quinta-feira, 10 de abril de 2008

“A PIDE não sabia do 25 de Abril”, entrevista com Irene Pimentel no Esquerda 27

.







"A História da Pide" de Irene Pimentel, tese de doutoramento da investigadora do Instituto de História Contemporânea da Fac. de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa, é sem dúvida uma obra de referência para se conhecer melhor as práticas da polícia política de Salazar. Às vésperas do 34º aniversário do 25 de Abril, o Esquerda entrevistou a vencedora do Prémio Pessoa deste ano sobre algumas conclusões do seu trabalho sobre a Pide.

Entrevista de Carlos Santos e Luis Leiria. Fotos de Nino Alves

O que é que levava as pessoas a oferecerem-se como informadores da Pide? Havia razões económicas?

Basicamente razões económicas e de poder. E depois, todas aquelas outras mais mesquinhas: invejazinhas, a vontade de querer lixar o vizinho do lado... Houve namorados que denunciaram namoradas, relações que acabaram, coisas assim. Mas basicamente era a sensação de poder e, nas classes mais baixas, também razões económicas. Porque eles recebiam cerca de 300 escudos, na altura, esse dinheiro por mês não era nada pouco. Além disso, a partilha do poder numa ditadura era muito apetecível. Houve casos de pessoas que apresentavam crachás da Pide a fingir, e que diziam que eram da Pide, chegaram a ser presas pela própria Pide, porque estavam a usurpar a autoridade.


O pagamento era por mês?

Sim. Atenção que eles tinham de apresentar trabalho. Muitos informadores inventavam "informações". Ao fim de um tempo, se a Pide verificava que aquilo não tinha interesse nenhum, punham-nos a andar. Mas a partir do momento em que começavam a apresentar trabalho e estavam bem situados, especialmente se tinham relações com a oposição - o que interessava à Pide era relações com a oposição, e/ou gente organizada mesmo dentro do Partido Comunista -, nessa altura, passavam a receber semanalmente.


Havia muita corrupção. Houve elementos da Pide que em vez de pagar aos informadores - aquilo vinha sempre de uma espécie de "saco azul", os serviços de assistência, ou serviços reservados - muitas vezes ficavam com uma parte. Havia muitos informadores a queixarem-se, a escreverem cartas - algumas chegaram ao Salazar - a dizer: "Então eu sou informador e estou a receber muito menos; acho que ele se está a abotoar com o meu dinheiro".


No caso dos informadores que vinham das fábricas onde o PCP tinha grande organização? Havia muitas ofertas de informadores?

Sim, mas aí eles tinham muito cuidado. Uma das coisas mais difíceis de investigar é a rede de informadores. Acho que nunca se vai conseguir saber quantos informadores houve ao longo de todo o tempo. Sabemos vagamente pela Comissão de Extinção que haveria uns 15 mil na altura do 25 de Abril; mas não se sabe o número exacto, nem ao longo de quanto tempo... A primeira coisa a ser queimada foi a lista dos informadores, pelo próprio chefe dos serviços de informação, o Álvaro Pereira de Carvalho, mesmo no dia 25 de Abril. Depois, nos próprios arquivos da Torre do Tombo os nomes vêm expurgados. É uma luta que nós historiadores estamos a ter. Achamos que não faz sentido termos acesso, por exemplo, às vítimas, ou seja, através dos processos, sabemos quem falou na prisão, e, se não tivéssemos deontologia profissional podíamos destruir vidas inteiras; mas isso nós podemos ver. Mas não temos acesso aos nomes dos informadores.


Mas como são expurgados os nomes?

Eles fazem uma fotocópia, riscam o nome, fazem outra fotocópia que te dão. Mas há alguém que sabe, e porquê? Por que há de ser aquela pessoa, que é uma técnica da Torre do Tombo? E quem decide se deve expurgar ou não? Com isto, de certa forma, os arquivos estão a substituir os historiadores. Põem-se aqui muitas questões e muito complicadas. Além disso, muitas vezes enganam-se. Já muitas vezes vi nomes que não estavam na primeira nem na segunda página, mas estava na última! Uma vez veio-me uma carta ao Salazar expurgada, mas esqueceram-se de que no final a pessoa assinava e estava lá o nome...


