sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Rosa Pedroso Lima - O meu nome é desconforto


* Rosa Pedroso Lima, 
in Expresso Diário, 29/11/2019)


És uma fraude. És preta. Não serves para nada, mesmo morta.” A mensagem surge no telemóvel de Joacine Katar Moreira com um aviso sonoro e a deputada do Livre mostra-a. É uma, mas há mais. Muitas mais, com ameaças mais ou menos veladas, outras de puro racismo, de ódio e de desprezo. Desde que foi eleita para o Parlamento que se habituou a lidar com estas “ondas de ódio”, que lhe invadem também as redes sociais e para as quais, confessa, “não estava preparada”. Mas não mostra medo nem sinais de desistir. “Aguento tudo”, diz ao Expresso.

A vida foi-lhe sempre difícil e agora que aceitou começar a desfiá-la a pedido de muitos jornalistas, torna-se óbvio que há muito se preparou para pisar terrenos minados. “Até o meu pai me diz: ‘Quem ouve as tuas entrevistas, acha que tiveste uma vida horrível.’ E eu digo: mas era horrível, pai. Era mesmo.”

Nasceu há 37 anos, em Bissau, de uns pais tão jovens que a chegada da bebé os apanhou de surpresa e lhes provocou um susto tamanho que ainda Joacine não tinha três anos e já cada um tinha decidido ir à sua vida. A avó paterna, enfermeira pediátrica e mulher de armas, sempre acumulou as tarefas de mãe com as de avó. Acolheu o filho, a nora e a neta na sua casa de matriarca e, na hora da separação do casal, implorou a todos os santos para que lhe deixassem a miúda e seguissem com a vida deles.

E eles seguiram. A mãe voltou a casar e teve mais quatro filhos. Vive agora na margem sul do Tejo, aguentando as contas da casa com o salário de ajudante de cozinha. “Nunca parei de ver a minha mãe a trabalhar”, diz, admirando a “força física” e a resistência de tocar a vida para a frente que a mãe sempre demonstrou. O pai e as quatro madrastas com quem, sucessivamente, foi casando deram mais sete irmãos a Joacine. Há dois anos, o pai seguiu para Londres atrás da última mulher, é varredor de ruas e entrou agora na universidade numa licenciatura em Gestão. Joacine, ao todo, soma agora 11 irmãos, sete raparigas e quatro rapazes, com quem se dá “lindamente” e faz questão de acompanhar nos seus progressos de vida. Os mais velhos têm 32 anos, a mais nova oito.

A arvore genealógica da deputada tem ramos de várias raças, credos e feitios. Entre altos funcionários da elite cabo-verdiana da era colonial portuguesa, mulheres de fibra guineense e um muçulmano de origem libanesa, a família foi-se formando com muitos casos de amor, mas também com traições. Muitos sucessos e falhanços rotundos, que são narrados ao pormenor como um património histórico que não se quer perder. Dos pais, Joacine fala com admiração, imensa ternura, mas também com um toque de paternalismo, como se os papéis da sua história tivessem sido criados ao contrário, dando-lhe a ela a tarefa de os encaminhar na vida.

“São duas pessoas extraordinárias, mas não tenho a pedalada deles.” Sempre os tratou pelo nome — Elsa e Quinzezinho — e não hesita em “dar-lhes na cabeça” quando acha que saem dos trilhos. Sobretudo ao pai, que sendo “dos homens mais inteligentes que alguma vez encontrei” optou por não lidar com a vida como se estivesse sempre num ringue de boxe. “Nunca mostrou ambição especial, não quer que o incomodem, porque o objetivo dele não é enriquecer.” Mas, a filha mais velha é diferente, não é de desistir. “Chateei-o imenso, andei a martelar e há um ano ele, finalmente, inscreveu-se na faculdade”, diz orgulhosa das boas notas do pai, da facilidade com que aprende e do muito que tem pela frente.

Joaquim cumpre o currículo, mas também não falta aos recreios. “Não há semana que não vá a uma discoteca”, diz Joacine com um sorriso aberto. Nesse ponto,tal pai tal mãe, que não desiste de organizar almoços, onde junta meio mundo, sabendo-se a que horas começam, mas não nunca a hora de acabarem. “Nunca consegui acompanhá-los, são muito divertidos e animados. Eu tenho alma de velhota”, diz Joacine, que desiste a meio da tarde das almoçaradas da família, deixando a mãe espantada pelo abandono da festa quando “isto vai começar a animar”. “A verdade, é que me sinto velha. Não tenho pedalada para tanta energia.”

ALMA DE VELHA

Esta “alma de velha” é, em Joacine, quase uma marca de nascença. Ainda andava na escola e já se derretia a ouvir os cantos chorosos de Chavela Vargas, quando os amigos lhe propunham hip-hop, estranhando a tendência para aquelas coisas melosas que a amiga revelava. Gostava de ler, de estar sozinha, de escrever poemas que enchiam os cadernos e cadernos que ainda guarda, mas não mostra.

“Estava sempre a fazer perguntas”, diz Ana Varela, sua colega do colégio interno para onde entrou com oito anos. Ana era mais velha e recorda-se da miúda “calma, muito observadora, que gostava de estudar e de estar na dela” e que, por vezes, tentava aproximar-se do grupo das crescidas para participar nas conversas. “Dizíamos-lhe que ela era muito política, porque quando nos juntávamos para falar de rapazes ou de mexericos de miúdas ela vinha com perguntas difíceis e a querer falar de coisas sérias.” As outras estranhavam as manias e enxotavam, delicadamente, a miúda para os lados da biblioteca.

