domingo, 28 de fevereiro de 2021

Maria João Antunes - Como nossos pais

 

Os dias foram sendo passados assim. Sem o calor do abraço, sem o carinho do beijo. Sem a dignidade de decidir .Créditos Manuel de Almeida / LUSA

OPINIÃO|PANDEMIA

* Maria João Antunes

Um ano está para fazer desde a última vez que ao meu pai foi permitido almoçar com os filhos, passear na rua, tomar um café, dizer tontarias em família.
Foi com o meu pai que visitei o jardim zoológico pela primeira vez. As ruínas de Conímbriga, Viana do Castelo, Guimarães, a Régua, entre outros tantos sítios. Foi pela mão do meu pai que participei pela primeira vez nas jornadas de trabalho da construção da Festa do Avante!. Na escola primária, foi o meu pai que me ajudou a montar um pequeno jornal dos alunos, onde já questionávamos os atrasos das obras na área circundante à escola. O meu pai, homem curioso, desapegado dos bens materiais e amante da cultura, da música, das terras e dos povos, vive hoje numa estrutura residencial de apoio a idosos. A vida, a vida dele assim o ditou. Tem 71 anos e o AVC, do qual já recuperou, não o impediu de continuar a contar histórias.
Conta uma, de que gosto particularmente, sobre o meu bisavô, nos seus tempos de emigrante em França. O meu pai usa esta história para falar de um povo que cultiva a arte do desenvencilhar. Então, ao meu bisavô, certa vez em França, pela primeira vez numa obra, foi-lhe dada a tarefa de construir um pequeno muro. Como a ferramenta tardava e o parco conhecimento da língua não ajudava, o meu bisavô começou a fazer o muro com o que tinha à mão. Quando o encarregado francês apareceu com a ferramenta, já o muro ia alto. Deu-se um momento de tensão entre os dois mais um colega que ia traduzindo a conversa. Dizia o encarregado que «agora vai ter que se deitar o muro abaixo que não está aprumado, que desperdício, ó homem que foi fazer». E o meu bisavô lá explicava que não, que o muro estava bem; que, na falta de ferramentas, tinha usado uma malga com água para verificar o nível e que, com uma pedrinha atirada de cima, se tinha certificado do alinhamento dos tijolos.
O meu pai conta histórias sobre tudo um pouco, mas, nos últimos anos, mais da Guiné, onde foi voluntário à força nos anos 70, às custas do Fascismo. Iluminam-se-lhe os olhos, abre um sorriso traquinas e lá nos conta mais umas peripécias. Entre feitos e feitios, é uma pessoa genial que, aos 71 anos, conserva a beleza da ingenuidade de uma criança com a matreirice e o voluntarismo de um adolescente. Foi sempre assim e não seriam os anos a mudá-lo.
Ultimamente, não tem havido espaço para histórias nem malandrices. As conversas, ora cara a cara ora na internet, foram mais pesadas e o tempo, sempre cronometrado, foi-se gastando; um ano, mais coisa menos coisa.
Um ano está para fazer desde a última vez que ao meu pai foi permitido almoçar com os filhos, passear na rua, tomar um café, dizer tontarias em família.
Os dias daqueles que têm mais de 60, mais de 70, mais de 80, foram sendo passados assim: sem brincadeira, nem passeio, nem conversa. É assim para aqueles que vivem em lares e para aqueles muitos milhares que vivem sozinhos. Sem o calor do abraço, sem o carinho do beijo. Sem a dignidade de decidir.
Quase doze meses depois de o Governo ter decretado o primeiro estado de emergência, pergunto-me se o último ano foi mesmo de vida, se foi mesmo vivido. Não soube a vida; foi antes uma espécie de purgatório. Pergunto-me se desistimos de viver; se tudo aquilo de que abdicamos no último ano valeu a pena.
Pergunto-me se um país pode abdicar tão facilmente da vida. Se uma nação que valoriza os seus trabalhadores, e cujo objetivo fundamental é o bem-estar dos seus cidadãos, lhes pode suspender a vida.
Lembro-me do vídeo que circulou na internet de um agente de segurança a mandar uma mulher mais velha para casa com violência. Recordo a pressão praticamente consensual, no início de tudo isto, sobre os mais velhos, para que não saíssem – que era para o bem deles que lhes falávamos alto e que por eles decidíamos.
Primeiro, a culpa vestiu-se de anos; depois, virou-se para a juventude rebelde que se juntava nas ruas; mais recentemente, atirou-se às famílias que se juntavam em convívios ao domingo ou que jantaram na noite de Natal.
Lembro-me que, no verão, o bicho não explicava o acréscimo de mortes – então alguém explicou que era o calor: um pico de calor que matava muitos velhinhos. Mas em Janeiro, quando as coisas apertaram, a terrível vaga de frio que entrou casa adentro não teve nenhuma importância – o problema era afinal o Natal. Não importou para as explicações que as nossas casas sejam de construções fracas ou que não tenhamos aquecimento ou dinheiro para o pagar – estas coisas não têm influência nenhuma nos problemas respiratórios e nos sistemas imunitários, como se sabe.
Recordo também que, no início, ainda o Governo andava de lá para cá sem saber muito bem o que fazer, já as pessoas na rua usavam máscaras e desinfetavam as mãos. Malditos portugueses, sempre tão insurretos e pouco civilizados!
Lembro-me que, a certa altura, se afirmou que, na falta de mãos ou estrutura, se obrigaria os privados a ajudar no combate à pandemia. Ora, a requisição transformou-se em contrato chorudo, enquanto aos pais que ficaram em casa com crianças pequenas se roubou 34% do salário.
Lembro-me ainda do choro de Agosto pelo turistar dos ingleses. A quem lhes suplicou, não foi atribuída nenhuma culpa.
Quando se vive num país em que mais de um milhão e meio de pensionistas vive com menos de 300 euros, não nos devia admirar que, em apuros, se culpe o pobre, o velho, o que vive só do seu trabalho.
O meu pai trabalhou muitos anos, muitos mais anos do que diz o registo da Segurança Social. Em muitos desses anos, o patrão escusou-se a descontar e, quando chegou a altura, a reforma ficou nos 300 e poucos euros. Os governos não corrigiram a situação – quando muito, vão dando borlas aos patrões que se dispensam a descontar, aumentando taxas e taxinhas e deixando que os preços da água, da luz e da comida aumentem sem parar.
Não sei se na Suécia há pensões de 300 euros. Também não tenho a certeza se as casas são boas, mas imagino que o aquecimento não deva ser um luxo como em Portugal, afinal o país chega a temperaturas bastante baixas no inverno. Parece que morreu muita gente na Suécia atacada pelo bicho – diz que foram mais de 12 mil pessoas. Por aqui, já ultrapassamos as 16 mil e há um ano que o meu pai não almoça com os filhos. Parece também que na Suécia, tão atacada pelo bicho, a mortalidade não-Covid não subiu. Parece que se continuou com a vida normal das consultas, cirurgias e outras coisas. Por aqui, morreu muita gente sem ser do bicho – diz que até houve gente que teve enfartes e não foi às urgências. Tão insurretos os portugueses!
Acho que está na hora de almoçar com o meu pai. Vou telefonar para o lar e pressionar. O homem até já está vacinado, por que raio não há-de sair da clausura?
Porque é que não saímos todos da clausura? Quando dermos por ela, a prisão não é só lá fora: instalou-se na cabeça e aí é que já não nos libertamos.

- DOMINGO, 28 DE FEVEREIRO DE 2021
«Como nossos pais» é uma canção composta em 1976 por Belchior e eternizada pela voz de Elis Regina.

A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

https://www.abrilabril.pt/nacional/como-nossos-pais

Filipe Chinita - dos 100 anos


* Filipe Chinita


dos 
100 anos
ou 
de um
uno 
partido
comunista
.
para mim...
todos 
os que comigo lutaram
e se acreditam e dizem 
comunistas...
- estando dentro 
ou fora 
dele 
e
mesmo em toda 
a sua possível 
diferença.
de mim - 
me 
foram e me são... 
para sempre!
partido
.
fj
21.41
28.02.2021
sempre! 
na inteira verdade 
política! de cada 
um de 


Filipe enviou a mensagem: 28 fev às 21:50

 

José Gameiro - Um hino à vida

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA
 
* José Gameiro  

Sempre tive alguma atração pela passagem para o outro lado, para o nada absoluto

Não posso dizer que sempre quis ser médico. Talvez tenha sido pelos meus 15 anos, depois de uma doença grave da minha avó. Marcou-me muito a relação com o colega que a tratava e que falava comigo como se eu fosse um adulto. Explicava-me todos os procedimentos e, quando ela já estava melhor, fez-me uma visita guiada à enfermaria. Pude então ver de relance um quarto em que estava um doente cheio de tubos e fios. Mal eu sabia que viria a ser intensivista.