O Pereira de Carvalho teve essa preocupação, até num momento em que a prioridade deveria ser ele mesmo... Estava tão seguro de que não lhe fariam mal, ou a coisa era tão importante assim?

Eu penso que era a coisa mais importante dos serviços de informação. A Pide estava dividida basicamente entre serviços de informação e serviços de investigação. Os serviços de investigação eram os que interrogavam, era onde estavam os torturadores. O outro serviço fazia a procura da informação propriamente dita, e geria os informadores.


Há muita coisa que ainda não se sabe. Por exemplo, por que a Pide não foi o primeiro alvo?


Porque a Pide, em princípio, devia continuar. Foi nomeado um chefe, o Coelho Dias, um spinolista da Pide. Acho que a Pide não reagiu porque estava dividida, havia duas linhas, e esperava continuar. Uma parte ia ser saneada, mas a Pide continuava.


A Pide conhecia os planos do 25 de Abril? Do golpe de Estado?

A ideia que eu tenho é que não sabia o dia, e aí o Otelo tem todo o mérito, porque depois das Caldas da Rainha, em que eles apanham toda a gente, convenceram-se que tão depressa não ia haver outro golpe. O golpe das Caldas foi muito bom para o 25 de Abril, porque eles aprenderam o que não se devia fazer. E a Pide pensou: "agora não nos vamos preocupar com estes, porque estes estão inutilizados". E isto, ainda por cima, foi transmitido a todos os serviços secretos. A CIA chegou até a tirar os dois ou três agentes que cá tinha, porque pensava que durante um tempo não ia haver nada.


A Pide sabia que se preparava qualquer coisa, mas não soube do dia 25 de Abril. Mas acho que isso tem a ver - e isso ainda está tudo por investigar - com saber se havia, digamos, recrutas dentro da DGS que fossem mais spinolistas. Porque depois também ninguém esperava o processo revolucionário que se seguiu. Aquilo era um golpe militar. Os presos não estavam para sair todos...


As pessoas esquecem, mas isso até está na lei: a Pide foi extinta, mas na metrópole.


Continua como serviço de informações, na guerra colonial, enquanto ela durar.


O facto de haver Pide spinolista tinha a ver como uma ligação antiga da Pide com o exército nas colónias...

Sim, desde a guerra colonial que há uma relação muito próxima. As Forças Armadas contavam muito com a Pide. E por isso acho que houve também uma espécie de deixar andar. O Costa Gomes mandou libertar o São José Lopes. O Spínola mandou libertar o Fragoso Alves. E há muitos que são libertados mesmo de propósito para continuar as suas tarefas.


O papel da Pide nas colónias tinha principalmente a ver com os movimentos de libertação. Não era um papel interno ao Exército...

Não. Aliás isso é um aspecto muito curioso. O Sousa e Castro há tempos deu-me uma entrevista e disse-me: "A Pide? Mas a Pide a nós nem nos tocava! Aliás, tinham ordens para não nos tocar." Disse até que a correspondência dos soldados era aberta e vigiada pela própria tropa e não pela Pide. Eles tinham ordens para não tocar na tropa. A única coisa que eles andaram a vigiar depois do golpe das Caldas foi a possibilidade de haver um golpe do Kaúlza!


O surgimento dos grupos de extrema-esquerda no final dos anos 60 confunde a Pide?

Houve uma enorme confusão a todos os níveis. Sobre a ARA, a Pide no início não percebe nada, há um relatório em que dizem: "devem ser os do MRPP". Não percebem que era o PCP. Não percebiam se as várias operações eram da mesma organização, se as Brs também pertenciam à ARA. A Pide, no início, preocupava-se com os anarco-sindicalistas e com os reviralhistas, não com o PCP. O PCP começa a ser um alvo principal da PVDE ainda em 1934, 35. E especialmente a partir de 1945. Já não havia anarco-sindicalistas, os reviralhistas estavam neutralizados... Foi a partir daí que a Pide começou a ser uma polícia ostensivamente e praticamente só virada para o PCP, além de um ou outro, como o Henrique Galvão, mas era principalmente o PCP. O Fernando Gouveia, da Pide, sabia tanto do PCP quanto uma pessoa do PCP...