“É minha filha”, diz Maria Leonor Barbosa. Em Bissau, de onde nunca sequer pensou sair, a avó segue atentamente à distância os passos de Joacine, essa “criança muito bonita, muito inteligente e sempre pronta a aprender”que criou sem problemas, a par com os seus cinco filhos, noras, genros, netos e todos os que viessem para a sua grande casa de Bissau. Para a avó, que pontua cada frase com um riso ou mesmo uma gargalhada, a miúda sempre mostrou tendência para ir longe e o seu papel foi ‘apenas’ o de a deixar ir.

“Era muito fácil de lidar, obediente e muito curiosa”, e Leonor viu nela a promessa de um futuro cheio de coisas boas, que a terra africana nunca lhe poderia dar. Até hoje, é a ela que Joacine trata por mãe. “Uma mulher incrível”, diz Joacine. Com o avô Joaquim Tavares Moreira, ex-locutor de rádio e “um homem muito culto e sempre muito informado”, habituou-se a ouvir longas discussões e conversas intermináveis que ocupavam serões inteiros. “Na Guiné só se fala de política”, e não havendo propriamente um envolvimento direto nos assuntos da nação, o tema moldou a cabeça da miúda que, ainda não tinha idade para entrar na escola e já pedia para aprender. Leonor, mais uma vez, aceitou, e aos cinco anos Joacine passou a receber aulas em casa, aprendendo a ler e a escrever num instante. “Gostava muito e era mesmo uma criança muito inteligente”, diz a avó.

Aos oito anos, envia-a sozinha de avião para a Casa Mãe do Gradil, uma instituição de acolhimento de crianças, governado pelas freiras da congregação espanhola das Dominicanas da Anunciata. O pai já tinha vindo para Portugal e vivia em Alverca, mas a Maria Leonor nem lhe passou pela cabeça entregar a menina ao filho. “A minha avó não quis que eu ficasse com os meus pais. Na ótica dela, não queria ver nenhuma madrasta ou padrasto a interferir, nem na minha alegria nem no meu percurso.”

A ideia de que o futuro risonho passava pelo estudo tornou-se um farol guia. “Dei-lhe tudo para aproveitar o caminho certo”, diz Maria Leonor. E Joacine veio, sem medo, para Portugal. “Vim alegremente. Encarei o colégio como uma oportunidade única e adorei o espaço, os quartos monumentais e, claro, a biblioteca”, recorda. “Se era a minha avó que me estava a mandar, não podia haver problema.” A capacidade de Leonor em convencer a neta era tamanha que chegava mesmo para superar a dor do corte do cordão umbilical. Leonor preparou cuidadosamente a neta para todas as adversidades que, à distância de um continente, era impossível aplainar.

Desde logo, com a gaguez. A miúda sempre foi assim. “Os meus pais dizem que comecei a gaguejar na altura da separação deles”, diz Joacine. Mas a avó nega. “Sempre, mas sempre, foi assim. Desde que começou a falar” que se entupia nas frases, se atrapalhava nas consoantes e todo o seu corpo tolhia no esforço de voltar a articular os sons. A família habituou-se, e Joacine também. “Falar assim nunca a impediu de nada. Na escola sempre foi ótima aluna e não teve vergonha nenhuma”, lembra a avó.

Joacine também se recorda da conversa que teve com a avó antes da partida para a Casa do Gradil. “Era uma mulher muito inteligente e avisou-me de que iria para um espaço desconhecido, com pessoas desconhecidas, mas que não ia para ficar em Portugal. Ia só para estudar e depois regressava para contribuir para o desenvolvimento da Guiné.” A passagem pelo desconhecido tinha obstáculos à vista. “Avisou-me de que a minha maneira de falar era a minha e que eu me devia orgulhar por ser uma menina inteligente. Isso era o mais importante.”

RECUSAR A TERAPIA

“Não deixes de falar assim”, disse a avó, na despedida. E Joacine não deixou, tornando a gaguez uma parte de si, que os outros — todos os desconhecidos que lhe surgiram, surgem e vão surgir na vida — têm de aceitar. Tiago Lila, dos Fado Bicha, foi um deles. Da primeira vez que a viu, a agora deputada “gaguejou dramaticamente” e aquilo provocou-lhe “um desconforto e uma estranheza enormes”. Foi há cerca de dois anos, numa das “conversas às escuras” organizadas para promover a causa das mulheres africanas através da poesia e do debate que o cantor dos Fado Bicha contactou ao vivo com Joacine. “A primeira reação é de rejeição”, assume. Mas deu por ele a ir para casa a pensar naquilo, ao mesmo tempo que “ia ficando sensibilizado com a coragem e com a dignidade que ela punha naquela característica particular”. Ela é assim: “Não pede desculpa, não pede licença, não avisa”, diz Tiago, que passou da estranheza à admiração incondicional. Ao ponto de ter aceitado o convite para compor a letra do hino da campanha e de lhe emprestar a voz e a atitude para um dos vídeos mais vistos das últimas legislativas, com mais de 36 mil visualizações registadas, num partido onde nunca antes isso tinha sido sequer imaginado.

No vídeo, Tiago aparece maquilhado, shorts curtos e salto alto, cantando “quero sem precedente, Joacine presente”. Enquanto todos dançam e um casal de homens se beija na boca, a letra fala que o “poder é da sista”, que pretende dar “um pontapé no estaminé” e ser “a vanguarda na nova casa grande”. “Transgredir a linha fixa” é um dos motes de um hino onde, Tiago declama em espanholês: “Ay insolente, impertinente Joacine! La sociedad va tener que aguentar-te, maricon.”

As críticas à candidata têm direitos de autor. “Era o que as freiras lhe diziam, quando estava no colégio”, diz Tiago Lila que para compor a letra, pediu a Joacine para lhe contar a sua vida, numa longa conversa à mesa de um café. A candidata a deputada aceitou e ele pegou “num caderninho como o seu e tomei notas”, depois, foi só juntar as peças e compor o hino com os pedaços da biografia.