Fiz o curso sem sobressaltos, concorri ao Internato de Medicina Interna e fiquei. Durante esta fase estagiei nos CI e aí tive a certeza absoluta que a minha vida iria ser ali. Além daquela muito divulgada ideia que salvamos vidas no limite, sempre tive alguma atração pela passagem para o outro lado, para o nada absoluto. Conheci-a nesses meses. Transpirava segurança e a calma de quem já tinha tratado centenas de doentes, muito graves. Tinha uma máxima que nunca mais esqueci, “aqui não se fala da morte, nunca se sabe se os doentes nos ouvem”.

Passaram dois anos até ficar efetivo no hospital. E voltei para a unidade onde tinha aprendido. Mal sabia eu o que me esperava... Ela já era a chefe. Nos primeiros meses, os doentes eram os habituais, politraumatizados graves, com multifalência de órgãos, sépsis, cardiovasculares, complicações pós-cirurgia. Trabalho de rotina, duro, mas satisfatório, uma urgência interna semanal, com a responsabilidade de todos os doentes. E veio a pandemia. Os primeiros doentes muito graves, a tristeza de perdermos alguns e a alegria, quase euforia, de tirarmos muitos do fundo.

A pouco e pouco o ambiente foi mudando. Tornámo-nos mais próximos, por vezes quase confidentes. Os pequenos intervalos para um café ficavam, por vezes, parecidos com festas de finalistas. Claramente o stresse tinha de sair por algum lado. Uns cantavam, outros contavam anedotas, cada vez mais arrojadas. Depois voltávamos a vestir os fatos de proteção individual e ficávamos ultrafuncionais, com gestos seguros, a cumprir os protocolos há muito estabelecidos.

Tínhamos instituído equipas de dois, para alguns procedimentos. Um pouco como trabalham dois pilotos num cockpit de avião. Um faz e o outro verifica.

Foi ao puncionar uma artéria mais difícil que senti a mão dela a guiar a minha. Mesmo com luvas, não me foi indiferente. Fez um sorriso aberto, que só vi nos olhos, por trás da viseira.

— Vês como é fácil, já fizeste tantas, estás cansado, a mão tremia-te.

Seguimos para a doente seguinte. Uma senhora com 90 anos, sedada há duas semanas e ainda com um prognóstico muito fechado. Antes de ser entubada pediu-nos para, sempre que possível, lhe deixarmos junto ao ouvido o telefone. Tinha muitas playlists, se pudéssemos ir mudando, agradecia. Na dúvida, tentámos respeitar. De Bach a Mozart, passando pelos Beatles e Rolling Stones, ouviu tudo. Enquanto a observávamos trauteámos a ‘Michele’.

Parecia estar a ser um dia, não direi leve, mas sem nenhuma tragédia, quando os alarmes dispararam. Um jovem internado há dois dias, em paragem cardíaca. Os gestos foram automáticos, na sucessão protocolada das intervenções. Ainda conseguimos reanimá-lo, mas, depois, perdemo-lo para sempre. Foi o único jovem que não resistiu, na nossa unidade. Disse-me que, ao fim de tantos anos, não conseguia habituar-se àquilo. Que um velho morra é a lei da vida, agora um miúdo, com a vida toda à frente, é muito injusto. Preciso de ir beber um copo, vens comigo?

Hesitei, mas fui. Levou-me para um local com uma vista deslumbrante sobre a foz do Tejo.

— É aqui que venho quando preciso de pensar em mim. Nunca deixes de pensar em ti, se o fizeres as coisas correm mal.

Encostou a cabeça no meu ombro e pegou na minha mão. O que aconteceu depois apaguei.

Segui, quase à risca, uma das orientações das UCI.

O que acontece aqui dentro, não passa lá para fora.

Mas é sempre um hino à vida.

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2522/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/um-hino-a-vida

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Eugénio Lisboa - RECADO?

* Eugénio Lisboa 
.
Há todo um mundo que agora apodrece
perante nossos olhos espantados:
o que agora ante nós amanhece
é um dia em que a esperança já fenece.
.
Todos fogem ao fim que os espreita,
desejando que a ceifa que os procura
a outros vá lançar sua maleita,
enquanto eles buscam via escura.
.
Nunca o mundo foi tão desabitado.
nunca a vida assim se escondeu:
se tudo assim está tão sossegado
.
é sinal de que um mal aconteceu.
Será, do mundo, o fim anunciado?
Será apenas um ínvio recado?

-
Eugénio Lisboa, "Recado?" (inédito)
Dia 2.04.2020
https://livrespensantes.blogspot.com/2020/04/um-poema-inedito-de-eugenio-lisboa.html

José Soeiro - Portugal: imaturidade e amor próprio

*  José Soeiro  

“Sinto-me constrangido ao ver como Portugal, apesar de ser um país tão antigo, continua tão imaturo na leitura da sua própria história, com um amor próprio tão frágil que não suporta qualquer olhar crítico para o próprio passado”.

As palavras são de Luca Argel, músico carioca e portuense, brasileiro com nacionalidade portuguesa, que acaba de lançar o seu “Samba de Guerrilha”, um álbum que é também uma aula de história, através da qual somos levados por mais de um século de resistência. O lamento de Luca vem a propósito da proposta grotesca, impossível e ridiculamente inconstitucional de “deportar” um cidadão português, Mamadou Ba, por dizer o que tantos outros disseram: que a história de Marcelino da Mata é a de uma galeria de crimes de guerra, aliás exibidos pelo próprio em várias declarações públicas. Curiosamente, não faltaram portugueses – militares, deputados, advogados, historiadores… – a lembrar isto. Contudo, ninguém se atreveu a sugerir que fossem expulsos do país. É que Mamadou não é apenas português. É negro.

A dificuldade em olhar com verdade para o passado colonial não vem de hoje nem se revelou apenas neste caso. O historiador Miguel Cardina dissecou-as há dias. Há uma espécie de “pacto de silêncio sobre a guerra”, que nos tem impedido de encarar os massacres e os crimes cometidos (mesmo os que, no passado, já foram explicitamente condenados pelas Nações Unidas). Esse pacto manifesta-se nas “burocráticas omissões” como a que ficou patente no recente voto de pesar do Parlamento, validado pela direita e pelo PS. E expõe-se na fuga ao debate com a suposta equivalência, historicamente absurda, entre “os erros dos dois lados” (como se a ocupação colonial não fosse uma estrutura de poder desigual, de dominação e de opressão), que procura passar um pano nos factos para diluir quaisquer responsabilidades, fingindo que, na guerra, todos se comportaram da mesma forma. Este “pacto de silêncio” tem-nos privado de uma abordagem madura do legado colonial e dos padrões que herdámos dele e que hoje se exprimem diversamente, mas tem contribuído também para invisibilizar as feridas e os traumas dos que, tendo sido enviados para combater, tiveram de lidar frequentemente sozinhos com os fantasmas e as dores profundas que essa experiência cravou no seu corpo.

Perante a ausência de um espaço de debate, de uma leitura crítica da violência colonial, perante a ocultação das narrativas da resistência anticolonial, o que fica, além do silêncio e da amnésia? A reabilitação, mais explícita ou mais implícita, de um imaginário colonial baseado numa recauchutagem das teses lusotropicalistas e na ideia de um “convívio” e de uma “grandeza” portuguesas. Quem ousa questionar essa narrativa e esse revisionismo histórico, logo é apelidado de querer “politizar a história”, de estar a “interpretar o passado à luz de hoje”, de desejar substituir a análise pela imputação da “culpa”, como se os processos de desmemória que abrem a porta à banalização do colonialismo e do racismo não fossem a mais política das escolhas.

À recriminação das tentativas de promover uma leitura crítica do passado no espaço público, tem-se somado ainda a fabricação histriónica de falsas polémicas. A mais recente envolve uns supostos canteiros de flores na Praça do Império, em Lisboa, que teriam sido destruídos selvaticamente pela fúria antirracista e de reescrita da história da Câmara Municipal, mas que afinal não existem há décadas, nem sequer eram parte do projeto original da praça. Mas que importa tudo isso, se o objetivo é agitar e polarizar controvérsias, mesmo que não sejam reais?

Este silêncio e esta polarização tem vários efeitos de invisibilização. Invisibiliza a herança colonial do passado, mas também a identificação da discriminação e das fraturas económicas e sociais de hoje, como se o trabalho de universalização e de construção de alianças e de lutas maioritárias no país não incluísse o reconhecimento das múltiplas experiências de desigualdade e de negritude que fazem parte de Portugal. E concorre, finalmente, para a banalização e a legitimação da extrema-direita atual. Essa banalização está aí, na competição de uma ala do CDS que quer ser ventríloqua do Chega. Está aí, no namoro explícito entre dirigentes do PSD e Ventura (que esta semana teceu elogios a Passos Coelho e ao sentido dos sacrifícios que impôs no tempo da troika). E está aí, também, no discurso de uma direita intelectual que tem vindo a relativizar de forma explícita o regime constitucional e a própria democracia. Inebriada com os resultados da extrema-direita, Fátima Bonifácio é provavelmente quem de forma mais desabrida se vem dedicando ao elogio dessa direita extremada que dispensa as “boas maneiras” e as “falinhas mansas” da democracia, constituindo-se assim no “possível pelotão da frente” para o resto da direita que queira ir a reboque. Eis, no seu esplendor, a miséria de espírito, a abdicação democrática e a infantilidade política destas elites.

