quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Chegada - José Rodrigues Miguéis

José Rodrigues Miguéis



A CHEGADA





A Chegada (Abertura)

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(1935) O PASSO decisivo – a linha divisória das vertentes da sua vida passada e futura – foi o embarque em Southampton, a 4 de Julho, dia da Independência e portanto de festa para os mais de mil viajantes norte-americanos de todos os sexos – sobretudo o opulento – ali reunidos para regressar ao seu país. Ancorado ao largo por não haver cais de embarque com pé bastante para o acolher, estava o Normandie, fulgurante de luzes e promessas. Era a sua segunda viagem. O tumulto da multidão, em grande parte embriagada, era de ensurdecer – brados, apelos, risos, aclamações, saudações, toda uma agitação de grande acontecimento, como se a perspectiva de regresso à puritana monotonia do business lhe desse uma derradeira explosão de euforia demente. Os vestidos de grande moda, as peles (apesar da estação quente), as jóias, os perfumes (vindos de Paris com os usuários), as maquilhagens excessivas, as atitudes de exibição, eram (como só anos depois ele veria) os das luxuosas audiências nas noites de gala da Ópera ou do Ballet, e evocava as maneiras abusivamente livres da sociedade que Hemingway e Scott Fitzgerald pintaram: de tal modo sugestivas, que contagiavam de um sonho colectivo de destinos sem limites os próprios emigrantes naquela multidão perdidos. Ninguém lembrava ali as viagens fatais do Titanic ou do Lusitania, as tragédias marítimas da primeira Guerra Mundial, nem lhes ocorria a proximidade aterradora duma segunda guerra – a quatro anos apenas! Um vapor especial ia agora transportar todo aquele mundo esfusiante para a Cidade Flutuante que os esperava, de imensas portas escancaradas jorrando luzes de oiro para o negro da noite e das vagas. Já os criados de bordo, altos, sorridentes, impecáveis, encasacados como membros da Academia, acolhiam solenemente aquela horda dolarferente, orientando-a individualmente para as respectivas classes e camarotes, ou para as conveniências sem limites da grande e luxuosa nave onde a orgia iria continuar por mais quatro dias e noites, na deslumbrante atmosfera de arte, luxo, gosto e disciplina.

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As suas próprias agonias pessoais lhe pareceram assim atenuadas.

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(1935) ATÉ que um dia pôde enfim sorrir à distante memória, em Julho, quando a Cidade, activa e transbordante de mistério, o surpreendeu pela primeira vez. Os seus, aqui, dois únicos amigos esperavam-no, um a cada extremo do imenso cais-hangar, a essa hora crepuscular e mesmo anoitecido, a que o Normandie acostara para despejar os seus mil e quinhentos passageiros. Encontro de emoções! Não teve dificuldade alguma. Despachada em pleno tumulto a maleta do visitante – dois ou três livros, um dicionário, alguns papéis e as roupas estritamente indispensáveis (o fato único e o único par de sapatos, ambos novos, iam no corpo) – levaram-no a jantar num restaurante da Rua 8, no Village. O sítio, a sala antiga, a clientela de aparência escolhida, as conversas sussurradas, os risos, ao fundo o pátio onde se instalaram debaixo do toldo, entre exalações de culinária e de estivais verduras, os criados de jaqueta vermelha, pretos retintos, altos, impassíveis, um quase-nada desdenhosos – tudo lhe pareceu luxuoso e lhe deixou a voluptuosa impressão de se encontrar num país exótico, tropical, colonial em suma: no ambiente de algum romance inglês. E sobretudo o sentimento inesperado e surpreendente de liberdade: poder respirar fundo sem disso dar contas a ninguém. Apeteceu-lhe até tirar o casaco: olhando em volta, porém, não ousou fazê-lo. Era cedo no Tempo: isso viria dias depois, ao balcão dum fish-and-chips.

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Depois, na rua estreita e popular, o modesto apartamento acanhado e obscuro, acolhedor como um inventado lar de sonho ou ninho de amor, que a doce amiga soubera desencantar (só Deus sabe a que custo), e onde lhe abriu os braços a acolhê-lo – “A tua casa!” – a fim de que ele recomeçasse a vida em novas bases, com outros moldes e destinos… Sentiu-se levitado de esperança e felicidade como nunca tivera. Iria agora poder, em nome do Amor, esquecer tudo, sofrer tudo, incluindo o ciúme? O amigo morava fora da cidade e, discreto e cordial, retirou-se sem demora no automóvel, deixando-os sós. Não sozinhos, porque eram dois e estavam juntos, embora definitivamente unidos em Um- -Só, no ardor da paixão vulcânica e renovada: e porque o Amor, em torno deles, a envolvê-los, era uma terceira e bem-vinda presença e companhia.