Os Fado Bicha falam na cor da pele, na originalidade do nome (“Juricema? Jupilene? Que raio de nome”), mas nunca na gaguez. Talvez porque o que seria um problema, Joacine fez questão de tornar uma característica pessoal. Henrique Raposo, colunista do Expresso, lembra-se da sua colega do curso de História, do ISCTE, cheia de “fibra e muito ativa na discussão política e cívica”. “Era, obviamente, gaga”, diz ao Expresso, “e a graça dela era mesmo não se encolher por isso”. Nos antípodas políticos da deputada do Livre, Henrique Raposo não hesitou em defendê-la num artigo de opinião, quando as redes sociais explodiram com vídeos de intervenções escorreitas de Joacine, atirando com caçadeiras de canos serrados sobre a alegada mentira da deputada que dizia que era gaga só para captar votos.

“Não é fácil, claro. Mas fica mais difícil para todos, quando você não resolve o seu ‘problema’ e é preconceituoso”, respondeu Joacine no Twitter depois de centenas de mensagens acusatórias. “Esta é a minha forma de falar e o mais importante é que não gaguejo quando penso”, responde. Só tentou a terapia já adulta, com o curso de História acabado e quando, pela primeira vez, não conseguiu superar um teste. Tinha sido chamada a coordenar uma exposição internacional sobre os arquipélagos dos Bijagós que, vinda de Paris, se instalava em Lisboa. Mas quando chegou o momento de divulgar o evento, ficou nos bastidores. “A minha gaguez impediu que defendesse o meu trabalho, porque não tinha eficácia na comunicação.” Viu outras tomarem o seu lugar no palco e, aí sim, temeu continuar para o resto da vida a ser travada no acesso a um emprego que desejava e para o qual trabalhou a vida inteira.

Passou, de facto, muitos anos a acumular pequenos trabalhos, desde a apanha de tomate, à limpeza de quartos de hotel, até à promoção de produtos nos supermercados. Foi assim desde os 16 anos e sem nunca perder rendimento escolar ou falhar na universidade. “Muito empenhada e briosa”, tentava “ser perfeita em todos os trabalhos”, referia a professora de História do 6º ano. Na altura, ninguém referia a gaguez da miúda que fechou o básico com recordes de cinco na caderneta e chegou ao secundário com médias tão altas que teve direito, no final do 11º ano, a uma bolsa de 120 contos (€600), assinada pelo então ministro da Educação, Guilherme d’Oliveira Martins, “no âmbito das medidas de combate à exclusão social e de promoção da igualdade de oportunidades”, diz o despacho oficial.

Joacine mostrou sempre apetência para a História, onde várias vezes teve 19 nos testes, em que aproveitava para ir desfiando a sua veia poética e política. Na prova global do 11º ano (que guarda ainda como recordação) termina uma resposta sobre o Humanismo Renascentista imaginando “sociedades perfeitas onde as leis são em pequeno número e a vida surge colorida”. Outras vezes, não deixava de lado a sua opinião. No 8º ano, falava do Concílio de Trento e dos “senhores da Igreja que tomaram decisões que ainda hoje tendem a envergonhar a Igreja”. O professor achou a resposta “muito incompleta” e travou o esticanço da aluna. “Isto é a tua opinião, e numa resposta de História devemos ser mais objetivos”, escreveu a vermelho o docente.


A ideia de uma vida melhor poder ser alcançada através do estudo foi sempre o seu mantra. “Estudar, estudar, estudar. Era o meu foco. Tinha a certeza de que não tinha resistência física para aguentar uma vida tão dura como aquela que a minha mãe sempre teve.” Fez o curso de História sempre a trabalhar, e seguiu para mestrado. Mas a Academia foi um balde de água fria. “A universidade anulou completamente o meu ânimo. Foi horrível e milhares de vezes pensei em desistir”, diz. O ambiente fechado, burocrático, autoritário estava longe da Escola de Atenas com que sonhava nos tempos do colégio. E, no final, a saída para o mundo profissional, mesmo com um canudo na mão tornava-se mais difícil com a evidente dificuldade de comunicação. Só aí aceitou entrar em terapia da fala. “Desisti ao fim de mês e meio”, confessa. “Os exercícios à frente do espelho, as repetições de sons e a correção dos movimentos de boca”, em vez de ajudarem, causaram-lhe “mais ansiedade” e, sobretudo, retiravam “espontaneidade e alegria” “Rejeitei completamente a terapia. Precisava de entender a minha gaguez, mais do que de a resolver.” E nunca mais lá pôs os pés.

“UM MONSTRO”

“Negra, gaga e pobre.” Joacine Katar Moreira apresentou-se assim, sem “enganar ninguém”, no último comício de campanha eleitoral do Livre para as legislativas de outubro. Nessa noite, poucos acreditavam ainda que alcançaria um lugar em São Bento, e a candidata pôs logo as coisas em pratos limpos. “Não fui escolhida por uma direção partidária, mas por militantes e simpatizantes que acham que esta é a época de desconfortar. Ora, eu sou esse desconforto”, avisou.

Os dados estavam lançados. Joacine prometia uma “mudança”, assumia que “não ia ser fácil” e tornava claro que estava pronta para o combate. “Nós estamos à frente. No século XXI precisamos de um Parlamento para o século XXII e, no Livre, somos políticos do século XXII.” O partido que, até então tinha girado em torno do pacato Rui Tavares e das suas ideias de uma Europa para todos, estranhou a novidade. Mas gostou.