Felizmente, há um outro país que não quer o fantasma do passado como projeto. Que tem amor próprio suficiente para olhar criticamente para trás. Que quer verdade e memória. Que está disposto a lutar por democratizar a democracia, em vez de abdicar dela.

27 FEVEREIRO 2021 0:00

https://expresso.pt/opiniao/2021-02-27-Portugal-imaturidade-e-amor-proprio

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Filipe Chinita


* Filipe Chinita

 o 1º da esquerda de quem daqui olha
.
sim

do 
início dos inícios 
ou
de uma obliterada
mas para sempre 
histórica 
foto
.
fj
14.47
27.02.2021
o
1º 
da esquerda
de quem 
daqui
olha
.
dos braços  
nus.
até 
aos ombros.
e de lápis 
na mão
.
daqui 
nunca 
me poderão 
apagar

2021.02.26

Filipe enviou a mensagem: 26 de Fevereiro às 18:29

~~~~~~~~~~


do 
início dos inícios 
ou
de uma obliterada
mas para sempre 
histórica 
foto
.
fj
14.47
27.02.2021
o
1º 
da esquerda
de quem 
daqui
olha
.
dos braços  
nus.
até 
aos ombros.
e de lápis 
na mão
.
daqui 
nunca 
me poderão 
apagar
____________________________________

em 1974/5.
usava 
uma grande cabeleira negra.
de que sequer tinha noção. 
fruto do(s) tempos.
os braços nus.
o meu evidente nariz.
e lá está.um lápis ou uma caneta na mão. 
mas para onde rumaram 
estas espessas e compridas sobrancelhas 
que já as não tenho.
em que sonhos as perdi eu. 
lembras-te de como delas 
falavas tu - em moscovo.76/77 -
ó mulher para sempre 
amada
.
fj
04.11.2014

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Eugénio Lisboa - O poder das palavras em tempo de peste

Eugénio Lisboa


https://poetria.pt/l-n/poemas-em-tempo-de-peste-eugnio-lisboa

Filipe Chinita - olha só ...

 * Filipe Chinita


olha só...
1.
cascais.
em casa de leonor.
1ª metade da década de 80.
com a joão.meu primeiro amor 
de uma comum vida.
num mesmo 
espaço.
curta 
mas mui intensa. 
e nunca eu deixei de a amar... mesmo perdendo-a.
nunca antes.nem depois o combate 
amororo.erótico.sensual.e sexual 
nos foi tão apaixonado
apaixonante e 
intenso
2.
eu 
era então 
absolutamente pobre
3.
libertara-me... já da barba
(em que me quiseras 
tu.outra)
mas 
ainda não 
de um bigode 
mínimo...
que ora... 
nem percebo 
porque ainda 
o usava
4.
olha só... 
o cair 
do ante braço
do pulso 
da mão 
de todos 
os dedos 
desta 
(tua) 
mão
.
olha só... 
as (tuas) botas 
(de) todo o terreno...
.
lembras-te ainda?!
.
olha só... 
as (tuas) calças.laranja
.
olha só... 
dobrar 
do teu jooelho 
no exacto volume 
das (tuas) 
coxas
 .
olha só... 
o prazer/gozo 
da (tua) 
boca... 
no 
sonho 
fechado 
do (teu) 
tão belo 
olhar
5.
ó 
como 
sempre 
eu te amei... 
de todos os desejos 
da palavra.do amor.e do sexo... 
6.
ó 
quanto 
palavrosa... eras! 
meu amor
ó 
quanto 
era impossível calar-te 
quando (te) começavas... 
debitando
7.
olha só... 
o queimar do tempo 
no cigarro ardendo 
na ponta de (teus) 
dedos
que nunca eu 
fumei...
.
olha só... 
o desejo 
que sempre te tinha 
no quasi.assobiar... 
de (meus) 
lábios
8.
ó 
como (ainda) 
brilhava 
feliz 
o (meu) 
olhar 
de mui longas sobrancelhas... 
de mui negros cabelos 
em todo o seu 
volume... 
desordenado... 
de patilhas!
e tudo...
9. 
todo 
o (meu) corpo 
me era 
ainda 
de 
uma 
suprema 
elegância.magra 
10.
como não?! 
.
de tanto 
andar 
pé 
de tanto 
fazermos amor...
de em quasi contínuas refregas... 
des.ordenadas... pelas noites
madrugadas.
e acordar.
es
11.
quem 
aqui 
nos poderá 
ter fotografado 
senão... a leonor ou a lena?!
12.
ó 
quanto 
tu eras vivíssima 
de palavras.de dança.de amor.d'água.s 
e de toda a alvoraçada 
entrega de ti... 
em tudo
13.
ó 
como 
eu amava 
tudo! em ti...
mesmo o excesso do discurso... 
eu 
que era 
e sou todo...
de silêncio.s
14.
ó 
como 
eu te amava... 
de.lamber e re.morder sem fim... 
os pequenos seios levantados
na ponta da 
(minha) 
língua
o todo 
o latifúndio dorsal 
pejado de buraquinhos.
mínimos... 
.
e
as virilhas 
e
a vulva 
o teu clitóris.
de prazer...
de mútuos 
orgasmos
sem 
fim 
15.
tudo em ti... 
era 
à medida 
de mim... 
.
começar 
pela fome
e constante sede
de desejo amor e sexo 
que ambos tínhamos... 
(um) do outro
16. 
por mim...
eu teria ficado 
para sempre! 
amando
-te
.
fj
17.03
25.02.2021


Filipe enviou a mensagem: 25 de Fevereiro às 18:54

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Rui Diogo - O colonialismo matou muito mais que o Holocausto

OPINIÃO

O investigador e professor da Universidade de Howard Rui Diogo analisa o colonialismo europeu e compara-o, em termos de mortos, com o extermínio em massa perpetrado pelo regime nazi

23 FEVEREIRO 2021 9:18
Rui Diogo*

João Miguel Tavares escreveu, na última pagina da edição de quinta-feira (dia 18) do "Público", o qual leio diariamente desde há anos, um artigo com o titulo: "Mais uma comparação com o nazismo e eu grito." É preciso notar que o artigo estava na última página do jornal, a qual é facilmente visionada por todos os que compram este jornal, ou outros.

Sendo eu português, especialista em temas ligados ao racismo e colonialismo - que são o tema principal do meu último livro -, e professor na Howard University, uma universidade mundial constituída principalmente por alunos descendentes de africanos e com prestígio e influência mundiais precisamente por chamar a atenção para estes temas - é preciso lembrar que Kamala Harris, agora vice-Presidente dos E.U.A., foi aluna de Howard -, este artigo parece-me totalmente indigno de um jornal de prestígio internacional como o "Público". Por ser não só uma falta de respeito para as centenas de milhões de mortos resultantes do colonialismo europeu - muitíssimos mais que o número atroz e horripilante de mortos de judeus - e também ciganos, e pessoas com deficiência, não podemos esquecer - causados pelo horrível Holocausto, mas também para os sobreviventes e descendentes dos que foram colonizados, como os meus alunos em Howard, e muitos milhares de alunos, professores e outras pessoas a viver em Portugal.

Que o colonialismo europeu matou muito mais que o Holocausto é um facto histórico consensualmente reconhecido por historiadores internacionais. Mas na Europa, e sobretudo em Portugal - contrariamente ao que se faz por exemplo na Alemanha, em que se reconhecem muito mais, a nível público, as atrocidades feitas pelos nazis e também pelo colonialismo alemão - continua a nem querer sequer fazer uma comparação entre o Holocausto e o colonialismo. Isto porque o primeiro é visto como o 'mal absoluto', e o segundo como algo que no fundo "não foi tão mau" - ou, como escreveu João Miguel Tavares, que foi muito mais "rico" do que simplesmente "brutalidade e opressão".

Não há dúvida que o Holocausto é um dos eventos mais horríveis da humanidade: entre 1941 e 1945, os nazis e os seus colaboradores mataram cerca de 6 milhões de judeus, ou mesmo mais, segundo os números consensualmente aceites hoje em dia, e isso envolveu um planeamento frio, totalmente inumano, desde tirar as pessoas das suas casas, construir linhas de caminho de ferro e ter comboios para as transportar, e criar campos de concentração, de extermínio para os matar, e câmaras de gás para as gazear: o mal absoluto, sem dúvida - cerca dois terços dos judeus Europeus foram mortos, nesses 4 anos.

No realidade, o facto de pessoas como João Miguel Tavares, e no fundo uma grande maioria dos portugueses, continuarem a nem aceitar que se façam comparações entre o colonialismo europeu e o Holocausto, tem precisamente a ver com este último ponto: porque o Holocausto afetou-nos sobretudo a "nós", os europeus, enquanto o colonialismo afetou os "outros". Porque na realidade, uma comparação factual revela que não só o colonialismo matou muito mais que o Holocausto, mas que também envolveu planeamento igualmente horripilante e inumano: como construir barcos para levar escravos, aglomerados, acorrentados, em viagens de meses, sabendo de antemão que em muitos casos um terço, ou mesmo dois terços, deles iriam morrer nessas viagens. Nesse sentido, essas condições foram ainda mais horríveis que aquelas terrivelmente inumanas que ocorreram nos comboios usados pelos nazis para transportar judeus durante o Holocausto
.
