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por ALBANO MATOS Ontem
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A Presença lançou 'Paralelo 42', o primeiro volume da 'Trilogia USA' do escritor norte-americano. Está em marcha uma operação de recuperação do autor, neto de madeirenses, que começou em Abril com a publicação de 'Manhattan Transfer'. Os outros dois volumes da 'Trilogia' - '1919' e 'The Big Mone'y - serão editados até ao fim do ano
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Hoje é quase um desconhecido. Mas há 70 anos era um dos nomes mais famosos e respeitados da literatura americana. Sartre chamou-lhe "o maior escritor do nosso tempo". E era um tempo - esse de entre guerras e mesmo o do pós-II Guerra - de grandes romancistas e poetas. Foi o mais inovador e, formalmente, o mais criativo e exigente dos autores da "geração perdida", um grupo que incluía nomes da envergadura de um Hemingway ou de um F. Scott Fitzgerald.
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O desconhecimento actual de John Dos Passos ainda é mais difícil de conceber se recordarmos que o seu trabalho em Manhattan Transfer influenciou obras como Berlin Alexanderplatz, que Alfred Döblin publicou no final dos anos 20, e que o Sartre dos Caminhos da Liberdade é devedor também das suas técnicas inovadoras. Norman Mailer confes- sou a sua admiração e influência, e outros nomes poderiam citar-se, como Günter Grass ou Alexander Soljenitsyne.
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Mesmo que a sua decadência criativa possa ter sido longa e penosa (o que muitos críticos contestam), como explicar a subalternização evidente de hoje e o desconhecimento das novas gerações? Uma explicação possível é a profunda viragem ideológica que ele iniciou em plena Guerra Civil de Espanha, após a morte do seu amigo e tradutor José Robles (ver texto em baixo). O amigo de Hemingway, o apaixonado por Espanha, o defensor da República contra o golpe franquista tornou-se um obstinado adversário das técnicas de "terror estalinista" a que assistira durante a guerra. Acabou a apoiar o senador Joseph McCarthy na "caça às bruxas" que este empreendeu, em plena Guerra Fria, contra todos os resquícios ou aparências de "vermelho" na vida política, social e cultural americana. O establishment cultural americano, maioritariamente "liberal", nunca lhe perdoou. A começar, aliás, pelo próprio Hemingway, que acabou a cobri-lo de insultos (sem nunca lhe citar o nome) no livro póstumo Paris É Uma Festa.
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De uma coisa Dos Passos nunca se arrependeu: do seu activismo social dos anos 20 e da luta que travou contra a execução de Sacco e Vanzetti, dois anarquistas ítalo-americanos condenados à morte por crimes que não cometeram e com provas grosseiramente forjadas. De certo modo, a publicação agora em Portugal das suas obras mais relevantes vem resgatar John Dos Passos de um esquecimento duplamente injusto: pela qualidade e inovação da sua escrita (uma surpresa para as novas gerações de leitores); e até por uma razão mais "nacionalista", já que o escritor era neto de um madeirense que emigrou para os Estados Unidos em 1830. Embora nunca chegando a falar bem português, Dos Passos aproximou-se progressivamente do país dos seus antepassados, que visitou algumas vezes, e tentou mesmo traduzir Os Lusíadas.
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Filho ilegítimo de um advogado (situação regularizada aos 12 anos, pouco depois de o pai se ter casado com a mãe), John Roderigo (sic) Dos Passos nasceu em Chicago, em 14 de Janeiro de 1896. Curiosamente, o pai era advogado de grandes empresas e defensor dos grandes impérios industriais, enquanto o jovem John Roderigo iria irromper na literatura com a sua denúncia das "duas Américas" (a dos ricos e a dos pobres) e os retratos de personagens que tentavam encontrar o seu lugar numa sociedade gigantesca em tudo, até nas injustiças.
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O "Joyce americano" (como também o qualificaram) não perdeu o carácter inovador nem a força da análise ou do desenho das personagens nas suas narrativas corais. A publicação de Paralelo 42 e dos outros livros da Trilogia USA arrisca-se, assim, a ser um dos grandes acontecimentos do ano literário.
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Um extracto para descobrir a 'Trilogia USA'
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O jovem anda depressa e sozinho através da multidão que se dilui nas ruas nocturnas; tem os pés cansados de horas a andar; os olhos sedentos da curva quente dos rostos, do pestanejar de uma resposta, do pôr de uma cabeça, do erguer de um ombro, do modo como as mãos soltam e agarram; formiga-lhe o sangue de anseios; o espírito é uma colmeia de esperanças que zumbem e picam; dói nos músculos a fome pelo saber das profissões, pelo trabalhar do cantoneiro com a pá e a picareta, pela destreza do pescador com o anzol quando puxa na amurada a rede escorregadia ao balanço da traineira, pelo rolar do braço do operário quando suspende da ponte o rebite incandescente, pela mão lenta e experiente do maquinista na válvula de pressão, pelo uso que faz o camponês de todo o corpo quando, gritando aos muares, saca a charrua do rego. O jovem anda sozinho à procura através da multidão com os olhos sedentos, sedentos ouvidos prontos para escutar, sozinho, sem ninguém.