Rafael Esteves Martins estava entre os que olharam com espanto para o discurso da candidata. Doutorando em Londres, pela clássica universidade de Oxford, ainda estava longe de pensar que poderia vir a ser assessor, chefe de gabinete e braço-direito da primeira deputada do Livre e apresentado ao país como o ‘homem que vestiu saias’ no dia da tomada de posse. Naquela noite, três semanas antes da entrada no Parlamento, Joacine “falou durante mais de meia hora, sem teleponto, sem texto e com um discurso de grande rigor”, conta ao Expresso. O impacto em Rafael foi total.“Foi amor político à primeira vista”, garante.

Ele, que tinha sido fundador do Livre e se habituara a participar na vida do partido à distância e online, achou que tinha chegado a hora de mudar. Tinha participado na campanha, colado cartazes e seguido aquela mulher cheia “de garra”. Na primeira oportunidade que tem para falar com Joacine diz-lhe a sangue frio: “Tens noção de que és um monstro?” A candidata estremece perante tão estranha forma de elogiar o seu carisma, a capacidade de comunicação e, sobretudo, a coragem. “Etimologicamente, um monstro é uma coisa que se mostra, mas que não tem referente”, explica Rafael Martins. E Joacine, para ele, “concentra em si uma série de questões por resolver na sociedade portuguesa”. Dar-lhes corpo, voz e presença é “um momento histórico” a que decidiu não querer faltar.

O convite para integrar o gabinete da deputada surgiu em cima da hora e com surpresa total. Já eleita deputada, Joacine convidou Rafael Martins para almoçar. Precisamente no dia em que se reuniu com António Costa, nas primeiras negociações alguma vez tidas na sede do Livre com um primeiro-ministro, prestes a tomar posse. “Foi um bocado surreal porque estávamos à mesa no restaurante e as televisões só passavam imagens dela à saída do encontro”, relata Rafael. Joacine gaguejou muito, mas acabou em sintonia com o futuro Governo nas intenções de prosseguir o “diálogo que consideramos absolutamente necessário à esquerda”.

“Aceitei logo” e ainda a sobremesa não tinha chegado já se mudavam as agendas do professor de Oxford. A tese de doutoramento em Literatura Portuguesa do século XVIII será entregue em abril de 2021, mas será feita entre reuniões políticas, agendamentos parlamentares e tudo o que São Bento lhe vier a trazer. E há sempre muito. Logo no dia seguinte, a deputada estreou-se no “Programa da Cristina”. A seguir foi o Goucha e a TVI, entre perfis, entrevistas e muita polémica nas redes sociais. Ora porque a deputada gaguejava, ora porque o assessor usou saias, ora porque disparava a torto e a direito, a histeria passou a dominar nos comentários online sobre Joacine Katar Moreira.

NO MEIO “DOS BRANCOS TODOS”

Com Daniel Oliveira, o caso azedou mesmo para os lados da esquerda. Bastaram as duas primeiras intervenções de Joacine no Parlamento para o colunista e ex-bloquista vislumbrar uma “conversão súbita do Livre à agenda identitária”. “Onde está o partido de Rui Tavares?”, questionava, concluindo que o partido se radicalizava a olhos vistos e correndo “desembestado e sem direção política por um campo de minas”.

Joacine não aguentou. “Andei a suportar as ondas do Daniel Oliveira, de que a minha candidatura era um tiro no pé, que não servia para nada, etc., etc. Ainda não tinha aberto a boca e já estava a apanhar com críticas”, diz. Desta vez não fica calada e responde, também no Twitter: “Daniel, a sua postura, embora mais polida e mascarada de bom senso, não tem sido muito diferente da de muitos associados à direita e sua extrema na procura de descredibilização constante do Livre e da minha escolha.”

Daniel Oliveira reage com um misto de paternalismo: “Nem comento comparar-me com a extrema-direita. Prefiro acreditar que isto foi fruto do imediatismo das redes.” E Joacine não se fica. “Não foi imediatismo das redes. Nem amadorismo. Inaptidão ou deriva de qualquer coisa. Bom feriado”, responde.

Por vezes, das redes sociais para o mundo real vai um passo de anão. E das críticas anónimas ou de frequentadores habituais de Facebook ou Twitter, as acusações passaram a surgir do interior do próprio partido, com vozes a começarem a levantar-se contra a conduta da deputada. No Parlamento, Joacine forma um núcleo duro com Rafael Martins e Ana Lobato, escolhidos por ela, entre militantes e apoiantes do Livre mas, acima de tudo, da sua confiança pessoal. E começam a surgir os primeiros melindres internos. O partido é novo, não tem aparelho, nem quadros, nem experiência. É como um sapato ainda sem terreno pisado: cria bolhas e mal-estar nos primeiros tempos de utilização.

A deputada faz parte do ‘grupo de contacto’ do Livre, essa direção colegial de 15 elementos, eleitos em primárias diretas por militantes e simpatizantes. Rui Tavares saiu no último congresso das tarefas partidárias executivas e falhou a candidatura a eurodeputado nas últimas europeias. O caminho ficou aberto para uma nova liderança oficial. E Joacine, porque estava no lugar certo e com os holofotes todos ligados sobre si, tornou-se a sucessora natural.

A subida no partido foi meteórica. Ela, que se filiou apenas há três anos, foi convidada no início deste ano a apresentar uma candidatura às diretas do partido que iriam definir os candidatos às eleições que se avizinhavam. Rui Tavares “falou comigo e não tive como dizer que não”. Ela que tinha sempre defendido a necessidade de as comunidades africanas se chegarem à frente e avançar na participação política e cívica, não tinha agora margem de recuo. “A verdade é que sempre considerei a política partidária uma arena perigosíssima. Preferia mil vezes mais ser analista política”, confessa. “Nem sei como vim aqui parar.”

