enegrecido. Aprendi como o negro “comia” a luz dos faróis. Aprendi também o que era ter uma nuvem no andar térreo, onde havia a arrecadação da lenha, e o primeiro andar da habitação de onde, na varanda, se via um sol luminoso e quilómetros de serra. Descia-se e era nevoeiro cerrado, meia dúzia de metros abaixo. E o frio que fazia brilhar uma paisagem imaculada, que ia do Barroso até Vidago, onde começava outro mundo.

Havia também outra natureza que se aprendia. Uma vez, o então chefe de secretaria da escola, que era retornado, perguntou-se se eu não tinha medo de morar sozinho numa casa isolada na montanha. Eu disse-lhe que não, não era zona de lobos, e que a minha única preocupação eram cães vadios, e à beira da cama tinha uma caçadeira, por isso estava confortável. “Não, não era disso. Eu queria saber se não tinha medo do Diabo”. E depois contou-me que uma vez o Diabo lhe tinha puxado os cobertores da cama. Bom, com o Diabo não havia muito a fazer. E havia os meus jovens alunos que vinham das aldeias da serra com uma espécie de pistola de madeira e fulminantes para assustar os lobos e que pediam autorização para escrever na “coroa” da página. E um padre que parecia saído de um livro de Aquilino, com quem almoçava num restaurante sobre o qual Ferreira de Castro tinha escrito, e que me dizia que quando as mulheres lhe pediam para as abençoar a elas e aos bois, lhes dizia “vade retro mulieribus”, e elas ficavam muito contentes. Não me esqueço do que devo a Boticas e, num irrelevante agradecimento, ajudei a recuperar alguns elementos para a monografia da terra.

A beleza de Boticas não era resultado de uma opção, mas da pobreza e da interioridade. Não havia fábricas, o mais parecido era a empresa das águas de Carvalhelhos e, nas aldeias à volta, havia a economia de subsistência do Barroso e do Larouco, algum comércio de gado, e de produtos florestais. Também não me esqueço do que me disse um homem da terra “não sei como o senhor doutor gosta disto, são só serras e árvores”.

Por isso, assustei-me com a história do lítio, não sem alguma dúvida sobre como os homens e as mulheres de Boticas iam receber a possibilidade de não ser “só serras e árvores”. Nestes anos, todos Boticas estragou-se alguma coisa mas pouco. A sua população tem muito serviços essenciais, melhorou a sua condição e diminuiu o isolamento das aldeias da montanha. Mas de Montalegre até ao Douro, vários ecossistemas foram destruídos, desde as cumeadas cheias de eólicas, até aos vales dos rios desaparecidos debaixo das barragens e, com eles, as velhas linhas férreas herdeiras do Fontes Pereira de Melo.

O secretário de Estado, que não saiu de dentro do carro ao ver uns cajados, trazia consigo um dilema que não é fácil de resolver, uma promessa de empregos, de dinamismo económico local, com o preço da destruição do meio ambiente disfarçado de juras sobre a inexistência de impacto ambiental. O que os meus amigos transmontanos sabem de ciência certa, é que em todos os sítios onde houve essas promessas, nem houve emprego estável, nem desenvolvimento para as terras, mas situações de destruição irreversível do valor ecológico, turístico, cultural das suas terras. E sabem também que alguém lucrou muito, chegou lá, sugou tudo de valor, e depois deixou os estragos.

Colunista

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