Uma coisa que aprendemos com o seu livro foi que os métodos da Pide mudaram nessa altura. E mudaram por causa da CIA....

A partir dos anos 60, sim. Por volta de 1957, eles têm o primeiro relacionamento, quando vão pessoas fazer estágios. Há um célebre relatório de 1963, que discute como se deve interrogar os presos, em que só se fala do sono e da estátua. A estátua já era utilizada antes, e depois foi abandonada. Mais tarde é usada de novo, mas já com a experiência da CIA. Era o que eles chamavam de experiências sensoriais. O isolamento, em que a pessoa ficava completamente fora do mundo, o não poder dormir, o não poder movimentar-se. E largaram completamente a pancada. Começaram a perceber que a pancada provoca reacção, raiva e resistência.


Em que medida é que a Pide influenciou a cultura da resistência?

Influenciou a cultura do PCP. No fundo, em última análise, era a Pide que decidia se alguém era um traidor ou não. O que é muito complicado. E também influenciou muito porque o PCP tem períodos em que funciona só em relação à Pide. O que devia ser um meio, passa a ser um fim.


E deve ter reforçado a ideia de que a sobrevivência do partido era o elemento essencial...

Exactamente. Perdem-se os fins. Aliás, o chamado "desvio de direita", onde está o Júlio Fogaça, é muito típico dessa altura. É um período em que eles estão completamente voltados para dentro. O funcionário clandestino entrava numa rotina absolutamente extraordinária, não tinham já capacidade de análise da situação, também não tinham feedback nenhum e vivam num mundo completamente fechado. Nesse aspecto, era mais uma vitória da Pide.


A dada altura, as reuniões de célula eram só para discutir "se fores preso, camarada".


Diz no seu livro que uma coisa que a surpreendeu foi saber que a Pide afinal não estava em todo o lado. Mas esse era também um dos objectivos da Pide, não era? Manter essa ideia de que era omnipresente, para meter medo e impedir a reacção das pessoas...

Sim. Aliás, houve outra coisa que me espantou. Eu tinha a ideia de que se começou a ouvir falar de prisões no marcelismo. Eu estava numa organização, O Comunista, e lembro-me de ter visto a notícia de prisões de O Comunista no Expresso. E pensei: isto é uma coisa nova. Mas não, sempre foi assim: a Pide esmerava-se em dar conta do que é que fazia. Para dar a entender: "atenção, que nós somos super-eficazes." E quando prendiam funcionários do PCP, emitiam notas oficiais directas da Pide - iam através do SNI mas eram feitas directamente pela Pide - nos jornais. Chamou-me a atenção também porque a Gestapo fazia a mesma coisa. No período dos campos de concentração, divulgava-os. Depois mudou de atitude com os campos de extermínio, esses já eram escondidos. Mas divulgava Dachau, e dizia que os adversários políticos estavam lá. Porque praticavam o terror. Queriam que a população soubesse, para não se mexer.


Por isso a Pide não precisava de ter muito mais gente. Só precisa depois, na época da guerra colonial. Para o fim, havia mais pessoas da DGS que na metrópole..

in Esquerda Net

seg 07-04-2008

.

_______________

Quarta-feira, 7 de Novembro de 2007
A PIDE NA HISTÓRIA
.