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Amaram-se logo até ao esgotamento, com a fome, o ardor, o riso e as lágrimas do breve encontro inicial de Lisboa, havia meses, mas agora com a quase certeza dos inseparáveis. Logo ao romper do dia, satisfeitas as primeiras e urgentes exigências da paixão, e (nele) do esquecimento e da embriaguez, para lhe mostrar a sua gratidão e torná-la feliz neste seu novo estado sub-matrimonial (que ele, a bem dizer, não esperava), pulou no chão: “Vou fazer o café e trago-to à cama!” (Mimos!) Mas ela: “Deus te livre! É muito complicado e eu não estou habituada.” (Nem eu!) Mas então porquê? Havia primeiro o suco de laranja, depois era preciso aquecer o ovo à temperatura exacta, de relógio na mão; o café

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não era como em Lisboa, de saco, mas de cafeteira-filtro, ele ignorava a porção de café a usar moído muito grosso, e a água devia estar furiously boiling! Santo nome de!
Leite ela não tomava a não ser em casos extremos: bastava um fio de creme ou de leite evaporado. (Que é isso, evaporado?!) Àquela hora já o leite devia estar à porta, grosso de gordura no gargalo da garrafa de litro (ou quase). Ou espera, não! Alguém – a irmã dela decerto – o tinha metido no ice-box. Outra novidade: era uma espécie de pequeno armário de madeira, carvalho, com isolamento interno, um frigorífico primitivo onde, dia-sim, dia-não, se encaixava um formidável bloco de gelo que um homem trazia à porta (“Ice!”), e lhe iria (a caixa) dar sério(s) trabalhos de atenção: um descuido, e o gelo, derretido na tina ou bandeja, inundava a cozinha – principal divisão e casa de entrada do apartamento – com veementes protestos do vizinho de baixo, que era o encarregado do prédio. “Ah, e as torradas! Sabes usar a torradeira eléctrica?” Ficou encabulado de não poder com tantos milagres técnicos, mas que remédio: estava na América, terra deles! Ela tinha-lhe dito na curta passagem por Lisboa: “O senhor fica já prevenido: se algum dia for à – ou para a – América, está proibido de entrar na cozinha!” (Pois sim, mas foi ele que teve de lhe fritar dois ovos! E não tardaria – pressentiu – a armar em chef.)

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TUDO aquilo lhe deu que pensar: Não estaria ele disposto a exercer sobre ela, mulher independente, as suas tendências proteccionistas, paternalistas, que eram talvez a maneira sub-reptícia de impor a sua autoridade de macho? Não fosse ela ressentir-se também, como a Outra! Por sinal, dias depois, ao cortar as unhas dos pés com a velha tesourinha inglesa que herdara do morto pai (Senhor, já lá iam nove anos, e com a ditadura!), descobriu um novo termo de comparação: O homem e a mulher são como os dedos grandes dos pés: iguaizinhos – mas opostos! Ou então como a imagem do espelho:

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exactamente a mesma, mas do avesso ou invés! Que grande novidade! Mas era isso precisamente que tornava o Amor tão gostoso e possível, embora complicado. Ficou muito contente com essa descoberta, que viria ajudar a (re)solver muitos problemas futuros. Foi mesmo a primeira coisa que o exílio lhe ensinou. Para o celebrar, foi-se ao armário da cozinha, onde achara os restos de uma garrafa de vermouth doce, e bebeu um copo dele com gelo picado – que delícia, no tempo quente! Desde Madrid, onze anos antes, que o não provava. (Ah, que saudades da Carrera San Jerónimo! (1924) E do Hotel Lisboa, e de Maruja alva e loura, de luto!) Logo naquela manhã, já ela saíra, ao barbear-se ao espelho do lavatório (agora não lhe faltariam lâminas, embora a humidade do clima viesse a enferrujá-las também), vendo o suor a escorrer-lhe em bica da testa e das fontes para a cara, ele riu-se a perder: nunca se tinha visto suar! Lembrava-lhe o pai, com aquele ritual do beija-face e beija-mão, que tanto repugnavam aos filhos.

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O estio equatorial nesta alta latitude assombrava-o (Espera tu pelo Inverno e então verás!) A canícula de Julho, agravada pela humidade quase irrespirável, tornava imperioso o banho ou o chuveiro diário, às vezes a dobrar. Os vapores do shower, condensados, alagavam as paredes e os azulejos como num banho turco ou sauna.

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A vigorosa calisténica do Amor fazia-os suar mais, viscosos, peganhentos, aderentes os corpos! Muito eles se riam! (e se banhavam.) Isso é claro não os fazia desistir.

.Amavam-se a todas as horas disponíveis do dia e da noite, ao amanhecer e ao pôr-do-sol, cega e repetidamente, com um furor quase vingativo de recuperação.

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O Amor exasperado era o seu refúgio contra a solidão e a incerteza, as dificuldades, além de telescopagem dos sete anos perdidos. Ele quase não podia crer no que tinha sofrido naqueles últimos tempos. Sem Ela, que teria sido dele? Salvara-o da loucura, do suicídio quem sabe. Por isso a amava duplamente, como se tivessem reatado a vida desde 1928 sonhada. Eliminar o tempo intercorrente. Era a ela que ele tinha amado primeiro.

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Depois, tudo fora uma eternidade medida em desgostos, privações, sustos, desilusão.

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Por algum tempo ainda ele sentiu a trepidação violenta da popa do Normandie, espécie de contra-canto vibratório dos nervos, que de repente o acordava alarmado, supondo-se ainda a bordo. As molas e redes metálicas da cama rangiam em acordes de inusitada harmonia musical, ao ritmo acelerado do Amor. Na realidade aquilo não era cama, era um couch (lê-se cautche) ou divã desdobrável: a metade inferior arrumava-se durante o dia debaixo da outra. (Quando chegaremos nós a ter uma cama de verdade?) Certa madrugada caiu do divã, como sacudido por um sismo; que de facto houvera segundo os jornais: em Brooklyn, na outra banda do East River. Limitara-se a rachar algumas paredes caducas. Nem tudo, pois, era fácil ou aprazível. Imenso o contraste com a sua vida anterior, desprovida como fora.

