* Jorge de Sena
Entre a esquadra que aclama
o couraçado passa.
Depois da fila interminável que se alonga
sobre o molhe recurvo na água parda,
depois do carro de criança
descendo a escadaria,
e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos,
o couraçado passa.
A caminho da eternidade. Mas
foi isso há muito tempo, no Mar Negro.
Nos cais do mundo, olhando o horizonte,
as multidões dispersas
esperam ver surgir as chaminés antigas,
aquele bojo de aço e ferro velho.
Como os vermes na carne podre que
os marinheiros não quiseram comer,
acotovelam-se sórdidas na sua miséria,
esperando o couraçado.
Uns morrem, outros vendem-se,
outros conformam-se e esquecem e outros são
assassinados, torturados, presos.
Às vezes a polícia passa entre as multidões,
e leva alguns nos carros celulares.
Mas há sempre outra gente olhando os longes, a ver se o
fumo sobe na distância e vem
trazendo até ao cais o couraçado.
Como ele tarda. Como se demora.
A multidão nem mesmo sonha já
que o couraçado passe
entre a esquadra que aclama.
Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda
que o couraçado volte do cruzeiro,
venha atracar no cais.
Mas mesmo que ninguém o aguarde já,
o couraçado há-de chegar. Não há
remédio, fuga, rezas, esconjuros,
que possam impedi-lo de atracar.
Há-de vir e virá. Tenho a certeza
como de nada mais. O couraçado
virá e passará
entre a esquadra que o aclama.
Partiu há muito tempo. Era em Odessa,
no Mar Negro.
Deu a volta ao mundo.
O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares
são largos.
Fechem os olhos,
cerrem fileiras,
o couraçado vem.
“Couraçado Potenkim”, Peregrinatio ad Loca Infecta, Lisboa, Portugal, 1969; ed. ut. Poesia III, Lisboa, Edições 70, 1989.
https://otempodascerejas2.blogspot.com/2019/11/nao-me-custa-reconhecer.html
Sem comentários:
Enviar um comentário