A verdade é que a sorte trocou-lhe as voltas. Quando saíram os resultados das primárias do Livre, Joacine surge em primeiro lugar na corrida às legislativas. “Não estava à espera”, garante, “mas só me restou arregaçar as mangas, interiorizar isto e seguir em frente”. Com um orçamento de 10 mil euros e um microaparelho partidário a suportar a campanha, inventou quanto pôde e rodeou-se de amigos.

A família “achou natural” o que estava a acontecer-lhe. E quando foi eleita e ganhou um lugar de quatro anos no Parlamento só Maria Leonor “ficou muito apreensiva”. Quando a filha/neta lhe ligou a contar que tinha sido eleita, foi dia de festa na Guiné-Bissau. Mas a avó temeu o pior. “Tu aí, sozinha, no meio daqueles brancos todos”, disse a Joacine, avisando-a do perigo. “Eles não se traem uns aos outros.” E, na verdade, ainda não tinha visto nada. Um mês e meio depois de chegar ao Parlamento, o Livre choca de frente com a sua dirigente e primeira deputada eleita. A abstenção de Joacine num voto de condenação dos ataques israelitas sobre a Palestina apresentado pelo PCP leva o partido a explodir em acusações de “contrassenso”, de “falha no trilho” sempre seguido pelo Livre e de quebra de comunicação e de lealdade. Rui Tavares confessa-se “perplexo” e Joacine responde com um “fui eleita sozinha, a direção do Livre nunca me apoiou”, ficando de pé no lugar que conquistou a pulso. Afinal, foi toda a vida assim.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O regresso dos palermas ou "25 de Abril Sempre!"

por josé simões, em 24.11.19


"Comunismo nunca mais!" uma frase que não posso gritar. Lamento. Nunca vivi sob um regime comunista, não sei o que isso é. Do marcelismo fascista lembro-me, era puto mas lembro-me. Lembro-me de familiares presos e torturados, lembro-me dos meus pais a ouvirem rádios estrangeiras à socapa, com o som muito baixinho dentro da própria casa. Lembro-me dos homens de plantão 24 sobre 24 horas na porta da rua, semanas seguidas, só porque o pai acompanhou o Vitória de Setúbal na Taça UEFA com o Spartak de Moscovo, "lá está ele", dizia a mãe depois de espreitar por detrás do cortinado. Tinha estado com os russos era comunista merecedor de vigilância, a lógica da PIDE. Lembro-me das cargas da GNR a cavalo no 1.º de Maio na "Ladeira das Fontainhas", a rua das conserveiras em Setúbal. Lembro-me dos tiros disparados contra as varinas vestidas de preto e de tamancos, em dias de greve pelo aumento de 2 tostões, "hoje não vais brincar para a rua", dizia a mãe. Lembro-me da fome e da miséria no Bairro Santos Nicolau do ir ao mar antes da moda do peixe assado no carvão ao preço dos olhos da cara, e lembro-me de ser o único a usar sapatos na turma de filhos de pescadores e de varinas das fábricas, na "escola do Sousa" ao lado do agora Rei do Choco Frito, à época uma taberna de chão de areia, calcetada a caricas de gasosa AUA para traçar tintos goelas abaixo, nas bocas de cigarros Três Vintes, Quentuques [de Kentucky] e Definitivos. Descalço o ano todo quando o Inverno ainda não tinha morrido às mãos das alterações climáticas. Os mais afortunados usavam chinelos de enfiar no dedo, se fosse hoje era bué chic, usavam Havaianas. Lembro-me dos funerais no cemitério da Nossa Senhora da Piedade dos soldados mortos na Guerra Colonial, com as salvas de G3 pelo pelotão formado no meio da rua, trânsito cortado, e as varinas que andavam sempre de luto, o luto eterno porque morria sempre algum familiar e o luto nunca acabava, a chorarem atrás do caixão que ninguém abria. Lembro-me das bolas de futebol caídas no quintal da PIDE, frente onde é hoje a sede do PSD ao Bairro Salgado, do tempo de jogar à bola na rua, tocarmos à campainha "olhe, se faz favor, a bola caiu no quintal" e do PIDE regressar de sorriso de orelha a orelha com a bola rasgada à navalhada na mão "toma lá". O tempo dos filhos da puta. Lembro-me do dia das matrículas, e das carradas de folhas que era preciso entregar, a mãe preencher as minhas e ainda mais algumas de colegas meus que depois eram assinadas "com o dedo" pelas respectivas mães. Lembro-me dos meus amigos que, terminada a 4.ª Classe, foram para o mar com o pai ou ser servente numa qualquer profissão, que sempre era melhor futuro que andar ao sabor das marés. Lembro-me dos rapazes para um lado e raparigas para outro na escola, e lembro-me do padre de Moral e Religião, avesso a Jaroslav Hasek, que distribuía carolada pela turma como se não houvesse amanhã, e que andou depois a distribuir propaganda do CDS. E não me esquecendo disto mas não conseguindo lembrar-me de outras memórias mais dolorosas, por mais que me esforce, é um mecanismo de defesa do cérebro, dizem, reparo que de cada vez que os suadosistas querem desvalorizar a importância do 25 de Abril aparece sempre uma palhaçada qualquer a evocar o 25 de Novembro. Portanto, 25 de Abril Sempre, Fascismo Nunca Mais!
 https://derterrorist.blogs.sapo.pt/o-regresso-dos-palermas-ou-25-de-abril-4044362

sábado, 23 de novembro de 2019

Natália Correia - Queixa das jovens almas censuradas

 * Natália Correia



José Mário Branco - "Queixa das almas jovens censuradas"

Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
Com as cabeleiras das avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa historia sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Somos vazios despovoados
De personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco
Dão-nos um pente e um espelho
Pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
Um avião e um violino
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida, nem é a morte

Poema de Natália Correia
Música de José Mário Branco
sobre um desenho de Jean Cocteau (1889-1963)

terça-feira, 19 de novembro de 2019

José Mário Branco – Mudar de Vida

* José Mário Branco


José Mário Branco – Mudar de Vida


Hesitei se havia de escrever esta canção,
porque a vida não se pode resumir numa canção.
Mudar de vida?
Mudar de vida é uma questão que ainda não está resolvida.
Mas o que é a minha vida, se não a própria vida que está contida em toda a força perdida, em toda a vida perdida, consumida, passada, repassada, ultrapassada como se não fosse vida…
A minha vida? Não há!