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Vinha da Cidade supostamente do sol e do luar, dos vastos horizontes suburbanos, dos ares lavados e respiráveis, ainda livres então dos fumos e poeiras industriais: sim, mas onde chegara a sofrer de fome e outras privações, devorado pelos mosquitos sanguissedentes, e onde tomava banho no alguidar de lavar roupa: e achava-se de repente prisioneiro-livre dum bairro de ferro-velho! Logo nas traseiras ou ao lado daquele rés-do-chão havia um pátio e barracão onde se amontoavam carcaças e peças avulsas de automóveis ultra-usados, torres de pneus e mil outros artigos em estado de sucata, numa confusão de terramoto. Abria a janela, o ar entrava quente e sobrecarregado de limalhas, de exalações azedas e gordurosas, de poeiras e detritos de carvões e fumos sufocantes. Dez vezes por dia limpava o tampo da mesa (oscilante) de trabalho, coberto de um áspero filme de sujidade, e outras tantas vezes lavava as mãos. Chegou a recear-se vítima da mania de escrúpulos ou de limpeza! Assim o descrevia em humorosas cartas a dois ou três amigos de Lisboa, falando da solidão, dos trabalhos, ambiente, usos e costumes, dos projectos que tinha – mas nunca do Amor, por discreção ou prudência.

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Tudo isso lhe era naturalmente estranho, embora novo e épico de amor. Abafava entre paredes salitrosas, esfarelentas, mil vezes repintadas, como o soalho irregular, rangente, cor-de-sangue-de-boi ou mesmo negro, com cabeças de pregos salientes como nas velhas

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casas pombalinas da sua infância: quando ele o lavava a grandes águas de sabão e escova, desprendia um fedor acre de velhice, tintas e detritos estratificados, bolor e mijo de gato. Os fluidos químicos de limpeza afligiam-no (nariz sensível!): O asseio é tanto que até fede! Concluía a rir, com vontade de chorar. Ó cheiros da Natureza, onde estais vós! Quando poderia voltar a escrever? Porque tudo isto o estimulava. Era no Greenwich Village de universal reputação. Assunto não faltava. Devia adaptar-se. Tinha de. Era imperativo. O Amor, que tudo acende e transfigura – Che muove’l Sol e l’altre stelle! – transfigurava o ghetto em Paraíso.

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Ficava ali sozinho o dia inteiro, ardendo de gratidão, impaciência e desejo. Ela chegava ao fim da tarde, calma e sorridente (o sorriso de Mona Lisa!), e precipitavam-se nos desfiladeiros da paixão. Em seguida ela sentava-se à Remington portátil (quantos impressos a preencher!), erecta no seu vestido arrendado sobre um fundo laranja-fogo, e ele, num mocho ao lado, olhava-a de baixo para cima, em adoração: ela batia as teclas com rapidez, sorrindo sempre, mordendo as bochechas por dentro, hábito que nunca perdeu. De baixo, no subsolo, onde o janitor (de Jano, latino sabor arcaico – assim se chamava o encarregado) vivia com a mulher ou amiga, subiam àquela hora sons abafados da rádio, a voz duma torch-singer (Helena Morgan com certeza), grave e dramática, o mistério sensual e provocante das canções de night-club: mundo estranho e sedutor! Ele gostava daquilo, inspirado, vagamente antecipando não sabia o quê: O que nunca seria! Outras vezes eram ralhos: o homem tinha fama de gangster recuperado! Tudo isso o excitava e ajudava a compor o cenário, a torná-lo aceitável.

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Ou vinham visitas, quase diariamente a irmã mais nova, decoradora e marionetista, um anjo, ou então as lésbias, adoráveis raparigas, bem vestidas, muito femininas – nada da odiosa rita-macha Gertrude Stein!– às vezes em grupos, que lhe inculcavam indefiníveis apetites. Duas delas, sentadas no divã, com ele ao meio, puseram-se uma tarde a admirar-lhe os sapatos cor-de-castanha, feitos sobre medida por um bate-sola de porta de escada do Intendente, por oitenta (80!) escudos, e eram de facto uma obra-prima de arte portuguesa. Elas nem podiam compreender: por tuta-e-meia! Lisonjeado, já ele sonhava talvez convertê-las? (Algumas cultivavam o amor a dois carrinhos.) Com frequência aparecia o amigo e vizinho chileno, o B., ajudante de arquitecto, que uma tarde lhe trouxe de surpresa, imagine-se!: o secretário-geral do Partido Comunista! Um tal Hathaway, irlandês arruivado, tipo familiar de operário ou marujo, um “obreirista”, falando com volubilidade como um ex-anarquista convertido ao novo ideário. Até o fez pensar no Bento Gonçalves! (Não tardou em ser substituído por um sujeito de superior envergadura mental, e nunca mais se ouviu falar do proletariano Hathaway, simpático tagarela que tivera ao menos a curiosidade de conhecer um “camarada” português exilado!) Apesar de se exprimir com relativa facilidade em inglês, custava-lhe entender os americanos da base, aos guichés e balcões: se não ouvia bem e repetia a pergunta, eles irritavam-se, respondiam torto, eram europeus como ele mas já sem o verniz da paciência, deixavam-no desolado. Entendia muito melhor os judeus, hábeis em se exprimir (os cultos), como a Minna, quente e suave mulher, advogada e boa amiga, que silabava nitidamente:

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“Are you working hard?” Não perdia uma consoante! Ou faria ela de propósito para ele a entender melhor? Até uma noite os levou a conhecer um juvenil casal de amigos, judeus também, ele professor de Direito da New York University, e ela uma das mais lindas mulheres que ele vira e viria a conhecer em sua vida: destas que têm os olhos muito negros na alvura radiante da epiderme, febris ou fulgurantes, como se fossem deliciosamente lubrificados. Se entendem o que eu quero dizer! O marido era trotzkista. Travaram uma discussão vivíssima, ele (feito estalinista!), com o seu inglês ainda cru, levou a melhor, a mulher pugnou por ele, e parecia que o comia com aqueles olhos inesquecíveis, quase que se apaixonou por ela. O professor encabulado, cheio de ciúmes! Nunca mais se viram. Coisa frequente no país!