O livro que resume a tese de doutoramento de Irene Pimentel sobre a história da PIDE (1945-1974) (*), constitui o documento disponível mais completo e de abordagem mais sistemática sobre o papel, o funcionamento e os métodos da actividade da polícia política no tempo da ditadura portuguesa, em que o seu cariz fascista perdurou além da queda do nazi-fascismo e mercê da sua integração no bloco anticomunista da guerra fria. O rigor do trabalho realizado pela historiadora e a diversificada consulta documental que o suportou (**) permite uma abordagem que desmonta mitos, fantasmas e lendas largamente difundidos pelo imaginário antifascista. E, pelo rigor introduzido, nada se perde no quadro sinistro do instrumento essencial do uso e abuso de poder que a PIDE representou, bem acima de qualquer resquício de respeito pela lei e pelo direito, servindo apenas como braço de repressão e terror dos ditadores (Salazar e depois Caetano). Com eficácia, sem ter ultrapassado o campo instrumental, a PIDE obedecia à lógica da ditadura, ligando-se directamente aos ditames dos ditadores, neutralizando selectivamente os opositores mais perigosos e funcionando para o conjunto da sociedade como meio poderoso de amedrontamento e como dissuasor da intervenção social, cívica e política. Demonstra, ainda, pelo largo campo de recrutamento de informadores e infiltrados conseguido, como o medo, quando atinge uma ampla dimensão social, é essencialmente corruptor. Finalmente, fica claro, pela incapacidade de Caetano em mudar a natureza e formas de actuação da PIDE, nomeadamente quanto à impunidade de aprisionar e torturar, como a fase da ditadura pós-Salazar (1968-1974), além da mera cosmética na designação da polícia política (de PIDE para DGS), como a ditadura enformada por Salazar não era passível de qualquer reforma política de fundo ou meio fundo, a não ser quando um ou vários dos três pilares do regime (poder económico que dela beneficiava, a PIDE e as Forças Armadas) se virasse contra ela (foi o suporte militar que o fez em 1974, incapaz de suportar mais o fardo de peso insuportável da guerra colonial).

Tendo a historiadora concentrado a sua investigação na fase 1945-74, o resultado disso não se ressente na medida em que a fase anterior policial (a praticamente coincidente com a época da antecessora PVDE) constitui aquilo que se poderá chamar de pré-madura (com brutalidade mais directa e indiscriminada mas também de eficácia mais reduzida), a inspirada na Gestapo e nas polícias de Mussolini e Franco. De facto, é com a integração da PIDE nos aparelhos policiais aceites pelas democracias anticomunistas no confronto da guerra fria, nomeadamente com apoio e formação da CIA, que a polícia política portuguesa atinge a sua maior sofisticação e eficácia, nomeadamente nas técnicas de investigação, tratamento de informação, infiltração e os métodos de tortura para extorsão de confissões, agora apoiados em conhecimentos da psicologia dos prisioneiros despidos de qualquer direito ou protecção.

Irene Pimentel concentrou o seu estudo da PIDE quanto à sua intervenção em território português europeu. A sua justificação entende-se (Dalila Cabrita Mateus já havia estudado, publicando o resultado da sua investigação, a intervenção da PIDE nos territórios coloniais). Mas o resultado desta opção não deixa de proporcionar uma obra coxa e distorcida, acabando por padecer de uma (involuntária) deturpação eurocêntrica. Sem se entender o que foi a PIDE nas colónias e no período da guerra colonial, nomeadamente a forma como esta tratou os africanos e a sua ligação (com difundida aceitação) aos colonos, o quadro final é inevitavelmente distorcido. Com a guerra colonial, a PIDE tornou-se uma peça fundamental dos comportamentos militares, conseguiu o que nunca atingiu na metrópole (a aceitação pela população colona), deslocando para África o essencial do seu aparelho e da sua metodologia, passando a intervenção metropolitana a ser um complemento de vigilância sobre a “retaguarda”. E se África sempre marcou a história portuguesa até 1974, nada do que é essencial na ditadura, nomeadamente quanto ao seu aparelho repressivo, pode ser entendido em alheamento à componente dos acontecimentos africanos.

(*) – A História da PIDE”, Irene Flunser Pimentel, Edições Círculo de Leitores e Temas & Debates

(**) – A historiadora, por opção sua, cingiu-se a fontes documentais escritas, tendo enjeitado o recurso a testemunhos orais.

.

in agualisa6.

.

.

1 comentário:

Júlio Pêgo disse...

Concordo com a posição crítica de Victor Nogueira em relação à PIDE.Há que aprofundar a investigação, nomeadamete os seus tentáculos ao mundo do trabalho, a ligação às empresas e até a colaboração financeira destas com o orçamento da Pide.Seria interessante, para além da vertente informativa e de investigação repressiva, como a Pide se organizava em relaçao ao proletariado, estudantes,intelectuais,etc.