quarta-feira, 29 de maio de 2024

Pedro Tadeu - Os tribunais estão mesmo loucos?

 * Pedro Tadeu, Jornalista

OPINIÃO 

29 maio 2024  

A empresa dona dos hipermercados Continente, a Sonae, anunciou em março que o ano passado obteve um lucro de 357 milhões de euros. A semana passada publicitou que este ano, nos primeiros três meses, já soma 25 milhões de euros em lucros, um pouco melhor que em igual período de 2023.

 Esta fantástica contabilidade do grupo liderado por Cláudia Azevedo é capaz de ter de sofrer uma retificação em baixa pois o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o Continente terá de devolver a um funcionário do hipermercado a quantia de 365,7 euros que reteve do salário desse homem.

O Jornal de Notícias de quarta-feira passada explicou que em 2021 o trabalhador (a empresa trata-o, num comunicado, por “colaborador”, mas parece, pelo relato que se segue, que ele trabalhava mais e colaborava menos) meteu a farda de trabalho num saco de plástico para a levar quando se preparava para sair. Foi retido e confrontaram-no com a acusação de roubo do dito saco de plástico. O trabalhador devolveu o saco de plástico, que custou à empresa 2 cêntimos, e saiu.

O Continente, porém, achou que o caso não devia acabar aqui: decretou uma suspensão de 15 dias ao trabalhador, a perda de 15 dias de antiguidade e a cassação de metade do salário de um mês: os tais 365,7 euros. Note-se que este “colaborador” trabalhava há imensos anos no Continente, tinha a classificação de “operador especializado” e auferia um salário de 735 euros, apenas mais 70 euros que o salário mínimo nacional de 2021.

O trabalhador não colaborou na sua própria punição e recorreu, inconformado, para o Tribunal de Sintra. Pois o douto juiz (ou juíza, não sei) que analisou o caso achou que a punição imposta ao trabalhador era “proporcional, adequada e necessária”.

 O trabalhador continuou a não colaborar e recorreu para a Relação. Desta vez o tribunal achou que “roubar” meio salário a um homem por ele ter “roubado” um saco de 2 cêntimos nada tinha de proporcional, adequado ou necessário e mandou o Continente reverter a decisão e pagar o que devia ao seu empregado.

Depois foi o Continente a recorrer para o Supremo, onde perdeu em toda a linha - só que, entretanto, passaram-se três anos e, imagino, o ambiente para aquele trabalhador, que entretanto se reformou, deve ter sido bem difícil.

Num comunicado que o Continente emitiu depois da notícia ser conhecida é dito que esse “colaborador” trabalhou 23 anos na empresa, que teve “outros processos” sublinhando que, neste caso do saco de plástico, o primeiro tribunal e o Ministério Público, na Relação e no Supremo, deram razão ao hipermercado - assim como quem insinua: “Nós não estamos malucos, até houve vários magistrados do nosso lado.”

E aqui está o ponto onde queria chegar: como é possível tantos doutos e respeitáveis togados acharem razoável, ou, melhor, acharem “proporcional, adequada e necessária” uma suspensão de 15 dias e a apreensão de metade de um salário por causa da porcaria de um saco de plástico de dois cêntimos?

Como é evidente, não há aqui uma questão técnico-jurídica que impelisse, sem apelo nem agravo, uma decisão favorável à impudência do Continente, pois quer o Tribunal da Relação quer o Supremo Tribunal encontraram os fundamentos jurídicos para dar razão ao trabalhador.

Como também é evidente, as posições que estes juízes e procuradores da República tomaram basearam-se sobretudo na convicção que formaram sobre a credibilidade dos testemunhos que ouviram, dos factos que apuraram e do discernimento ideológico com que traduzem o mundo nas suas inteligências.

Há, parece-me, uma geração de magistrados que, à partida, está mentalmente disponível para acreditar mais num administrador ou num diretor de Recursos Humanos de uma grande empresa do que num trabalhador que ganha pouco mais do que o salário mínimo.

Há uma geração de magistrados que acha “proporcional, adequado e necessário” o livre arbítrio com que as grandes empresas andam a tratar os trabalhadores “menores”. Dá ideia que, desde que não os espanquem, quase tudo é aceitável para meter essa “escumalha na ordem”.

Há uma geração de magistrados que, claramente, foi educada num preconceito de classe, no fiel respeitinho pelo grande “empreendedor” (para os pequenos empresários a coisa fia mais fino) e na preconceituosa desconfiança para com o “colaborador”.