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Nesse tempo, graças às leituras marxistas, tudo lhe parecia claro e simples. Até agradar ao belo sexo! Com o B. e a amiga, a escultora Myrtila, tiraram retratos no pátio interior do prédio, de pouca verdura, sombrio, húmido e silencioso. A Estela, a doce e lânguida morena, ficava brandamente expressiva e feliz, com aquele sorriso de Gioconda! Ele, no seu fato cinzento de bom corte, e meia-estação… para o ano inteiro!, obra de um alfaiate de meia-porta da rua dos Fanqueiros – uma elegância inesperada!

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Estando sozinho em casa, se alguém batia à porta ou o telefone tocava, ele não respondia: por prudência e receio de não entender. Uma tarde não fez caso ao som da campainha, e daí a pouco, ouviu um grande sarrabulho na salinha de banho: alguém tentava entrar pela janela, sempre aberta, falando alto para fora! Ou eram ladrões ou era a Polícia! Correu a ver: era o (futuro) cunhado, o mais novo, de dezoito anos: “Joe! Não respondeste, julgámos que não estava ninguém em casa!

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Desculpa!” Não lhe parecia admissível entrar assim em casa pela janela da sala de banho, mas enfim!…

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Liberdades! Riram. O jovem trazia-lhe alguns objectos indispensáveis à vida doméstica.

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TINHA por vezes a estranha e feliz sensação de que a vida ia decorrer assim indefinidamente, modesta, anónima, segura, sem altos nem baixos, e tingida de Amor: o seu sonho! Sentia-se contente na obscuridade, longe de diplomas e formalidades que sempre odiara, Mister Qualquer-Coisa. Não dependia de ninguém – ilusória esperança que cedo seria desmentida! Só tinha pena que não houvesse peles-vermelhas! Tinha feito a sua educação americana nas obras de Gabriel Ferry, Mayne Reid, e Gustave Aimard, nas novelas de índios “rojos” (em espanhol), de Texas-Jack, menos de Buffalo-Bill, nos policiais de Nick Carter, Miss Boston, Nat Pinkerton, Patrick Osborn, cheias de racismo e de anti- -labor (que ele odiava!), e até na obra de um cônsul português, que o empolgara mas de quem esquecera o nome! E os Contos e alguns poemas de Edgar Poe! Só não leu (entre os dos índios) o Fenimore Cooper. .

Muito mais tarde viria a ler o de Tocqueville, e depois de
formado, o de D. Pasquet – História Política e Social do Povo Americano (1924), uma obra extraordinária francesa! E outros, como o inocente Kafka de 16 anos, Amerika, onde a Liberdade da estátua aparecia empunhando uma espada romana em vez do archote! Até parecia um dos (maus) folhetos de Nick Carter! Ora, tudo isso era América para ele: This is America for me! (canção.) Claro que, com o tempo, leria legiões de historiadores norte- -americanos, mas encheria páginas mencioná-los!

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Tão pobre como antes e mais. Morrer de fome não morriam, ela tinha o emprego modestamente pago, as traduções, e ele ia com certeza arranjar ocupação: havia o Cinema a traduzir (fia-te nisso!), e os amigos brasileiros… Lá com portugueses nada.. Nem sequer se apresentou no Consulado. Foi preciso vir de lá um seu antigo colega, agora cônsul-adjunto, visitá-lo: “Então você está cá há quinze dias, e nem sequer pia?!” Se ele era um exilado político!… Fica para mais tarde.

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Ao menos, agora podia meter a mão num bolso e encontrar alguns cobres, não muitos, para um jornal, cigarros, o café, e mesmo um cinema (a dois). Devia-o a ela. Querida mulher! Infelizmente, como “visitante” temporário, estava-lhe vedado ganhar dinheiro. Então como é que iam viver?! Sério problema. E ainda havia o perigo das “leis azuis”: sagrados mandamentos da moralidade puritana – nada de adultérios, mancebias, promiscuidades… (Mas aprovando o casamento de facto entre amantes conviventes: pela common law.) Entretanto, a prostituição prosperava a olhos vistos: clandestina, claro! Nas mãos dos mafiosos. Se ele até o Gorky fora convidado a sair do país, porque viera acompanhado da “amiga”! Isto apesar de dormirem em quartos separados, no mesmo hotel de luxo. A corrupção tem destas hipocrisias – ou vice-versa?

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Discutiam o assunto, apoquentados. Sendo ele ainda casado com Outra, não haveria o risco de que Ela (a Outra!) viesse surpreendê-los naquele estado? Haver-havia. Parece que até tinha parentes em Yonkers, cidade próxima. Talvez preso, ou mesmo expulso! Ah, com certeza… “Afinal eu não vim na suposição de vivermos juntos, pois não?” (E de outro modo como viveria ele?) A Estela olhou-o com atenta gravidade. Mas que estúpida, impensada maldade a dele, ao dizer isto! Sentindo que já nada os podia separar. Como é que ela tolerava semelhante insulto? “Só por causa das aparências…” – acrescentou ele, pior a emenda que o soneto. Porque cá não há “aparências”! Pois bem, na sua habitual serenidade ou fleuma, imperturbável, ela pôs-se a procurar com ele outro apartamento no mesmo prédio, ou porta ao lado, onde ele pudesse ir morar sozinho. Que ideia! Onde é que estava o dinheiro para nova renda? É claro que desistiram.