E, sim, acima de tudo, temos os dados mais nefastos de todos: o colonialismo matou mais, muito mais - entre 10 e 20 vezes mais, no mínimo - que o Holocausto. Por exemplo: consensualmente aceita-se que só em relação aos povos indígenas das Américas, entre 1492 e as primeiras décadas de 1600 morreram cerca de 56 milhões de indígenas, devido às armas usadas e aos germes levados pelos colonizadores europeus. Esse número é, por si só, 10 vezes maior que o número horrivelmente atroz de mortos do Holocausto. E se compararmos em números relativos as coisas são ainda piores: enquanto a chamada "grande morte" desses indígenas representa a morte de cerca de 10% da população total do planeta, nesse tempo, o Holocausto causou a morte de cerca de 0,2% da população global, no meio do século passado: 50 vezes pior, em termos comparativos.

E o colonialismo foi, infelizmente, muitíssimo mais que a "grande morte" indígena. É consensualmente aceite que, entre os séculos XV e XIX, morreram cerca de 18 milhões de escravos africanos, ou mais. Mais: dezenas de milhões de africanos morreram em África devido ao colonialismo, não só em inúmeras guerras coloniais, mas por outros fatores, incluíndo a existência de campos de concentração.

Na verdade, se João Miguel Tavares realmente quisesse saber de verdade sobre História, saberia que as comparações entre colonialismo europeu e Holocausto são totalmente justificadas: é um facto histórico reconhecido internacionalmente que o genocídio dos hererós e namaquas, que ocorreu no Sudoeste Africano Alemão onde hoje se localiza a Namíbia, entre 1904 e 1907, foi precisamente onde se criaram muitos dos métodos atrozes que os alemães usaram depois durante o Holocausto.

E não foram só os alemães que usaram campos de concentração: durante a "partilha de África" foram usados por vários países europeus, como ocorreu no "Estado Livre do Congo", onde, em apenas 23 anos, entre 1885 e 1908, morreram cerca de 10 milhões de africanos - ou seja, mais que o número horrível de mortos de todo o Holocausto. Repito, num único país africano. Isto tudo quer dizer que é consensualmente aceite, por peritos internacionais, que no total o colonialismo europeu matou mais de 100 milhões de pessoas, ou seja, efetivamente, cerca de 20 vezes mais que o Holocausto em termos absolutos - e, ademais, levou a um número ainda maior de gente a viver vidas oprimidas, em condições de extrema pobreza, e de fome.

Claro que, em Portugal, pessoas como João Miguel Tavares dirão, em resposta a este artigo: mas o colonialismo português não tem nada a ver com o do resto dos países europeus, nós não somos como os alemães ou os belgas - ou, como ele escreveu, o "colonialismo (português ou outro)" não foi simplesmente uma "história de brutalidade e opressão", pois não se pode "roubar ao passado a sua riqueza, a sua complexidade e a sua espessura".

Não se pode reduzir a brutalidade e opressão, e esquecer a "riqueza, complexidade e espessura" do colonialismo? Então o que foi o colonialismo? Tentemos os antónimos: foi liberdade, e brandura, um termo tão usado pelos portugueses para descrever o colonialismo do "povo dos brandos costumes"? Vejamos então o que fez este povo de "brandos costumes", em termos factuais. Por exemplo, na região que é hoje o Brasil, segundo estimativas oficiais, havia pelo menos entre 3 e 5 milhões - e segundo dados mais recentes, até 11 milhões - de indígenas antes do colonialismo: em pouco mais de um século, no princípio de 1600, já eram só uns 900 mil. Ou seja, se usamos a estimativa de 11 milhões da Survival-International, uma respeitada organização internacional que trabalha especificamente sobre estes temas, a presença dos - ou seja, as armas, e os germes levados pelos - portugueses no Brasil levou a um extermínio de cerca de 9,9 milhões de indígenas, ou seja, mais que todo o Holocausto.

E, mesmo que o número eventualmente seja menor, é preciso notar que isto é só no Brasil, uma das muitas colónias de Portugal, e sem contar com os milhões de mortes de escravos africanos que também morreram aí, e de africanos que morreram nas colónias portuguesas em África, e sobretudo, sem ter em conta que, como referi acima, os portugueses foram os grandes catalisadores, originalmente, do colonialismo europeu e da escravatura transatlântica que, sem dúvida nenhuma, mataram pelo menos 20 vezes mais, e provavelmente muito mais, do que o horrível, horripilante, indesculpável Holocausto.

Como salientou Ignacio Ellacuria, há cinco séculos com a 'descoberta' do chamado 'novo mundo' o que realmente se descobriu foi a realidade da Europa, a sua verdadeira cara - "a realidade da cultura ocidental, colonizadora e dominadora": factos são factos, por mais que eles sejam difíceis de aceitar para o nosso país, que terá de ter a ousadia de se olhar ao espelho e 'descobrir' - ou seja, aceitar, de uma vez por todas, em vez de "gritar", olhar para o lado, e negar factos históricos inegáveis - o que realmente foi, e fez, o nosso país durante tantos séculos.

* Rui Diogo é professor na Universidade de Howard, em Washington D.C., EUA

https://expresso.pt/opiniao/2021-02-23-O-colonialismo-matou-muito-mais-que-o-Holocausto

Carta aberta às televisões generalistas nacionais

OPINIÃO

Como cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia.

23 de Fevereiro de 2021, 0:30

Sabemos que há uma pandemia – e que o SARS-CoV-2, em vez de se deixar ficar a dizimar pessoas no chamado Terceiro Mundo, resolveu ser mais igualitário e fazer pesadas baixas em países menos habituados a essas crises sanitárias.

Sabemos que não há poções mágicas – as vacinas não se fazem à velocidade desejada e as farmacêuticas são poderosas entidades mercantis.


Sabemos que, mesmo cumprindo os cuidados tantas vezes repetidos – distância física, máscara a tapar boca e nariz, lavagem insistente das mãos, confinamento máximo –, qualquer um de nós, ou um dos nossos familiares e amigos, pode ser vítima da doença e que isso causa medo a todos, incluindo a jornalistas, fazedores de opinião e responsáveis de órgãos de informação.

Sabemos também que os média estão em crise, que sofrem a ameaça das redes sociais, a competição por audiências, as redações desfalcadas, os ritmos de trabalho acelerados impostos aos que nelas restam, a precariedade laboral de muitos jornalistas.

Mas mesmo sabendo tudo isto, assinalamos a excessiva duração dos telejornais, contraproducente em termos informativos. Não aceitamos o tom agressivo, quase inquisitorial, usado em algumas entrevistas, condicionando o pensamento e a respostas dos entrevistados. Não aceitamos a obsessão opinativa, destinada a condicionar a receção da notícia, em detrimento de uma saudável preocupação pedagógica de informar. E não podemos admitir o estilo acusatório com que vários jornalistas se insurgem contra governantes, cientistas e até o infatigável pessoal de saúde por, alegadamente, não terem sabido prever o imprevisível – doenças desconhecidas, mutações virais – nem antever medidas definitivas, soluções que nos permitissem, a nós, felizes desconhecedores das agruras do método científico, sair à rua sem máscara e sem medo, perspetivar o futuro.

Sabemos que há uma pandemia causada pelo SARS-CoV-2, mas também sabemos que há uma diferença entre informação, especulação e espetáculo. E entre bom e mau jornalismo

Mesmo sabendo a importância da informação sobre a pandemia, não podemos aceitar o apontar incessante de culpados, os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo e da DGS, as pseudonotícias (que só contribuem para lançar o pânico) sobre o “caos” nos hospitais, a “catástrofe”, a “rutura” sempre anunciada, com a hipotética “escolha entre quem vive e quem morre”, a sistemática invasão dos espaços hospitalares, incluindo enfermarias, a falta de respeito pela privacidade dos doentes, a ladainha dos números de infetados e mortos que acaba por os banalizar, o tempo de antena dado a falsos especialistas, as entrevistas feitas a pessoas que nada sabem do assunto, as imagens, repetidas até à náusea, de agulhas a serem espetadas em braços, ventiladores, filas de ambulâncias, médicos, enfermeiros e auxiliares em corredores e salas de hospitais. Para não falar das mesmas imagens repetidas constantemente ao longo dos telejornais do mesmo dia ou até de vários dias, ou da omnipresença de representantes das mesmas corporações profissionais, mais interessados em promoção pessoal do que em pedagogia da pandemia.

Enfim, sabemos que há uma pandemia causada pelo SARS-CoV-2, mas também sabemos que há uma diferença entre informação, especulação e espetáculo. E entre bom e mau jornalismo.

Consideramos inaceitável a agenda política dos diversos canais televisivos generalistas, sobretudo no Serviço Público de Televisão.

Como cidadãs e cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia.

Subscritores
