segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Isabel Costa - (Des)carta aberta a Manuel Bourbon Ribeiro

* Isabel Costa
Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

4 de Novembro de 2019, 13:22

Caro Manuel,

Tenho 28 anos e uma vida pela frente. Sinto e sei que posso fazer algo pelo meu país. Logo, vou pôr as mãos ao trabalho. Não vai ser fácil. Não é só o meu país que é difícil, é o mundo e a vida. Não é só a sua geração que sente dificuldade, são todas. Não há exclusividade, apenas a sua ilusão.

Se esta carta fosse escrita há 500 anos faria todo o sentido. O problema é esse. Os saudosismos e os queixumes só nos fazem andar atrás da nossa própria sombra.

É verdade que eu não frequentei um colégio de topo. Também é verdade que não o podia escolher. Mas, a julgar pela sua carta, ainda bem. A minha professora de História, aquela que tive numa escola pública, ensinou-me os grandes feitos de Portugal, assim como os seus custos e consequências. Também aprendi, com a minha professora de Português, que o “Quinto Império” simboliza um Portugal regenerado cultural e espiritualmente. Infelizmente, não temos como pedir algum esclarecimento a Fernando Pessoa, mas julgo que o autor não estava a pensar em investimentos privados. Entre a História e as Ciências, também houve espaço para educação sexual e formação cívica. Não se deve confundir sexo com identidade de género. São coisas muito diferentes, mas não se preocupe, há muita literatura sobre o assunto. Contudo, adquirir a sensibilidade necessária para perceber a diferença entre poder votar e mudar de género já é um processo mais complexo. São questões incomparáveis, dado que não apresentam as mesmas variáveis, o mesmo substrato, a mesma fórmula. Enfim, é confundir alhos com bugalhos.

“Não se deve confundir sexo com identidade de género. São coisas muito diferentes, mas não se preocupe, há muita literatura sobre o assunto. Contudo, adquirir a sensibilidade necessária para perceber a diferença entre poder votar e mudar de género já é um processo mais complexo.”
Talvez, nestes intensos dois meses de aulas de Direito, ainda não tenha aprendido que as eleições legislativas são para eleger os 230 deputados da Assembleia da República. O Governo é formado posteriormente, tendo em consideração a maioria parlamentar. E o Governo de que fala foi formado tão legitimamente como outras coligações passadas. A essência da Democracia representativa estava lá. Pode é não lhe ter agradado.

Também ainda não sabe que um dos indícios mais evidentes da demagogia e do populismo é confundir a “vontade do povo” com os interesses e opiniões do próprio. Maior liberdade implica maior escolha, mas não é apenas sobre aquilo que nos convém. A liberdade de escolha não se reduz a escolher um colégio em vez de uma escola pública, nem a políticas de incentivo ao investimento privado. A liberdade de escolha implica respeitar outros modos de vida, outras concepções de mundo e outros valores morais. A verdadeira liberdade nasce da tolerância que somos capazes de ter para com quem pensa de forma diferente. E o desafio da Democracia é saber construir um espaço público capaz de responder à diferença que existe entre nós. Entre mim e o Manuel. Entre o eu e o outro. Compreendo perfeitamente que o relativismo existencial assuste e preocupe, mas fingir que ele não existe não resolve problema nenhum.

Sem dúvida que há muito para melhorar, em todos os sectores da sociedade portuguesa: contudo, nem é tão fácil como pensa nem através das aparentes soluções que apresenta.

Sei que tem apenas 17 anos, mas dizer, através de um órgão de comunicação social, que o país “parece parvo” apenas porque não corresponde aos seus anseios, ultrapassa os limites da imaturidade.

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