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A memória da Outra perturbava-o de remorsos. Tê-la-ia abandonado sem motivo suficiente? Mandara-a embora num cego impulso? Mas então não fora ela a culpada da ruína de todos os seus planos e sonhos? Só escrevendo um romance… Talvez no futuro! Era impressionante o contraste entre estas duas mulheres. Teria ele errado na escolha? De qual delas? Ambas o tinham apaixonado a seu modo. A poucos dias da chegada viera o cartão: “Estou em Lisboa à tua espera.” Essa agora! Os parvos ou malévolos amigos tinham-na informado da sua direcção, contra o combinado. Que fazer? Não respondeu. Mantinha-se porém a aresta ou divisória da decisão ou escolha.

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O passado, com que ele se esforçara por romper – o seu e os das suas mulheres – não estava pois tão enterrado como ele supusera, ao cavar-lhe de permeio a fossa do Atlântico. Vinha ela agora perturbá-lo, atormentá-lo, em plena liberdade e suposta felicidade! Como ele não aparecia, ela cedo regressou à origem. Vieram então as cartas de amigas e primas: hesitava em abri-las. “A Magda passa fome!” “Para continuar os estudos tem de servir à mesa na cantina dos estudantes, sofrer insultos…” A ele custava-lhe engolir a magra costeleta de carneiro do almoço pensando que ela sofria de privações. Se ao menos ele conseguisse passar de visitante a imigrante, e ganhar dinheiro! (Em quê?) Mas era complicado, se não impossível, e custava caro. Metia advogados. A angústia recomeçou a estrangulá-lo. A Estela daria por isso? Não ousava falar-lhe no assunto.

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Havia nele um jogo de ambiguidade, de duplicidade:

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num vago intento de represália (ciumento do passado dela!), disfarçadamente dúplice, deu em trocar com a Outra uma espécie de correspondência clandestina!

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Tinham afinal lembranças do passado em comum. Era uma deslealdade de todo o tamanho, um remorso a dobrar o remorso. Mas talvez ele achasse interesse nas situações dramáticas. Nascera para elas! Porque lá voltar ao passado, nem pensar nisso! E não devia ela ter ciúmes dele também?! O casamento dele fora uma verdadeira traição a promessas implícitas (isto é, nunca formuladas).

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Impassível, ela nem sinais dava de tal coisa. O que só agravava as dúvidas dele: não o amaria de verdade?

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Como é possível amar alguém e não ter ciúmes?! Ou não o amava ela com o mesmo grau de paixão que ele lhe consagrava? Sim, porque via agora claramente que nunca amara assim mulher alguma!

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Não podia propor-lhe a bigamia, o ménage-à-trois!

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Pois bem, ela iria mais adiante ao extremo inacreditável do sacrifício, ao tentar promover a vinda da rival! Se isto era admissível! Conceber semelhante absurdo. Era a fleuma, o fair-play, a sua eterna serenidade a disfarçar talvez a paixão? A insondável sensualidade, satisfeita sem o compromisso do amor?… E aqui a indulgência dela só lhe agravava o ciúme. Era um círculo vicioso! Foi quando a Outra – o que é a esperteza! – dissimulada, sournoise, supondo-se insubstituível e vencedora, alegou que o seu antigo professor de Biologia, esqueci-lhe o nome, que tanto interesse mostrara ter por ela logo ao primeiro exame, lhe prestava agora “um auxílio precioso”, uma “grande ajuda”, e que ela não o queria “magoar”! Desiludi-lo, talvez? Pobrezinho!! O nervo dela, só vendo. Era o cúmulo, a ameaça, a chantagem – mas, esperta de mais, deu a solução: ele expulsou-a de vez em carne e em espírito. Que se governasse. Eu também aqui estou a sofrer! (Exagero? Mas talvez não fosse). E suspendeu a secreta correspondência adulterino-matrimonial.

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Mas ia agora aprender que a Vida, como as moedas, tem sempre duas faces: Caras e Cruzes.

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(fim – provisório – do conto!)

(parte final, reservada)

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Chegada do Foragido
(1935) sim, havia o problema do ciúme retrospectivo, ainda não solucionado. O episódio da gatinha, por exemplo! Tinham-lhe dado o nome de Bendéry, por estranha coincidência o mesmo de um porto no país natal da Outra, em território anexado à Roménia desde a primeira grande guerra. Porquê? Esse era também – e aqui ele torcia-se todo – o nome do vapor francês em que a Estela viajara de New York a Lisboa e volta, naquela segunda e memorável visita por ela empreendida em 1932, para ver confirmado o boato do casamento dele com a “russa” (que o não era).

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Na tarde da despedida ela convidara-o a acompanhá-la a bordo e apresentara-o a um oficial taciturno (comissário de bordo?) que lhe oferecera um drink e o olhara com a fixidez da suspeita ou da rivalidade – aliás mútua! Ele não simpatizara mesmo nada com o sujeito.