Abílio Hernandez, Professor universitário; Alberto Melo, Dirigente associativo; Alfredo Caldeira, Jurista; Alice Vieira, Escritora; Ana Benavente, Professora universitária; Ana Maria Pereirinha, Tradutora; António Rodrigues, Médico; António Teodoro, Professor universitário; Avelino Rodrigues, Jornalista; Bárbara Bulhosa, Editora; Diana Andringa, Jornalista; Eduardo Paz Ferreira, Professor universitário; Elísio Estanque, Professor universitário; Fernando Mora Ramos, Encenador; Graça Aníbal, Professora; Graça Castanheira, Realizadora; Helder Mateus da Costa, Encenador; Helena Cabeçadas, Antropóloga; Helena Pato, Professora; Isabel do Carmo, Médica; J.-M. Nobre-Correia, Professor universitário; Jorge Silva Melo, Encenador; José Rebelo, Professor universitário; José Reis, Professor universitário; José Vítor Malheiros, Consultor de Comunicação de Ciência; Luís Farinha, Investigador; Luís Januário, Médico; Manuel Carvalho da Silva, Sociólogo; Manuela Vieira da Silva, Médica; Maria do Rosário Gama, Professora; Maria Emília Brederode Santos, Pedagoga; Maria Manuel Viana, Escritora; Maria Teresa Horta, Escritora; Mário de Carvalho, Escritor; Paula Coutinho, Médica intensivista; Pedro Campiche, Artista multidisciplinar; Rita Rato, Directora do Museu do Aljube; Rui Bebiano, Professor universitário; Rui Pato, Médico; São José Lapa, Actriz; Tiago Rodrigues, Encenador; Vasco Lourenço, Capitão de Abril

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2021/02/23/opiniao/opiniao/carta-aberta-televisoes-generalistas-nacionais-1951298

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Filipe Chinita - zé casanova sobre 'cantata pranto e louvor'




zé casanova sobre 'cantata pranto e louvor'
edições avante!2009.

leiam de 
uma só
vez.
e depois 
quem ainda o não leu
corra a comprá-lo
e a lê-lo.
em setembro passam 35 anos! 
do seu assassinato
.
«Cantata Pranto e Louvor - em memória de Casquinha e Caravela», do Filipe Chinita e do Manuel Gusmão, é um livro que tardava, e pela publicação do qual desde já agradeço aos autores.
Muitas vezes me perguntei por que é que os acontecimentos que inspiraram este poema, não inspiraram, antes, outros poetas.
Isto porque, a meu ver, o dia 27 de Setembro de 1979 – dia do assassinato de José Geraldo (Caravela) e de António Maria Casquinha – foi, porventura, o dia mais sombrio do pós-25 de Abril. Um dia e um crime 
carregados de significado: 
a lembrar-nos que o passado não tinha sido completamente afastado da 
nossa vida e da nossa história colectiva; 
a lembrar-nos que o latifúndio opressor e explorador, sustentáculo do 
regime fascista, não só não estava definitivamente enterrado como não 
desistia de regressar – e para esse regresso estava disposto a tudo, a matar, inclusive; 
a lembrar-nos, ainda, que a contra-revolução de Abril trazia consigo, e 
tinha como alimento essencial, pedaços desse passado fascista;
a lembrar-nos, por tudo isso, outros dias e outros crimes, dias e crimes 
ocorridos neste mesmo Alentejo, e com os quais o fascismo procurou, em 
vão, esmagar a serena coragem, a lúcida intervenção e a forte determinação de luta do proletariado rural do Alentejo – coragem, lucidez e determinação sustentadas por uma elevada consciência de classe e política. E partidária, também, porque falar da luta do povo alentejano é falar da história do PCP.
Catarina, a sua vida e o seu assassinato, foram cantados por dezenas 
de poetas – mais de trinta, creio eu; outros acontecimentos do Alentejo 
resistente e combativo, foram assinalados em romances e contos de alguns dos maiores nomes da nossa literatura.
Ora, tanto quanto sei, até agora apenas o José Gomes Ferreira e o Manuel Gusmão nos tinham falado deste dia 27 de Setembro de 1979 e deste crime que nos levou o José Geraldo (Caravela) e o António Maria Casquinha.
Por isso digo que este belo poema de Filipe Chinita e de Manuel Gusmão 
nos fazia falta. Por isso saudei efusivamente o seu aparecimento: pela 
sua qualidade poética e porque é um poema que faltava ao cancioneiro da 
Revolução de Abril – desse que foi o momento mais luminoso da história 
do nosso País, o mais avançado, o mais progressista, o mais justo, o mais 
livre – e, portanto, o momento de maior modernidade da nossa história 
colectiva.
.
Uma Abertura, cinco partes e um Epílogo: assim os autores organizaram 
e estruturaram a narrativa poética dos acontecimentos – acontecimentos 
que nos são contados/cantados pelos assassinados – Caravela e Casquinha; pelo Coro – porque de uma tragédia se trata;
e por um Narrador – ora anónimo, ora aludindo ou tomando a voz de 
poetas, escritores, artistas plásticos – o já referido José Gomes Ferreira, 
Manuel da Fonseca, José Carlos Ary dos Santos, João Cabral de Melo 
Neto, Chico Buarque de Holanda, Manuel Gusmão, José Saramago, 
João Hogan. E Paul Vaillant- Couturier, que, muito a propósito e muito 
oportunamente, é chamado a lembrar-nos que o comunismo é o futuro do 
mundo – afirmação que pode parecer insólita neste tempo de capitalismo 
dominante, mas que a história se encarregará de confirmar.
(Eu disse o Coro, mas deveria dizer os coros: são dois, de facto: 
o Coro 1, Voz dos assassinados e dos seus irmãos de luta; 
e o Coro 2, a outra Voz...)
.
Na Abertura, Caravela e Casquinha apresentam-se ao Leitor – mortos, 
assassinados, e à nossa «espera, à espera da verdade/à espera da 
justiça». 
E de pé. Pois, dizem-nos – e nós confirmamos, «foi de pé que morremos».
Como de pé viveram: Caravela, militante comunista e enfrentando o 
fascismo com a dignidade dos homens dignos; Casquinha, jovem de 17 
anos, dirigente da Juventude Comunista, e também construtor da Reforma 
Agrária.
.
Na Primeira Parte – «Setembro estava no fim» - o Narrador situa o crime 
«nesta minha aldeia/vila do Escoural»; 
sinaliza a hora do crime - «entre as 11 e as 11 e meia»; 
e aponta as bestas assassinas: «vieram os bárbaros outra vez/sempre 
estão aqui/parecem hibernar».
«Bárbaros»?: «piores que bárbaros/escondem a mão assassina/
escondem a boca/que ditou a ordem».
Ali em Montemor, os «bárbaros outra vez»: outra vez a violência, a 
selvajaria, a morte - e não só ali, mas em toda a zona da Reforma Agrária, alvo da brutal ofensiva destruidora, iniciada pelo primeiro Governo PS/Mário Soares e prosseguida por todos os que lhe sucederam, até à destruição, num dos governos de Cavaco Silva, daquela que foi «a 
mais bela conquista da Revolução de Abril». «Os bárbaros outra 
vez», e outra vez o Alentejo a ferro e fogo, a repressão, as prisões, os 
interrogatórios pidescos; os assassinatos.
«Os bárbaros» que, como os seus antepassados do tempo do 
fascismo, «escondem a boca que ditou a ordem»...
Como é sabido, os assassinos e os responsáveis pelos assassinatos de 
Caravela e Casquinha nunca foram conhecidos nem levados a julgamento - tal como acontecia no tempo do fascismo. 
Com uma diferença: desta vez foi aberto o tradicional inquérito que, como 
é já de tradição nestes casos, nos últimos 33 anos, foi cirurgicamente 
arquivado...
.
A Segunda Parte deste Poema fala-nos da Solidariedade – palavra-
chave da resistência, palavra-chave do proletariado rural do Alentejo e do 
Ribatejo.
Toda a história da Reforma Agrária – desde os primórdios da luta por ela, 
até à luta pela sua concretização e à luta pela sua defesa face à ofensiva 
criminosa – é um acto de solidariedade, um imenso acto de solidariedade.
Pode dizer-se que a história da luta do povo alentejano é uma sucessão 
infindável de actos de solidariedade: foram-no as lutas por melhores jornas e melhores condições de trabalho; e a épica luta vitoriosa pelas oito horas de trabalho; e a luta consciente contra o fascismo, pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo.
Solidariedade foi a Reforma Agrária construída: a Reforma Agrária 
que, acabando com a exploração do homem pelo homem no seu espaço 
de intervenção, nos mostrou que o futuro é possível e nos mostrou um 
pedacinho desse futuro: lá estavam as terras cultivadas como nunca 
e a produzir como nunca; lá estava a justa repartição da riqueza 
produzida; lá estavam os cuidados, o amor, a ternura, pelas crianças e 
pelos idosos; lá estavam os direitos humanos respeitados e cumpridos 
como nunca antes acontecera e nunca de então para cá voltou a 
acontecer.
Continuando a falar da solidariedade: a presença de Caravela e de 
Casquinha naquele lugar e naquele dia, é um acto de solidariedade - que 
neste Poema nos é explicada pelos próprios. Dizem-nos eles que viajaram 