Uma vida mesmo vida só pode ser um espaço que está dentro dum abraço que se dá ou não se dá.
Vida verdadeiramente é sempre a vida da gente que penosamente, insistentemente, inexplicavelmente, vai fazendo andar a roda que fabrica a vida toda.
Uma vida separada se parada
Se a vida seca e mais nada
Se for vida distraída, alienada, sozinha, irrelevante e auto-ignorada, já não é vida vivida.
Uma vida separada, não é vida nem é nada.
São corpos minerais, nem plantas nem animais,
Pois quem vive distraído à conta do seu umbigo,
Quem não é capaz de dar a vida pela vida dum amigo
Está sozinho com os outros, está sozinho consigo,
(pelo menos é assim que eu vejo as coisas).
Então? Mudar de vida pra quê?
Em tudo o que foi vivido procuramos um sentido
O que essa vida nos diz, uma matriz, um pendor, um sonho, um amor ou um desamor, uma paixão, uma razão… ou uma Grande Razão!
Por baixo de cada vida há essa roda que gira com os ratinhos lá dentro a fazer a roda andar.
As coisas materiais, as coisas essenciais,
O pão, a casa, os sinais que são a vida directa,
A existência concreta,
As coisas que estão à mão, que nos parecem normais,
A paz, o pão, a saúde, a habitação.
Então? Mudar de vida?

Mudar de vida
Mudar de vida
Acordar
Acordar o pensamento

Vida verdadeiramente é sempre a vida da gente que penosamente, insistentemente, inexplicavelmente, vai fazendo andar a roda que fabrica a vida toda.
Muitos de nós nem dão conta…
Achamos isso normal…
Mas afinal… e a hora de trabalho que há em cada coisinha?
E o cansaço da mãe com as panelas na cozinha?
Como se chama a Judite que me fez esta camisa?
Onde está o Eduardo que fez este projector?
E onde para o Vladimir que ergueu aquela parede?
Estão não sei onde!
Do outro lado daquilo a que nós chamamos vida!
A vida deles, para nós, não é bem vida…
É, digamos assim, mercadoria produzida…
São umas coisas!
Umas coisas que vivem sei lá onde, sei lá como… Viverão?
Essa gente, tirando alguma excepção, não está confortavelmente aqui sentada à minha frente a ouvir a minha canção.
Vai vendo telenovelas, olhos perdidos no espaço, a digerir o cansaço, a descansar do vazio…
São corpos desbotados, destinados a serem recarregados,
Que amanhã é outro dia em que vão trocar, por pão,
ou tudo ou nada,
mais e mais mercadoria, fabricada, montada, embalada e transportada,
Que para eles não vale nada!
Estes de que falo são 66 % da gente do meu país.
Há mais 24 % que sobrevivem nas pregas do pesadelo.
Sobram 10.
Dos 10%, são 8 os que duma ou doutra forma levam cheios de arrogância as migalhas de biscoito que são o seu resgate de esperança.
Estão nas tintas para tudo, a começar por si próprios…
Ficam os tais 2 %, os que a gente nunca vê, mas que nos vêem a todos.
Quem fabrica um parafuso, uns sapatos, uma estrada, qualquer coisa fabricada
Recebe um x pela hora, pelo gesto, pela vida emprestada,
Que não é vida nem nada.
Amortizado o capital constante
, pagas as despesas todas,
incluindo o esperto que teve a ideia,
fica então a mais-valia,
que é a demasia entre o valor da mercadoria e os gastos do patrão – o esperto que teve a ideia, o “empreendedor” que pôs os outros a viver para ele…
Porquê? Porque os valores são outros…
-Quais são os teus valores, Zé Luis?
-Os meu valores?
-Sim, quais são os teus valores?
-Ah, o amor, a liberdade, a igualdade, a fraternidade,
a amizade,
a justiça, ora aí está, a justiça
Ah e também a honestidade!
-E tu aí, quais são os teus valores?
-Os meus valores?
-Sim, quais são os teus valores?
-Os meus valores estão na bolsa de valores…

(Ao que isto chegou…)

Nos anos 20 do século do mesmo nome,
para tentar deter o flagelo social da sífilis,
que dizimava pobres e exércitos,
o biólogo alemão Ehrlich fechou-se no laboratório.
Tentou uma experiência, e falhou.
Tentou duas, falhou.
Três, quatro, cinco, seis, falhou sempre.
Até que conseguiu um tratamento: Chamou-se tratamento Ehrlich 606.
Mas ainda não conseguia curar a doença sem matar o doente.
Então Ehrlich continuou.
Mais uma, e outra, e outra…
A cura, finalmente conseguida, chamou-se Ehrlich 914.
Quantas vezes já tentámos nós?
914?
Ainda não…
606?
Ainda não…
Mas talvez, quem sabe, dez, vinte?
Qual é o preço da esperança?
Acordai, acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis.
Vinde no clamor das almas viris arrancar a flor que dorme na raiz!
Estamos de punhos fechados, mas temos as mãos nos bolsos…
Então? Mudar de vida?

Mudar de vida
Mudar de vida ….