Quando essa geração de magistrados for maioritária nos Tribunais da Relação e no Supremo, trabalhadores que tentem levar do Continente, sem pagar, um saco de plástico de dois cêntimos só podem esperar um veredicto: “Olho na rua! A bem da Nação.”

https://www.dn.pt/7410947079/os-tribunais-estao-mesmo-loucos/

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Agostinho Lopes - Catarina, mito e história – dimensões do anticomunismo

 


OPINIÃO

* Agostinho Lopes

Membro da Comissão Central de Controlo do PCP e responsável pela Comissão para os Assuntos Económicos

Os mitos e os símbolos só são perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo da sua construção e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos da acção, do combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem guerras nem exploração

27 MAIO 2024 18:31

As narrativas em torno de Catarina Eufémia sucedem-se desde o 25 de Abril na comunicação social e na edição (1). Até esta data Catarina era apenas uma referência no Avante! e noutras publicações do PCP (2). Depois da Revolução, em geral está presente uma persistente dimensão do anticomunismo em tudo o que se foi produzindo: a ocultação ou instrumentalização da «personalidade» para invectivar/atacar o PCP. Um anticomunismo latente ou patente que não tem sossego!

A tese é simples (ou simplória): alguém que foi herói, artista destacado, escritor, personalidade multifacetada que se destacou pelos seus méritos, comportamentos heróicos, obra humana ao serviço da sociedade, luta de resistência ou combate à opressão, exploração, humilhação da sua classe ou semelhantes, não pode ser comunista! Ou estava enganado na sua ingenuidade ou ignorância, ou o Partido o enganou, ou nunca perfilhou o ideário comunista, ou tinha/participava em actividades do PCP mas era sem saber, ou era mas depois deixou de ser, etc., etc... são muitas as possibilidades! E quando não há mais nada a fazer, então faz-se uma coisa mais simples: nega-se a sua condição de comunista ou membro do Partido, ou proximidade do Partido. Ocultando essa sua condição. Eliminando-a da biografia. Descobrindo divergências, zangas, confrontos entre a personalidade e o PCP. Então se arranjar declarações, mesmo confusas, duvidosas, … de familiares ou amigos, ou vizinhos, é ouro sobre azul!

A falta de seriedade relativamente a membros do Partido durante a ditadura, ou no mínimo alguma razoabilidade, deveria levar a reflectir quais os critérios e testemunhos adequados, consistentes, para se concluir se alguém era ou não membro do PCP, quando este e os seus militantes viviam numa rigorosa clandestinidade! E não a sua selecção e instrumentalização ao serviço das teses que se pretende exibir. Dir-se-ia que alguns gostariam que se exibisse um cartão, provavelmente com foto, para comprovar a filiação comunista. Ou então validar a pertença ao PCP por declaração em papel selado com selo branco da PIDE! Será que desconhecem que numerosos membros do Partido, pela sua situação partidária ou como resistência à arbitrariedade da prisão pela polícia, se recusavam a confessar pertencer ao PCP? Basta que algum familiar diga que não era militante, passado décadas, para não o ser? Desconhecem que, salvo situações extraordinárias, a condição de militante era salvaguardada inclusive dentro da família e familiares próximos, até para defesa destes? E como é que distinguem entre a credibilidade do testemunho de amigos/vizinhos/companheiros de trabalho se uns dizem que sim e outros dizem que não, ou ainda outros que não sabem? Ou acham que os nomes de uma célula local ou de empresa era conhecida de toda a gente, mesmo de todos os que a integravam? Será de perguntar talvez através de lista afixada na Junta de Freguesia! Seria, como pretende Felícia Cabrita na sua peça: “O homem (marido da Catarina) mantém a mesma fidelidade ao partido e passa a ter como aliada a companheira que, ao contrário do mito que em torno dela se edificou, nunca chegou a ser militante. Era mais uma comunista platónica.” (3) Platónica, como?, se a mesma jornalista constata que ela desempenhava um trabalho político de distribuição de panfletos? Se é visível dos testemunhos que recolhe o seu papel de agitadora junto de companheiras, e mesmo de dirigente quando encabeça o protesto que a leva à morte, assassinada pelo Carrajola? Se há outros testemunhos de companheiras de trabalho que referem inclusive uma iniciativa de recolha de fundos para o camarada Francisco