da UCP Salvador Joaquim do Pomar para a Bento Gonçalves, «desta nossa 
terra/a esta terra também nossa».
Porque, como sublinha, pertinente, o Coro 1, «nós somos iguais - a terra 
toda/trabalhada é de quem a trabalha/a terra é nossa». E insiste o Coro 
1, porque imperioso é insistir: «Por solidariedade vieram/entre herdades 
e nomes/a acudir à sua gente/a clamar justiça»,
porque «roubar gado/espoliar da terra a cooperativa/queriam eles/a 
força bruta e mandada/impondo como lei/os interesses dos agrários».
Belíssimas e certeiras palavras que, com rara beleza, nos dizem tudo o que sobre a matéria há a dizer.
Aqui, o Coro 1 explica ao Coro 2 a origem dos nomes dados às duas 
cooperativas - Salvador Joaquim do Pomar, militante comunista preso de 
1956 a 1961; e Bento Gonçalves, «nascido de meúdos/camponeses do 
Norte», operário do Arsenal, dirigente comunista, «deixaram-no vocês 
morrer no Tarrafal».
Por esta parte do Poema passa, também, essa questão maior que é a da 
posse e do uso da terra – questão à qual os construtores da nossa Reforma Agrária responderam de forma criativa e singular - rejeitando a sua posse individual e reclamando-a para a trabalhar, aumentar a produção agrícola e desenvolver o País - como criativo e singular foi, aliás, todo o processo de construção da Reforma Agrária de Abril.
Mas – sublinha incisivamente o Narrador - o que, naquele dia 27 de 
Setembro de 1979, acontecia na UCP Bento Gonçalves, «era uma história 
repetida/Veio a guarda com a lei/no cano das carabinas»...
«Uma história repetida», de facto: Alfredo Lima, 1950, Alpiarça; 
Catarina: 19 de Maio de 1954, Baleizão; José Adelino dos Santos, 1958, 
Montemor…; Caravela e Casquinha: 27 de Setembro de 1979, Montemor. 
O mesmo cenário: de um lado, o latifúndio sustentáculo do fascismo (com 
a sua GNR) e, agora (sempre com a sua GNR), inimigo de Abril; do outro 
lado, os que lutavam contra o fascismo e, agora, por Abril; de um lado, os 
assassinos; do outro lado, os assassinados.
.
A Terceira Parte é a morte de Caravela e Casquinha, «os que vieram por 
solidariedade/clamando por justiça» - os que, por serem solidários e por 
clamarem por justiça, foram assassinados. 
Chamei há pouco àquele dia 27 de Setembro de 1979, o dia mais sombrio 
do pós-25 de Abril – e creio que assim foi. Talvez porque o assassinato 
de Caravela e Casquinha foi uma coisa do tempo passado, do tempo que 
julgávamos ter erradicado definitivamente das nossas vidas e vivências, 
e agora nos aparecia ali, igual ao que dele conhecíamos, carregado de 
escuridão, de ódio e de morte.
E é bem verdade que, como nos diz o Coro 1, com a morte de Caravela 
e Casquinha, «um pouco de nós/morreu com eles» - mas é verdade, 
também, e isso é certamente o mais importante, que como nos diz o mesmo Coro, uns versos adiante, «um pouco deles/ficou vivo em nós».
Daí a importância e a força do compromisso assumido no Poema: 
«Casquinha!Caravela!/ Vozes de luta hão-de semear/os vossos nomes 
pelas ruas/dos povos deste Alentejo».
.
Na Parte Quatro – «Ó Aflição e Raiva» - os assassinados contam-nos a 
morte: o que sentiram quando as balas os atingiram, «aquele fogo frio ou/aquela faca de gelo», «o frio que queima/e a faca de fogo que rasga/
pelas costas até ao coração» - e «o negro/tudo ficou negro», «uma 
nuvem negra/dos olhos até um ponto/cá dentro...», «Como se fosse tudo 
num sonho». Depois «fechei-me como o quê?» – pergunta Caravela, e responde Casquinha: «como os bichos-de-conta/que vivos, vivíssimos/se enrolam sobre si mesmos/como se quisessem desaparecer/do mundo dos vivos».
E o Narrador coloca a pergunta crucial: «Porque são sempre os nossos/ 
que assim morrem?» - talvez, porque, como o mesmo Narrador nos 
diz, os «nossos» são os portadores da esperança, dessa esperança que a 
«violência cobarde e estúpida» não pode matar.
De facto, eles podem prender, e prendem, os homens; podem matar – e 
matam – os homens. Mas não podem prender nem matar o ideal – e é essa a nossa força, e é essa a nossa esperança.
.
«De Luto Desfilamos» na Quinta Parte do Poema: de luto estamos todos: 
«a aldeia do Escoural», «Montemor», «A Reforma Agrária/nos 
campos do Alentejo e/do Ribatejo» - e «trabalhadores do pais inteiro/
desfilam connosco», «somos muitos, muitos mil/os nossos passos têm 
a cadência/da tristeza e da firmeza/e ouvem-se no silêncio». Por aqui 
desfila «um rio de punhos erguidos/contra a morte», um «rio que 
chegará/um dia/ao mar».
.
E, como José Gomes Ferreira nos diz no Epílogo, «Quando os dois 
camponeses desceram às covas/ante os punhos cerrados de todos nós/
chorei!».
Chorámos: os que lá estivemos e muitos que lá não estiveram. 
E continuamos a chorar, hoje, 31 anos passados.
Mas chorámos de punhos cerrados – que é uma forma só nossa de chorar, que é um Pranto mas não é um lamento, antes é – voltamos à palavra... – um acto de solidariedade.
Como nos diz o Narrador – que somos nós - «neste dia ficou marcado/um 
outro dia no futuro/nesse dia desfilaremos/sobre o chão da terra/enfim 
devolvida nossa».
Que assim será, dizem-nos o Caravela e o Casquinha nas suas falas finais:
Caravela confiando-nos o seu «desejo mais fundo/Que da próxima seja 
de vez/a terra a quem a trabalha/a terra será de quem a trabalha»; 
Casquinha, o «menino-homem», intimando-nos a que não o deixemos 
sozinho, a que nos lembremos dos bandidos, a que nos lembremos que 
«o comunismo/é a juventude do mundo».
E nós não esqueceremos.
E este belo Poema do Filipe Chinita e do Manuel Gusmão é um precioso 
contributo para que a nossa memória continue viva.
.
zé casanova

Eugénio Lisboa - Poemas de "O Ilimitável Oceano"

* Eugénio Lisboa


No túmulo de um Astrónomo

Amei demasiado as estrelas
do céu nu que percorri a dedo,
para que a noite, onde brilham, belas,
em mim seja surto de algum medo.

 
Ptolomeu

Como todos, sou mortal:
minha vida é um dia.
Mas quando sigo, fatal,
no céu que nos alumia,
a multidão das estrelas,
sinto, deslumbrado nelas,
meus pés, do chão, levantar.

 
Copérnico

O céu que viste era o céu
de Ptolomeu. Mas diferente
foi a forma de o olhar.
No modo de julgar, teu,
a Terra, astro movente,
demitiu-se de pensar
que era o centro do mundo:
assim ver, que abalo fundo!

 
Kepler

O mundo próximo, à volta, apodrece.
Fome, mortal conflito e pestilência
turvam o dia que mal amanhece.
Segura-se à pureza da ciência:
o curso aparente das estrelas,
seguindo matemática divina,
deriva, das rigorosas tabelas
do vasto cosmo, a curva sibilina.

 

Poemas transcritos de O Ilimitável Oceano, Quasi Edições, Março de 2001, Vila Nova de Famalicão.
https://viciodapoesia.com/2018/04/26/eugenio-lisboa-alguns-poemas-de-o-ilimitavel-oceano/

Filipe Chinita - comunistas

* Filipe Chinita 

comunistas
.
homens e mulheres.
livres
.
livres
em todos os planos 
da sua condição 
necessidade.s
.
livres
pois que sempre 
conscientes
de todos os seus
gestos
.
livres
pois que iguais
mas sempre
rigorosos
únicos!
.
livres
pois que
talentosos
e responsáveis
.
livres
pois que 
não mais alienados
de(por cousa 
alguma
.
livres
pois que
sempre cultos! 
e insubmissos
.
livres
pois que 
mesmo incomuns
sempre! comuns
serão
.
fj
16.15
20.02.2021



Filipe enviou a mensagem: Ontem às 17:29

Miguel Esteves Cardoso - Visitas de livros

 * Miguel Esteves Cardoso   
 
Com este serviço de livros à porta podemos viver um bocadinho com os livros
 
Só estive alguns minutos a provocar o catálogo de livros da Rede BLX das Bibliotecas de Lisboa e fiquei logo cheio de vontade de ler oito ou nove livros, alguns deles esgotados e difíceis de encontrar. Não vou dizer quais são porque ainda posso ser tentado a ir levantá-los.

Eu disse “ir levantá-los”? Desculpem, eu queria dizer “pedir para mos virem trazer a casa”. E quanto é que me vai custar a brincadeira? Que tal nada? Nada está bem para si?


Não, não está a sonhar. E não é só em Lisboa. Escolhem-se os livros em casa e é a casa que os vão levar. Se um dos livros não agrada, passa-se logo para o outro. Como não investimos dinheiro naquele livro, não há culpabilidade que nos leve a demorarmos mais tempo com ele do que nos apetece.

É bom abandonar um livro que não nos está a trazer nada porque assim pode-se saltar imediatamente para outro livro.

O que interessa é provar. Depois, há livros que valem por um capítulo e outros que ganham em ser lidos pela rama e até há livros que são só para folhear.

Numa livraria podem-se provar dezenas de livros mas (felizmente) há inibições que nos impedem de passar mais tempo com os livros apetecidos nas mãos.