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Instinto? Para quê esse convite? Seria propositado para o encabular? Mostrar-lhe que não era ele o Único no mundo? E agora, a presença da gatinha de poucas semanas de idade, oferta recente do mesmo cavalheiro, ou nele inspirada, a provar que, DOIS A TRÊS ANOS DEPOIS DAQUELA VIAGEM, o mareante continuava a frequentá-la, talvez nesta mesma casa! (Ou não, porque ela morava, antes de ele vir, numa Residência exclusivamente de mulheres.) Em todo o caso, a frequentar a roda do Village, que era a dela! Queriam prova mais segura?… Era a suspeita do laço odioso confirmada. E havia ainda a história de uma viagem de três dias a Espanha, supostamente a visita às três tias gaditanas! Então não lhe bastava Um só? Quantos lhe eram precisos?…

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O ciúme transbordou em cólera e reproches: Pois não via ela que isso a expunha e denunciava (o da gata)? E o vexava? Não pensara no efeito que isso podia ter nas suas relações? (Ou fizera-o propositadamente?) Seria ela – mas isto não ousou ele dizer-lho! – uma dessas aventureiras, em geral americanas, como tal conhecidas no mundo inteiro, e assunto de anedotas picantes entre os homens do mar e do turismo? (E então em Paris!…

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Ou-là-là! Les Americaines!) Um piloto seu amigo dissera-lhe um dia: “Estas gajas, assim que pisam as tábuas do convés de um navio, perdem logo todo o senso de pudor e dignidade, e entregam-se sem escrúpulos ao primeiro uniforme branco, engomado e agaloado com quem dancem um fox ou um shimmy, e lhes faça rapapés!”
Profissionais, umas e outros, da prostituição turístico-navegatória! A este pensamento ele explodiu: “Porque é que ao menos não te desfizeste da gata antes da minha chegada?! Ou julgas que eu não tenho memória?”

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Foi o que ela logo fez, prudentemente, sem um comentário: o corpo de delito, na dele, a pobre bichana que não tinha culpa alguma de tais simbolismos ou rumores! Quanto ao mareante, esse nunca mais (que ele soubesse) mostrou o nariz naquela casa ou arredores.

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Não era evidente? Tinham-no prevenido! Mas então já uma mulher não pode ter amizade ou gratidão a um homem, que não haja logo suspeitas de…? Ora, cantigas! E quem sabe? Todo o passado dela lhe pareceu comprometido, até mesmo antes do seu distante primeiro encontro (1928).

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A tortura, uma vez iniciada, cresceu, inchou, multiplicou-se. Tudo agora eram motivos de ciúme.

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Obcecado e algo traiçoeiro, na ausência dela, estudou-lhe furtivamente o passaporte USA, o mesmo ainda de há três anos, para verificar as datas, especialmente as da inexplicada e misteriosa viagem de três dias a Espanha, no cego impulso, segundo ele cria, de represália por o ter visto casado: as datas coincidiam! E esse não teria sido com certeza o primeiro encontro com o anónimo sujeito (ou objecto?) dessa excursão obviamente… quê? Amorosa? E que outra coisa podia ser?! Já decerto se tinham conhecido: onde e como? Nos anos da sua candura ou inexperiência, não lhe escrevera um dia, num pequeno retrato que lhe mandou, donde um outro figurante fora cortado: “O senhor é ciumento?” Como elas começam cedo e são peritas!

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Sentiu-se burlado, traído, prisioneiro duma cilada.

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E que fazer agora? Descontrolado, de passaporte em punho – a prova! – forçou-a a confessar o insanável deslize, cicatriz para todo o sempre indelével. A sua raiva era tal, que poderia ter assassinado alguém.

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Apertado na tenaz das suas próprias contradições, levou mais longe a feroz inquisição. Queria agora saber – sofrer! – mais: Quem, quando, onde, como? Qual outro Eterno Marido de Dostoievsky… Ela, assombrada mas calma, respondia-lhe como a um louco: não vendo nisso tudo, decerto, nenhum pecado passível de censura ou punição; numa paz de consciência que o exasperava como sintoma do “cinismo anglo-saxão”, ou talvez porque implicava a muda acusação de ser ele o autêntico culpado do transvio: pois se ele se casara, e sem prévio aviso à parte interessada, que merecia ou podia esperar senão aquilo? O quê? Então a culpa de um justifica a do outro?! Dois tortos não fazem um direito! Conteve a custo a raiva vingativa. Mas quando um dia, esquecida do insulto, numa hora de paixão, confiança e plenitude amorosa, ela, grata pelos incansáveis recursos dele, e querendo elogiá-lo, lhe confessou candidamente: “És tal-qual um homem com quem eu tive relações por seis meses!”, ele, tapando-lhe a boca (para a não estrangular), gritou: “Nem mais uma palavra!” – e retirou-se dela brutalmente… Pois quê, iria ele durar também só seis meses, apesar das suas comprovadas qualidade e técnicas viris, feito objecto de passageiro gozo ou capricho de irresponsável aventura!? ERA ISSO O AMOR? E quantos outros não teria havido no passado? Nesse caso, que faço eu aqui? A que vim? Desejou matar esse rival desconhecido, e para mais português! Quer dizer linguareiro ou gabarola, vivo algures, que se estaria rindo agora à custa deste pobre inocente! A sua reacção foi tão aparente na atitude e na expressão, que ela o olhou pela primeira vez alarmada sob a iminência da agressão reprimida. Era outro homem? Mas afinal – reflectiu ele – não era aquela comparação o mais alto elogio a que ele podia aspirar como homem? Não obstante, o rancor permaneceu, embora surdo.

