Sabem o que é ter que explicar por que é que não podemos desembarcar? Procurar palavras certas e descobrir que não há palavras certas para “não são bem-vindos”? “Nenhum país vos quer acolher”? “O mundo nunca vos vai ser casa”?
* Ana Paula Cruz
Médica, humanitária, activista
30 de Outubro de 2019, 17:04
Caros eurodeputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel
Fernandes
É com um profundo sentimento de revolta que recebi a notícia
das posições que tomaram na passada quinta-feira, em pleno Parlamento Europeu.
Tenho lido muitas das vossas argumentações e explorado as propostas apresentadas, mas continuo com as
mesmas perguntas. Sou médica e regressei recentemente do Mediterrâneo Central
onde me juntei aos esforços da sociedade civil nas missões de resgate e
salvamento. Espero que as minhas perguntas vos sejam de resposta tão fácil
como a facilidade com que votaram:
Sabem quanto tempo demora um dinghy/bote de borracha a desinsuflar? Uma pessoa a afogar? Um
coração a deixar de bater? Sabem quão assustador é assistir à voz a perder-se?
O corpo a deixar de lutar? O mar a engolir o que resta? O silêncio a
substituir os gritos, a morte a substituir a vida?
Sabem qual é a sensação de um saco de cadáver demasiado
pequeno para uma vida demasiado preciosa? Sabem qual é o cheiro que fica
entranhado? O cheiro fétido da perda por negligência irreversível?
Sabem quão escuro pode ser o mar à noite? Quão solitário?
Quão doloroso o abandono? Quão doloroso o silêncio do mundo que assiste inerte?
Sabem qual é a sensação de tirar uma pessoa da água?
Salvá-la como se estivesse salva para sempre? Sabem qual é a sensação de fazer
isso e haver
vozes que te tentam convencer que o que fizeste é um crime, errado, punível?
Sabem o que é estar desesperado a tentar retirar da água o
maior número de pessoas possível enquanto a milícia (também chamada por alguns
de guarda-costeira) líbia aponta armas de fogo na tua direcção? Sabem quem
pagou essas armas? Esses barcos? Essa “solução"?
Sabem o que é a dor de receber informação de um barco
em distress e não chegar a
tempo? Tarde demais? Tarde demais para sempre? Sabem o que é não poder ir
buscá-los ao fundo do mar?
Sabem que feridas doem mais, não só as que já trazem dos
países de onde fugiram, mas as feridas dos centros de detenção na
Líbia? Serão as violações sexuais? As torturas filmadas para extorquir
dinheiro às famílias? A violência física? As cicatrizes por curar? A escravidão
por trabalhos forçados? Os pesadelos que não deixam dormir? Os flashbacks de um horror que teima
em voltar?
“Hoje o vosso nome assina por baixo de tudo isso. É o
vosso nome que assina por baixo desta Europa hoje menos humana, menos
solidária, menos casa. É o vosso nome que assina por baixo desta Europa
obcecada pela militarização e protecção das suas próprias fronteiras, ignorando
— numa indiferença cruel — os que morrem à sua porta. É o vosso nome.”
Sabem o que é ter que explicar por que é que não podemos
desembarcar? Procurar palavras certas e descobrir que não há palavras certas
para “não são bem-vindos"? “Nenhum país vos quer acolher"? “O mundo
nunca vos vai ser casa"?
Sabem como é que se relembra a alguém que ainda é pessoa,
humana, única e valiosa quando se é tratado como nada? Sabem como é que se
contrariam as vozes que insistem que nem todas as vidas merecem ser protegidas
ou salvas? Independentemente de quem são ou do que fogem?
Sabem o desespero que leva uma mãe a pôr os filhos num barco
sem a certeza de que voltem a pisar solo firme outra vez? Sabem o que morre no
coração dessa mãe por ter de correr este risco?
Sabem o que são 17 mil pessoas mortas, em seis anos, no fundo do mar? Sabem
o que são valas comuns, sem enterro, sem luto, sem choro, sem flores?
Hoje o vosso nome assina por baixo de tudo isso. É o vosso
nome que assina por baixo desta Europa hoje menos humana, menos solidária,
menos casa. É o vosso nome que assina por baixo desta Europa obcecada pela
militarização e protecção das suas próprias fronteiras, ignorando — numa
indiferença cruel — os que morrem à sua porta. É o vosso nome.
Ler mais
Mas queria só descansar-vos numa coisa: se algum dia
encontrasse as 290 pessoas que votaram contra esta proposta num dinghy a desinsuflar
no meio do Mediterrâneo, acreditem que as salvaria, a todas, uma a
uma, sem pensar duas vezes, tal é o compromisso com a humanidade. Não com
políticas, mas com a humanidade. É isso que continuaremos a fazer e é isso
que devem esperar de nós: resistência, desobediência. Sem medo. E quanto à
morte desta Europa em que julgávamos viver, queria apenas informar-vos que já
fizemos o luto. Agora, começa a luta.
Sem comentários:
Enviar um comentário