Com este serviço de livros à porta podemos viver um bocadinho com os livros, partilhá-los com quem vive connosco, formar opiniões, tirar apontamentos, até fotografar uma página ou outra.

É o êxito destas maravilhosas iniciativas que, como diz Miguel Azevedo da Biblioteca Municipal da Maia, aquece a alma.

As pessoas em casa podem ter muita coisa para ver e ler mas, mesmo em casas com muitos livros, faltam sempre livros novos, porque não há nada como pegar num livro, sentarmo-nos com ele e abri-lo pela primeira vez.

As pessoas gostam de ler. Mas faltam-lhes livros. 

Colunista
21 de Fevereiro de 2021, 6:34

https://www.publico.pt/2021/02/21/opiniao/cronica/visitas-livros-1951501

João Lopes - Scorsese, Fincher, Netflix & etc.

 

 * João Lopes

Na edição de março da Harper's Magazine, surge um artigo de Martin Scorsese (disponível no site da revista) que tem tido significativo impacto nos meios cinematográficos, a começar, naturalmente, pelos EUA. O título, "Il Maestro", refere-se a Fellini, um dos autores mais amados na trajetória de Scorsese, decisivo na definição da sua vocação. O subtítulo é desencantado: "Federico Fellini e a magia perdida do cinema".

Para lá da celebração da herança de Fellini, o autor de Taxi DriverA Última Tentação de Cristo e O Lobo de Wall Street vem dar conta, com gélida lucidez, do estado das coisas: passámos da era da cinefilia ao mercado dos "conteúdos". A cultura comunitária ligada ao conhecimento dos filmes nas salas escuras deu origem ao consumo anónimo das plataformas de streaming em que os filmes... já não são filmes, apenas "produtos" expostos em prateleiras mais ou menos vistosas, à maneira de um supermercado.

Evitemos atrair o simplismo dos discursos panfletários. Scorsese não vem apontar o streaming como o "mal" que importa expurgar, lembrando, aliás, que as plataformas criaram uma conjuntura que também é "boa para os cineastas, eu incluído". E tem razões para isso: depois de mais de uma década de recusas dos estúdios clássicos de Hollywood, só conseguiu concretizar esse filme prodigioso que é O Irlandês graças ao valor descomunal (160 milhões de dólares) que a Netflix investiu no projeto.

O que está em jogo é algo que, em boa verdade, envolve temas e problemas que alguma crítica de cinema (nos EUA e não só) tem vindo a escalpelizar há pelo menos duas décadas, desde que os super-heróis passaram a ser o "conteúdo" privilegiado pelas estruturas tradicionais de Hollywood, com efeitos muito diretos na dinâmica da maior parte dos mercados nacionais. A saber: o crescente desinteresse, para não dizer brutal menosprezo, com que algumas grandes entidades, direta ou indiretamente ligadas à distribuição/exibição, passaram a lidar com a memória dos filmes e, genericamente, o património cinematográfico.


David Fincher e Gary Oldman durante a rodagem de "Mank": fazer filmes a partir da memória do próprio cinema

A linguagem de Scorsese pouco ou nada tem que ver com a secura muito cordial da maior parte dos pontos de vista expressos deste lado do Atlântico. A banalização social e comercial da palavra "conteúdo" leva-o mesmo a denunciar o triunfo de uma forma específica de ignorância, em tudo e por tudo, como ele sublinha, alheia às apaixonadas discussões clássicas sobre a dialética "forma/conteúdo". Assim, diz ele, essa palavra "passou a ser cada vez mais aplicada por pessoas que tomaram conta das companhias de media, muitas das quais nada sabiam sobre a história desta forma de arte nem sequer se preocupavam o suficiente para pensar que talvez devessem saber". E sublinha o facto de a palavra "conteúdo" se ter tornado um "termo dos negócios para todas as imagens em movimento: um filme de David Lean, um vídeo de um gato, um anúncio do Super Bowl, uma sequela de um super-herói, um episódio de uma série."

Scorsese não vem instaurar uma "caça às bruxas", antes lembrar que de Aurora (Murnau) a 2001 (Kubrick) o cinema é "um dos grandes tesouros da nossa cultura" e, por isso, "como tal deve ser tratado". Paradoxalmente ou não, vamos lendo, com inusitada frequência, notícias sobre acordos de produção que os mais diversos cineastas estão a estabelecer com plataformas de streaming (Netflix, Amazon, HBO, etc.). E não é caso para menos: muitos deles conseguem encontrar aí a liberdade criativa - e a disponibilidade financeira, como é óbvio - para concretizar projetos que, na maior parte dos casos, deixaram de encontrar lugar nos planos de produção de um universo que, da produção à difusão, tem vindo a encerrar-se na expectativa do próximo blockbuster com super-heróis...

Recorde-se, a propósito, o caso modelar de Mank, o filme de David Fincher sobre Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), revisitando as memórias da escrita do argumento desse clássico dos clássicos que é Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. Raras vezes a relação criativa com a memória do próprio cinema foi tão depurada e cristalina. Que tudo isso aconteça com chancela da Netflix não é um erro do "sistema", tão-só um dado objetivo que não pode ser ignorado.

21 Fevereiro 2021 — 00:25  

Jornalista

https://www.dn.pt/opiniao/scorsese-fincher-netflix-etc-13374455.html


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Luiz Prado - Impressos subversivos na história são tema de evento e livro

A censura brasileira ao longo de quatro décadas, construída a partir de impressos confiscados pelo Estado através do famigerado Deops/SP. Debate será neste sábado, dia 20, às 16 horas, no canal do Sesc no Youtube

por Luiz Prado
Publicado 19/02/2021 18:24


Capa da publicação, com aquarela de Lívio Abramo confiscada e anexada ao seu prontuário – Foto: Fundo Deops/SP. Apes

Subvertendo a Ordem – O Papel dos Impressos é o nome do evento que acontecerá neste sábado, dia 20, às 16 horas, no canal do Sesc no Youtube. No encontro, três especialistas vão discutir a importância da comunicação impressa ao longo da história e suas implicações na arte, na política e na cultura.

São a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o professor Marcos Napolitano, do mesmo departamento, e a professora Helouise Costa, do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP.
 
Com mediação do jornalista Marcos Guterman, doutor em história pela FFLCH, o evento está baseado no livro Impressos Subversivos: Arte, Cultura e Política no Brasil – 1924-1964, da professora Maria Luiza, recentemente lançado pela Editora Intermeios.

Em seu livro, Maria Luiza mostra o resultado das pesquisas que realizou nos arquivos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo – órgão que funcionou entre 1924 e 1983 -, onde se encontram folhetos, jornais e revistas confiscados pela censura da época, acusados de subversão. “Há sempre o interesse do Estado em identificar e incriminar o que ele considera como inimigo do regime”, disse a professora .

No evento deste sábado, Maria Luiza vai comentar algumas das publicações expostas no seu livro, que ao longo de décadas serviram para demonstrar a indignação, o protesto, a rebeldia e a irreverência de grupos contrários ao poder estabelecido. A professora Helouise Costa, por sua vez, vai tratar das obras de artistas judeus que, perseguidos na Alemanha nazista na década de 30 sob a acusação de criar “arte degenerada”, foram publicadas em revistas brasileiras. Já o professor Marcos Napolitano, especialista em História do Brasil Contemporâneo, analisará publicações clandestinas surgidas durante o período da ditadura militar (1964-1985).
 

O evento Subvertendo a Ordem – O Papel dos Impressos será realizado neste sábado, dia 20, às 16 horas, no canal do Sesc no Youtube. 


Uma breve história da arte que enfrentou a barbárie


Impressos de protesto na gráfica do PCdoB em São Paulo, na década de 1930 – Foto: Fundo Deops/SP – Apesp

Uma história de artistas que atravessam o Atlântico fugindo do nazismo, munidos de influências do expressionismo alemão postas a serviço da denúncia da opressão sofrida pela classe trabalhadora. Gravuristas e desenhistas anônimos escondidos em gráficas clandestinas, rodando madrugada adentro panfletos anarquistas, socialistas e comunistas. Vigilante como o Grande Irmão de 1984, uma polícia política empenhada em identificar e incriminar aqueles considerados como inimigos do regime, apreendendo e arquivando jornais, panfletos, livros, cartões-postais e até mesmo partituras musicais.