Não disputeis, curvado o corpo todo, as migalhas da mesa do banquete.
Erguei-vos e tomai lugar à mesa!
Mudar de vida!
Mudar de vida!
Levar o sonho de Antero às mulheres do Vale de Ave, às da “Zara”, às da “Maconde”, às da “Rohde”, Aos homens da Pereira da Costa,
Aos jovens da Cova da Moura, da Arrentela, da Apelação e da Alta de Lisboa, meus irmãos!
Aos homens da Auto-Europa e da Azambuja,
Ao milhão de desprezados,
Ao lixo do capital,
Aos seres humanos dispensáveis, descartáveis, recicláveis,
A esses olhares perdidos dos nossos telejornais,
Levar o sonho de Antero aos humilhados e ofendidos.
Erguei-vos e tomai lugar à mesa!
Libertar a mais valia que está na mercadoria!
Mostrar a vida escondida por baixo do sofrimento!
Recordar a força,
Acordar a força motriz,
A energia matriz,
Donde nasce o movimento,
A raiz…

Mudar de vida!
Mudar de vida!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Dar
Dar um pontapé na morte!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Romper
Romper o cordão da sorte!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Dar
Dar as mãos para o caminho!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Mudar
que isto não muda sozinho!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Pôr
Pôr em marcha o movimento!

Mudar de vida,
Mudar de vida
Acordar
Acordar o pensamento



José Mário Braco / Luís de Camões - Mudam-se os tempos

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Ref: E se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.



sábado, 16 de novembro de 2019

JPP - Ó homem, os cajados são para suportar o corpo na idade e nas inclinações das serras!



José Pacheco Pereira

OPINIÃO

É nestas alturas que eu tenho muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos manifestantes.
16 de Novembro de 2019, 6:03

Um secretário de Estado, responsável por uma história pouco esclarecida a propósito das concessões mineiras do lítio, foi a um dos locais onde é suposto ir haver as ditas minas. Foi a Boticas, e escolheu muito mal a terra, por razões que adiante se verão.

Chegou lá e havia um ajuntamento hostil à sua espera. O homem encolheu-se e voltou para trás. Chamou a GNR e voltou lá de novo, pensando certamente que a protecção dos guardas metia medo aos habitantes de Boticas. Não meteu medo nenhum, e ele nem saiu do carro, encolheu-se de novo, retirou-se, para depois fazer a habitual acusação de que estavam lá pessoas de Montalegre, que convinha dizer-lhe que é um pouco mais acima.

É nestas alturas que eu tenho muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos manifestantes. Posso falar à vontade, porque já me aconteceu coisa semelhante e posso dizer-vos que, após um momento tenso, o PSD que estava “proibido”, por umas milícias justiceiras de entrar numa terra de Aveiro, entrou solitário e acabou por ganhar as eleições. Está na imprensa da época. Mas, pelos vistos, a escola de Soares está em desuso.

Eu conheço bem Boticas, onde dei aulas, naquela diáspora que os professores tinham que fazer. E foi um daqueles tempos que nunca esquecem. Aprendi muito sobre a natureza, a mesma natureza que as minas agora ameaçam. Aluguei uma casa na aldeia de Pinho, e lembro-me de que tinha havido um grande incêndio entre Boticas e Pinho, estando tudo enegrecido. Aprendi como o negro “comia” a luz dos faróis. Aprendi também o que era ter uma nuvem no andar térreo, onde havia a arrecadação da lenha, e o primeiro andar da habitação de onde, na varanda, se via um sol luminoso e quilómetros de serra. Descia-se e era nevoeiro cerrado, meia dúzia de metros abaixo. E o frio que fazia brilhar uma paisagem imaculada, que ia do Barroso até Vidago, onde começava outro mundo.

Havia também outra natureza que se aprendia. Uma vez, o então chefe de secretaria da escola, que era retornado, perguntou-se se eu não tinha medo de morar sozinho numa casa isolada na montanha. Eu disse-lhe que não, não era zona de lobos, e que a minha única preocupação eram cães vadios, e à beira da cama tinha uma caçadeira, por isso estava confortável. “Não, não era disso. Eu queria saber se não tinha medo do Diabo”. E depois contou-me que uma vez o Diabo lhe tinha puxado os cobertores da cama. Bom, com o Diabo não havia muito a fazer. E havia os meus jovens alunos que vinham das aldeias da serra com uma espécie de pistola de madeira e fulminantes para assustar os lobos e que pediam autorização para escrever na “coroa” da página. E um padre que parecia saído de um livro de Aquilino, com quem almoçava num restaurante sobre o qual Ferreira de Castro tinha escrito, e que me dizia que quando as mulheres lhe pediam para as abençoar a elas e aos bois, lhes dizia “vade retro mulieribus”, e elas ficavam muito contentes. Não me esqueço do que devo a Boticas e, num irrelevante agradecimento, ajudei a recuperar alguns elementos para a monografia da terra.

A beleza de Boticas não era resultado de uma opção, mas da pobreza e da interioridade. Não havia fábricas, o mais parecido era a empresa das águas de Carvalhelhos e, nas aldeias à volta, havia a economia de subsistência do Barroso e do Larouco, algum comércio de gado, e de produtos florestais. Também não me esqueço do que me disse um homem da terra “não sei como o senhor doutor gosta disto, são só serras e árvores”.

Por isso, assustei-me com a história do lítio, não sem alguma dúvida sobre como os homens e as mulheres de Boticas iam receber a possibilidade de não ser “só serras e árvores”. Nestes anos, todos Boticas estragou-se alguma coisa mas pouco. A sua população tem muito serviços essenciais, melhorou a sua condição e diminuiu o isolamento das aldeias da montanha. Mas de Montalegre até ao Douro, vários ecossistemas foram destruídos, desde as cumeadas cheias de eólicas, até aos vales dos rios desaparecidos debaixo das barragens e, com eles, as velhas linhas férreas herdeiras do Fontes Pereira de Melo.