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As ruas estão vazias. As pessoas comprimiram-se no metro, enfiaram-se em eléctricos e autocarros; correram em estações para apanhar comboios suburbanos; sumiram-se gota a gota em quartos e andares alugados, subiram de elevador a prédios de apartamentos. Numa montra dois pálidos empregados em mangas de camisa trazem um manequim de vestido de noite vermelho, debruçam-se a uma esquina soldadores com as suas máscaras sobre lâminas de chama azul reparando um carril do eléctrico, vagabundos cambaleiam bebedeiras, por baixo de um candeeiro impacienta-se uma prostituta triste. Do rio chega a sirene grave e prolongada de um vapor que larga amarras. Apita ao longe um rebocador.
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O jovem anda sozinho, depressa mas não o bastante, longe mas não o bastante (perdem-se os rostos de vista, dispersam-se as conversas em esfarrapados resíduos, esvai-se nos becos o eco dos passos); tem de apanhar o último metro, o eléctrico, o autocarro, galgar a prancha de embarque de todos os barcos, dar o nome em todos os hotéis, trabalhar nas cidades, responder aos anúncios, aprender os ofícios, aceitar os empregos, viver em todas as casas de hóspedes, dormir em todas as camas. Uma cama não basta, um emprego não basta, uma vida não basta. À noite, com a cabeça num remoinho de anseios, anda sozinho sem ninguém.
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Sem emprego, sem mulher, sem casa, sem cidade. Só os ouvidos ocupados a captarem o falar não estão sozinhos; os ouvidos ficam bem presos, bem unidos pelas gavinhas das palavras ditas, pelo desfecho de uma anedota, pelo escoar em cantilena de uma história, pela queda abrupta de uma frase; congregantes gavinhas de palavras entrelaçam-se pelas ruas da cidade, alastram pelos passeios, crescem ao longo de amplas avenidas arborizadas, aceleram com os camiões que partem para os seus longos trajectos nocturnos por estradas atroadoras, sussurram por caminhos arenosos junto de quintas decrépitas, ligando cidades e bombas de gasolina, hangares de comboios, navios a vapor, aviões tacteando as suas rotas; as palavras chamam em pastagens de montanha, vogam lentas rios abaixo até à foz e às praias emudecidas.
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Não foi nas longas caminhadas nocturnas por entre os encontrões da multidão que ficou menos sozinho, nem no campo de instrução de Allentown, nem durante o dia nas docas de Seattle, nem no bafo oco das noites quentes de Verão da sua meninice em Washington City, nem na sopa dos pobres em Market Street, nem no mergulho ao largo das fragas vermelhas de San Diego, nem na cama cheia de pulgas em New Orleans, nem sob o gume frio do vento do lago, nem nos rostos cinzentos que estremeciam com o engrenar das mudanças na rua por baixo de Michigan Avenue, nem nas carruagens para fumadores dos comboios rápidos, nem caminhando através dos campos, nem subindo a cavalo as áridas gargantas das montanhas, nem na noite dormida sem saco-cama entre os trilhos de urso gelados no Yellowstone, nem andando de canoa aos domingos no Quinnipiac; foi nas palavras da mãe a falarem de outros tempos, nas do pai a falarem de quando eu era rapaz, nas larachas dos tios, nas mentiras que os miúdos contavam na escola, nas patranhas do assalariado, nas histórias inverosímeis que os magalas contavam após o toque de silêncio; foi o falar que se agarrou aos ouvidos, o elo que no sangue formigou; U.S.A.
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U.S.A. é uma talhada de um continente. U.S.A. é um grupo de grandes empresas, algumas federações sindicais, um conjunto de leis encadernado a carneira, uma cadeia de rádio, uma rede de salas de cinema, uma coluna de cotações da Bolsa apagada e reescrita num quadro de ardósia por um estafeta da Western Union, uma biblioteca pública cheia de jornais velhos e livros de história com os cantos das páginas dobrados e protestos gatafunhados a lápis nas margens. U.S.A. é o maior vale hidrográfico do mundo orlado de montanhas e colinas, U.S.A. é um conjunto de governantes fanfarrões com demasiadas contas no banco. U.S.A. é uma data de homens enterrados com os seus uniformes no cemitério de Arlington. U.S.A. são as letras no final de um endereço quando estamos longe de casa. Mas acima de tudo U.S.A. é o falar das pessoas.
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in Diário de Notícias
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