Esse poderia ser o enredo de uma das séries do seu serviço de streaming preferido, mas trata-se do Brasil relembrado nas páginas de Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil – 1924-1964, o novo livro de Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Uma mirada na censura brasileira ao longo de quatro décadas do século 20, construída a partir de impressos confiscados pelo Estado através do famigerado Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP).


Memorial da Resistência de São Paulo, antigo prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP – Foto: Site Memorial da Resistência de São Paulo

De sua criação em 1924 até a extinção em 1983, o Deops/SP se esmerou em encher armazéns com papéis apreendidos por serem considerados subversivos e por circularem na clandestinidade. Uma documentação arquivada a prontuários e dossiês policiais como prova de crimes políticos e que foi usada pelo Estado para perseguir e atacar opositores, sobretudo aqueles vinculados a grupos anarquistas, socialistas e comunistas.


Cartão-postal feito por Candido Portinari com retrato de Olga Benário e sua filha Anita Leocádia Prestes – Foto: Acervo A. L. Prestes/RJ; Arqshoah/Leer-USP

São panfletos, jornais, pôsteres, revistas, livretos e uma diversidade de materiais iconográficos que Maria Luiza e sua equipe escavaram no Fundo Deops/SP, mantido no Arquivo Público do Estado de São Paulo. O período recortado pela pesquisadora vai da criação do Deops/SP, ainda na Primeira República, até a véspera do golpe civil-militar de 1964. Consequentemente, a Era Vargas e em especial o Estado Novo ganham destaque, ainda que a paranoia anticomunista pós-1945 também renda um material encorpado que é aproveitado na obra.

“Há sempre o interesse do Estado em identificar e incriminar o que ele considera como inimigo do regime”, comenta Maria Luiza sobre o material que embasa o livro. A autora batiza essa ação censória como uma ideologia de controle e de etiquetamento e enxerga nela uma política de higienização da cultura. “Nós percebemos uma demarcação de fronteiras entre o que é lícito e o que é ilícito. É a produção de um discurso maniqueísta, um jogo entre bem e mal, o que é perigoso e o que pode comprometer a vida do que eles consideram um cidadão saudável.”
 
A atenção da pesquisadora recai sobre a produção artística capturada pelo radar da censura, tanto aquela presente em salões de exposição quanto os desenhos e gravuras de jornais, panfletos e outros materiais que circulavam pelos subterrâneos. Um conjunto de trabalhos no qual Maria Luiza identifica uma revisão da teoria da arte desinteressada e que coloca em seu lugar a união entre arte e ativismo.

Vanguardistas e artesãos
Como protagonistas desse enfrentamento, o livro apresenta e investiga dois grandes grupos: os chamados artistas da vanguarda de protesto e os artesãos panfletários. Os primeiros são aqueles artistas de formação acadêmica, inspirados em um primeiro momento pelas vanguardas modernistas, sobretudo o expressionismo, e depois pela linguagem pictórica soviética. Brasileiros do calibre de Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Lívio Abramo, mas também imigrantes como Lasar Segall.


Capa do jornal A Voz Operária de 19 de março de 1955, com gravura de Danúbio Villamil Gonçalves – Foto: Acervo Tucci/SP

Seguindo a lógica da desconfiança que ditava os julgamentos sobre crimes políticos, os artistas ligados às vanguardas modernistas eram condenados por antecipação, considerados suspeitos de prática de sedição e propagadores do comunismo. Com trabalhos expostos em galerias, projeção internacional e inserção pública no circuito cultural, esses artistas mobilizaram suas forças em causas como a denúncia da miséria do povo brasileiro e o exorcismo dos pesadelos das guerras mundiais. A aproximação, de fato, com grupos comunistas – Tarsila passa a integrar o Partido Comunista Brasileiro em 1931, para ficarmos em um exemplo – colabora para a vigilância por parte da polícia política.

“Os artistas da vanguarda de protesto, usando cores fortes em suas telas e traços sangrados na madeira, revelavam os gritos dos excluídos contra a violência do Estado opressor”, registra Maria Luiza no livro. “Fica evidente que a produção destes artistas tem em comum a linguagem universal do protesto contra a degradação da retórica política, a injustiça e os massacres desumanos das classes trabalhadoras.”

O livro aponta que a maioria dos artistas que se valeu da arte como meio para propagandear, ainda que sutilmente, o regime socialista foi, uma hora ou outra, vigiada pela polícia política. Como exemplo, a professora escreve que, em 1933, dentre os investigados estavam Patrícia Galvão, a Pagu, Oswald de Andrade, Emiliano Di Cavalcanti, Candido Portinari, Lívio Abramo e Lasar Segall.


Capa do livro Poesias e Hinos Libertários, de 1933, com ilustração de J. B. Pelayo – Foto: Fundo Deops/SP – Apesp

Os artesãos panfletários, por sua vez, estavam longe do circuito da alta cultura e das academias de arte, geralmente autodidatas ou egressos dos Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e São Paulo. Sua produção servia à urgência do momento, na maioria das vezes na clandestinidade. Eram ilustrações anônimas para periódicos ou panfletos rodados em mimeógrafos, de existência efêmera e apelo popular.

“Os desenhistas artesãos procuravam representar personagens de fácil reconhecimento para o povo, valendo-se das imagens dos policiais (os ‘tiras’) em ação, da Revolução triunfante identificada por uma mulher heroína, e os revolucionários armados (operários, trabalhadores rurais e urbanos) em ação”, escreve a professora. Junto dessas imagens, a iconografia popular reunia composições épicas como a quebra de grilhões pelos ‘escravos modernos’ e retratos da tristeza, como uma família proletária maltrapilha e famélica.

O trabalho desses artesãos anônimos era, conforme sugere o livro, instigar a tomada de posição diante dos problemas sociais, sobretudo da situação de miséria do povo e das mulheres proletárias. Cabia aos panfletos alimentar o espírito de rebeldia das classes trabalhadoras, e as imagens municiavam o operário semianalfabeto e os grupos desfavorecidos com as propostas de transformação social que corriam pela Europa e nos países da América: a Revolução Francesa, a Revolução Russa e a Guerra Civil Espanhola.

Contradições autoritárias
Como a contradição é praxe em regimes autoritários e ambientes de censura, a obra de Maria Luiza Tucci Carneiro também identifica momentos em que o próprio Estado abraça seu inimigo. Ao dirigir sua análise para o período do Estado Novo, a pesquisadora evidencia que, apesar da perseguição aos artistas subversivos, Getúlio Vargas também se apropriou da arte de vanguarda para responder às pressões antifascistas e estadunidenses durante a Segunda Guerra Mundial. O caso mais emblemático é o de Portinari, alçado ao posto de artista oficial do Estado Novo.

“O governo Vargas precisa desses artistas para se projetar como uma nação moderna, identificada com os paradigmas de uma cultura de vanguarda”, explica a docente. “Era muito vantajoso, em seus diálogos com o governo americano, mostrar que ele estava contratando artistas como Lasar Segall e Portinari, que já eram pessoas renomadas.” O mesmo Segall, vale lembrar, rotulado como artista degenerado pela Alemanha nazista.


Capa da publicação, com aquarela de Lívio Abramo confiscada e anexada ao seu prontuário – Foto: Fundo Deops/SP. Apes

Enfim, relações conflituosas de aproximação e perseguição entre Estado e classes sociais evidenciando, conforme destaca Maria Luiza, que vigilância e controle sobre a sociedade sempre foram instrumentos eficazes para bloquear mudanças no poder instituído, desde os tempos de colônia até o final da ditadura civil-militar. Instrumentos que gostaríamos de ter deixado definitivamente para trás, mas que infelizmente parecem avançar mais uma vez sobre a pátria amada, segundo a própria pesquisadora.

“Analisando esta documentação, constatei algumas recidivas que, replicadas neste atual governo do presidente eleito Jair Messias Bolsonaro, colocam em risco a democracia brasileira, ainda tão frágil: censura velada, o controle e manipulação de informações e o uso de estereótipos, dentre os quais a generalização de que os comunistas são perigosos”, escreve Maria Luiza.


 
Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil – 1924-1964, de Maria Luiza Tucci Carneiro, Editora Intermeios, 212 páginas, R$ 48,00.

Do Jornal da USP

https://vermelho.org.br/2021/02/19/impressos-subversivos-na-historia-sao-tema-de-evento-e-livro/