O secretário de Estado, que não saiu de dentro do carro ao ver uns cajados, trazia consigo um dilema que não é fácil de resolver, uma promessa de empregos, de dinamismo económico local, com o preço da destruição do meio ambiente disfarçado de juras sobre a inexistência de impacto ambiental. O que os meus amigos transmontanos sabem de ciência certa, é que em todos os sítios onde houve essas promessas, nem houve emprego estável, nem desenvolvimento para as terras, mas situações de destruição irreversível do valor ecológico, turístico, cultural das suas terras. E sabem também que alguém lucrou muito, chegou lá, sugou tudo de valor, e depois deixou os estragos.

Colunista

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Alain Oulman e Manuel Alegre - Meu amor é marinheiro e A Trova do Amor Lusíada


Amália Rodrigues - "Meu amor é marinheiro", por Alain Oulman

Meu amor é marinheiro
E mora no alto mar
Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.

Quando chega à minha beira
Todo o meu sangue é um rio
Onde o meu amor aporta
Seu coração - um navio.

Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos e a liberdade.

Meu amor é marinheiro
Quando chega à minha beira
Acende um cravo na boca
E canta desta maneira.

Eu vivo lá longe, longe
Onde passam os navios
Mas um dia hei-de voltar
Às águas dos nossos rios.

Hei-de passar nas cidades
Como o vento nas areias
E abrir todas as janelas
E abrir todas as cadeias.


Assim falou meu amor


Adriano Correia de Oliveira - Trova do Amor Lusíada"

Meu amor é marinheiro
Meu amor mora no mar.
Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos da liberdade.

INSTRUMENTAL

Meu amor é marinheiro
Meu amor mora no mar.
Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.

INSTRUMENTAL

Meu amor é marinheiro
Meu amor mora no mar.

Trova do Amor Lusíada - Manuel Alegre

Meu amor é marinheiro
quando suas mãos me despem
é como se o vento abrisse
as janelas do meu corpo.

Quando seus dedos me tocam
é como se no meu sangue
nadassem todos os peixes
que nadam no mar salgado.

Meu amor é marinheiro.
Quando chega à minha beira
acende um cravo na boca
e canta desta maneira:

- Eu sou livre como as aves
e passo a vida a cantar
coração que nasceu livre
não se pode acorrentar.

Trago um navio nas veias
eu nasci para marinheiro
quem quiser pôr-me cadeias
há-de matar-me primeiro.

Meu amor é marinheiro
e mora no alto mar
seus braços são como o vento
ninguém os pode amarrar.

Quando chega à minha beira
todo o meu sangue é um rio
onde o meu amor aporta
seu coração - um navio.

Meu amor disse que eu tinha
uns olhos como gaivotas
e uma boca onde começa
o mar de todas as rotas.

Meu amor disse que eu tinha
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade.

Meu amor falou-me assim:

Ó minha pátria morena
meu país de sal e trevomeu cravo minha açucena


vale mais ser livre um dia
lá nas ondas do mar bravo
do que viver toda a vida
pobre triste preso escravo.

Eu vivo lá longe longe
onde passam os navios
mas um dia hei-de voltar
às águas dos nossos rios.

Hei-de passar nas cidades
como o vento nas areias
e abrir as janelas
e abrir todas as candeias

hei-de passar a cantar
pelas ruas da cidade
erguendo na mão direita
a espada da liberdade.

Ó minha pátria morena
meu país de trevo e sal
sou marinheiro e não esqueço
que nasci em Portugal.

Assim falou meu amor
assim falou ele um dia
desde então eu vivo à espera
que volte como dizia.

Eu creio no meu amor
meu amor é marinheiro
quem quiser pôr-lhe cadeias
há-de matá-lo primeiro.

Sei que um dia ele virá
assim muito de repente
como se o mar e o vento
nascessem dentro da gente

como se um navio entrasse
de repente na cidade
trazendo a voar nos mastros
bandeiras de liberdade.

Meu amor é marinheiro
e mora no alto mar
coração que nasceu livre
não se pode acorrentar.

in 30 anos de Poesia, Manuel Alegre, Círculo de Leitores


POEMA DE ORLANDO DA COSTA PARA MARIA LAMAS (1955)

* Orlando da Costa

Porque trazes na voz a voz das companheiras
Companheira te chamamos

Porque no teu olhar se alargam os olhos que semeiam e vigiam
o sol a todas as alturas, o sol dos meninos e das colheitas
Porque nele se tornam mais límpidos os olhos das namoradas
Companheira te chamamos

Porque nele gelam as lágrimas do medo e da dor
Gelam e estalam desfeitas num pranto de calor
Porque nos teus olhos continuam acesos os olhos vendados de encontro às paredes

Porque trazes no peito o sopro das nossas irmãs
O sopro resoluto do trabalho, o verde e dourado sopro que branqueia o pão
O sopro das que amam
E amando crescem e envelhecem ao nosso lado
Das que amam
E amando tombam em cada dia num só momento por milhões partilhado

Porque caminhas na terra dividida
Por uma estrada aberta pelo esforço dos povos
Onde cada presença é um apelo e cada apelo uma conquista
Porque até o sol remoça na neve tranquila dos teus cabelos
E o vento sopra-te com a mesma força que a nós
Companheira te chamamos

Porque as palavras na tua boca
Têm a medida do mundo e a face dos mortais
Porque no teu ventre a fome e a vida se completam
Porque no teu rosto fala o tempo até nós
Mãe te chamaríamos
Companheira te chamamos



poema de 1955, à data com publicação proibida
in Sete Odes do Canto Comum
(guardado no espólio da PIDE, na Torre do Tombo), recolhido pela Doutora Regina Marques,
lido na Homenagem a Maria Lamas,
na Biblioteca-Museu República e Resistência