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Na tarde em que o idoso e respeitável engenheiro X., antigo patrão dela, mas comprovadamente (pelo menos) não mais do que isso, ou apenas candidato, a veio visitar, decerto para conhecer e avaliar pessoalmente o rival de sorte (quantos anos mais novo!) que lhe ganhara, ele, depois de o ver sair, desencadeou uma tal cena, que a fez romper pela primeira vez num choro desatado e provocou o seu primeiro grito de revolta: “A esse, eu quero-lhe como a um pai! Se ele agora aqui voltasse a aparecer, eu corria a abraçá-lo!” Mas pensaria ela nas fatais consequências que isso poderia ter para ambos eles – nós? E não havia nisso um quase convite à separação? Percebeu, ele, o perigo que corria… Mas (de novo) como elas são hábeis em criar situações sem saída!

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Outras suspeitas o atormentaram. Começava a ver “amantes” (ex-) em todos os conhecidos dela, ali ou fora dali. As mulheres são tão fáceis! E que ganhava ele com isso, ele, o obcecado da monogamia? Queria perdê-la?

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Prová-la indigna do seu amor? Ir-se embora talvez – para onde e para quem? Pois se não tirava de tudo aquilo nenhum gozo masoquista! (E quem sabe…) Então?

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Deixar-se ir até ao desespero, ao suicídio? Depois de tanto sofrer? Por causa de uma mulher! Ele, que jurara antes cortar os testes do que submeter-se aos caprichos da Outra? (Pobrezinha!) Senhor, em que meio ele viera cair em busca do Amor! Antro de puritana inocência, ou de inconsciente corrupção? E se ela fosse outra Isadora Duncan, Lou Salomé, Frieda Van Richthofen (a do Lawrence), ou Alma Mahler, que pertenceu ao compositor, e ao Gropius, e ao Werfel, e ao Kokoshka, e sabe Deus a quantos mais?! Por essa ou outra ordem?

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Que poderia ele contra isso, se a amava? Aceitaria tudo resignado, como esses amorosos pouco exigentes? Abandonava-a? Sofreria para todo o sempre? Resignava-se a sabê-la livre? … Ah, lá isso!…

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O problema era insolúvel. Uma das amigas dela, que ele chegara a supor lésbia, fora ao ponto de dizer: “Oh, ele é delicioso! Cheio de nervos! Se um dia te fartares dele, eu tomo-o de trespasse!” Fartar-se? Trespassá-lo? Era então isso o sonhado Village? A promiscuidade, a libertinagem, a colectivização do sexo, o escambo dos amantes? Aonde chegara este mundo em que ele tentara ser e ficar puro ou casto e fiel? (Tentara? Ou apenas sonhara?) Nunca mulher alguma o tinha feito sentir assim tão mal: nem a Concha prostituta, nem a Dama da Casa das Rosas, burguesa, casada e mãe de filhos, que o tinham glorificado e de quem ele fugira!… E porque fugi eu? Jesus-Senhor – porque as não amava! Aí estava a explicação, o AMOR! E no entanto, influência talvez já do meio, ele próprio não tardou em sentir-se tentado a um pluralismo erótico, sonhando arranjar outras “amigas”… Com que meios? Amor-cadeia, a quanto obrigas! Não se estaria ele corrompendo também? Como é que estes homens (e outros) se deixavam embeiçar por mulheres que tinham conhecido um ou mais amantes ou maridos, mostrando uma sensibilidade comparável à de tantos outros machos da natureza?… Sempre o tinham intrigado: que gozo, que frescura achavam nelas? E não deixei eu a Magda inocente, a quem supunha idolatrar? O que é o ciúme senão uma nevrose de inferioridade, o temor de supor-se desvantajosamente comparado a, ou confrontado com, outro(s) macho(s)? A inveja, o despeito, o temor das íntimas aparências? E daí o querer assassiná-los! Não será o ciúme um disfarce do ódio, o seu primeiro passo? E no entanto, o sonho da pureza da Mulher, essa herança ancestral de que ele sofria… Bolas! Para que torturar então esta santa e amorosa mulher, que tudo fizera para a salvar e reaver, mesmo em segunda ou ENÉsima mão? Não era isso o Amor? Por que motivo não haveria entre ambos uma honesta reciprocidade?

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Que mais podia ele pedir ou esperar com trinta e quatro (e ela com trinta!) anos? Havia nela, além da bondade, boa-fé e equanimidade, um espírito de sacrifício e bem fazer, o culto do fair-play, da transigência e da concórdia, da liberdade individual, uma coragem e sensatez que pareciam contradizer a suposta libertinagem do passado!

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Talvez fosse essa a condição prévia, indeclinável, do fervor amoroso de que ele agora usufruía! Tinha sido escravo do preconceito, do prestigioso privilégio da pureza ou virgindade da Mulher, hipnotizado desde a infância! Iria então libertar-se dele? Ou era talvez a beleza visual do sexo intacto ou pouco usado que o fascinava? (Não lhe dissera um dia um amigo de mais de 70 anos: “Haveria no mundo outra coisa tão bela de contemplar?”) Uma espécie de kosher bebido na tradição?

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(Mas porque é que Deus as tinha dotado daquela membrana comprometedora?) Porque os homens são vítimas também das heranças culturais!

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Sim, tudo era afinal uma questão de cultura (ou de estética) mais que de moralidade. Estranha contradição entre o pendor para a castidade e a virtude, a monogamia, a fidelidade, pelas quais tanto sofrera, (sem porém deixar de as transgredir ocasionalmente) – e os seus actuais impulsos orgíacos, de promiscuidade boémia, de variedade “tipológica”? (“Me gustan todas!…”) Sofreria da influência dela? Ou do meio? Que direito tinha então de exigir dela uma virtude que ele próprio transgredira e contra a qual sonhava tornar a fazê-lo?

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Devia-lhe (além do amor) a possibilidade de vir a realizar a “obra” que sonhava e não sabia ainda qual fosse. Apoderou-se dele, pouco a pouco, uma gratidão admirativa, uma ternura e condescendência imensas, que lhe iam permitir viver em paz consigo próprio e contentamento dela. Pensou na famigerada Lou Salomé, e dos muitos homens a que ela pertencera talvez, sem que nenhum deles a possuísse em espírito – e só dificilmente em corpo! Recalcou quanto pôde a amargura do ciúme, procurando racionalizá-lo para se libertar e ser feliz. Porque todo o bem da vida consiste em dar e tomar, como com ela vinha aprendendo.

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Lá bem no fundo, porém, apesar de esforços e de aparências, e embora reconhecendo a sua própria (involuntária) culpa, e legitimando o passado dela, [talvez] nunca viesse a conseguir o milagre supra-humano do total perdão. Guardou um dormente sentimento de represália, por vezes activo, a que se julgava com direito por ter sofrido uma tão longa juventude de privação quase monástica. O que o levaria a fantasiar, e a cometer por vezes, infidelidades que só viriam a causar-lhes, a ele sobretudo, escusados sofrimentos.

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Nota sobre “A Chegada” de José Rodrigues Miguéis

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Encontrei o manuscrito de “A Chegada” em Julho de 2002, no espólio de José Rodrigues Miguéis na John Hay Library da Brown University, nos Estados Unidos. Na altura, andava eu a preparar uma antologia em língua inglesa, a ser publicada pela Editora Gávea-Brown, dos contos e crónicas “americanos” deste autor que, como se sabe, residiu em Nova Iorque durante mais de quatro décadas até à sua morte em 1980.

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Trata-se de um inédito, o esboço de um conto, ao qual Miguéis acrescentou uma “parte final reservada” com o intuito de o transformar em novela. Seja qual for o género literário a que “A Chegada” pertença (o autor parece ter encarado o assunto com uma certa fluidez, escrevendo crónicas que poderiam considerar-se contos e vice-versa), esta novela é bem representativa da obra de Miguéis, tanto em aspectos da técnica narrativa (uma certa teatralidade caracterizada por exclamações, auto-reflexões e apartes) como na forte influência autobiográfica. É este último aspecto que é particularmente evidente em “A Chegada”. As biografias do autor confirmam que Miguéis conheceu a futura mulher, Camila Campanella, portuguesa residente desde a infância nos Estados Unidos, por ocasião de uma visita que ela fez a Lisboa em 1928. No ano seguinte, Miguéis foi tirar um curso a Bruxelas, onde conheceu Pecia Cogan Portnoi, de origem russa, com quem se casou em 1932. Pouco tempo depois de regressar a Lisboa, o casal separou-se, e Miguéis, em parte por razões sentimentais mas também por motivos políticos, embarcou para Nova Iorque em 1935 a convite de Camila Campanella, com quem viria a casar-se em 1940. Ora “A Chegada” é precisamente a história desse reencontro de 1935 em Nova Iorque, reencontro que os nomes das personagens (Estela/Camila, e Magda/Pecia) mal disfarçam. Porém, se Miguéis queria proteger o “anonimato” das suas mulheres, o seu “foragido”, a uma certa altura, é identificado pelo nome Joe (Zé), e como se isso não bastasse, o autor intervém directamente na narrativa na forma de um “eu” 159 enunciador para ilustrar a coincidência exacta entre Miguéis e o seu protagonista masculino.

.É bom lembrarmo-nos que Miguéis era um escritor formado dentro da tradição do grande romance realista do Século XIX.

.Não aborda a temática autobiográfica como o faria um escritor pós-modernista, isto é, para baralhar os géneros literários e apagar a suposta linha divisória entre realidade e ficção. Em “A Chegada”, Miguéis escondeu-se atrás de uma narrativa ficcional motivado por aquilo que, segundo Northrop Frye, é uma necessidade tradicional e fundamental dos autobiógrafos:

.justificar-se por meio de uma confissão, uma “viagem interna”.

.Tudo indica que esta novela foi escrita, ou pelo menos revista, em Agosto de 1980, menos de dois meses antes da morte do autor. Nunca saberemos se Rodrigues Miguéis escreveu “A Chegada” para aplacar a consciência. Seja como for, a novela é um pequeno estudo psicológico sobre um confronto cultural em que um português, proveniente de uma sociedade patriarcal (e, ainda por cima, em plena ditadura salazarista) tenta adaptar-se às liberdades de uma civilização urbano-industrial. Posto de forma mais simples,é uma história de ciúmes.

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Na reprodução desta novela inédita, obedeceu-se às convenções ortográficas seguidas pelo autor, mantendo-se o texto original.

.Ficou corrigida uma ou outra gralha, emendado um ou outro deslize, produto talvez da longa vivência do autor com o inglês.

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Por outro lado, é interessante notar em Miguéis sinais de uma tendência que existe entre autores que vivem em situações multiculturais: a influência inevitável da língua circundante (por exemplo, “o nervo dela” para evocar a desfaçatez da mulher), e uma atitude um tanto lúdica em relação à língua (ver, por exemplo, “a horda dolarferente” ou a “telescopagem dos sete anos”).

.Tudo isso contribui para confirmar José Rodrigues Miguéis como uma voz única e original da literatura portuguesa do século XX.

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DAVID BROOKSHAW






inédito , publicado pela primeira vez em Ficções nº. 8

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