Miguel preso em Peniche? No filme “Seara Vermelha” da RTP1, para lá de se “esquecerem” que o movimento do grupo de mulheres encabeçado por Catarina é em si mesmo a presença do trabalho do PCP e da sua Célula Local de Baleizão, insistem na tese da falta de provas da filiação partidária de Catarina. Primeiro vem o depoimento salomónico de Pacheco Pereira: “Era militante do Partido Comunista ou não era? Se me perguntarem eu digo sim e não. A imagem tornou-se um símbolo e o Partido Comunista usa essa imagem de forma simbólica. Mas os esquerdistas depois também fizeram isso.” Depois o narrador consolida a tese: “Não existem provas inequívocas (o que serão num caso destes, provas inequívocas?) da ligação directa de Catarina ao Partido Comunista. Há dúvidas e incertezas, mas numa região onde o Partido dominava a partir da clandestinidade tornam-se naturais e particularmente relevantes alguns gestos e comportamentos.” E é claro que o narrador afirma tal para desvalorizar/anular a “prova” que fazem as declarações da filha de Catarina (Maria Catarina Baleizão do Carmo) – que se seguem no documentário – ao dizer que tem na memória imagens da mãe a “distribuir panfletos”!

Mas há o testemunho inevitável e irrecusável e inequívoco de António Gervásio, funcionário do PCP na região, deslocado logo após o assassinato para o distrito de Beja: “ Há gente que não gosta do PCP e procura negar que Catarina fosse militante do PCP. É necessário dar luta a essas mentiras. Catarina Eufémia era não só militante desde 1953, como era membro do Comité Local de Baleizão do PCP e um dos seus membros mais activos.” E também testemunhos de camaradas da Célula de Baleizão de Catarina, e que com ela participaram no protesto, como Francisca Bia. (4)

Pode alguém pensar ser o caso de Catarina uma excepcão, um acaso? Não pode, são peças numerosas e significativas de um anticomunismo militante que não tem hora nem descanso... como o licranço! Sempre pronto a ferrar o dente... A lista é numerosa... e não terá fim enquanto por cá andar o PCP. Lembremos o caso recente de Maria Lamas – “a mulher portuguesa mais importante do século XX” aqui no Expresso recordado há meses (5), poderíamos lembrar Bento de Jesus Caraça, ou mesmo mais recentemente o de Saramago. Mas será também de não esquecer o exemplar caso de Carlos Paredes nas notícias da sua morte, que perfaz 20 anos no próximo dia 23 de Julho.

CATARINA EUFÉMIA E OS MITOS

Outra via para destruir o essencial de qualquer correcta narração histórica e a sua articulação com a luta do PCP e o PCP é através da transformação/transfiguração em mito de um acontecimento/acontecimentos que marca, ou é marcado por uma personalidade, dissolvendo nesse processo a heroína/herói (em geral responsabilizando o PCP por tal…) É o que surge também nas três abordagens já referidas (1), em que se chega a escrever: “Baleizão é uma espécie de Cova da Iria. E Catarina o mito “mariano” dos sem-terra do Alentejo.”

Mas o problema não é o do “mito” criado em torno de Catarina – seria natural que um acontecimento com a sua valência histórica e exemplar na luta antifascista, pela sua envoltura dramática e colhido pela poesia e a música de poetas e cantores, acabasse por impulsionar essas narrativas que inevitavelmente arrastariam o PCP de forma mais ou menos correcta… O problema é apenas a sua instrumentalização e sobreposição à história dos acontecimentos, com o objectivo de socavar o papel do PCP no processo histórico da luta, esvaí-lo do seu sangue revolucionário, confrontar mesmo o PCP com a multiplicação de variantes mais ou menos fantasiosas, e se possível afastar a “heroína/herói” da história da luta do PCP. Neste caso, negar Catarina ao PCP, negar Catarina à luta que o PCP organizava e impulsionava no Alentejo contra o latifúndio e a ditadura fascista.

Os “mitos” (símbolos) são uma invariância no reino da necessidade das sociedades humanas de todos os tempos, ou pelo menos das que têm um tempo histórico conhecido. Inclusive, nos dias conturbados que são os nossos. Na religião. Na política. Na cultura. No desporto. E etc... O homem/mulher continua a não (conseguir) viver sem mitos/símbolos. E qualquer leitura simplista ou redutora, racista ou xenófoba, (a)histórica ou (a)cultural, ou mesmo interesseira/mesquinha perderá a enorme riqueza humana que eles contêm. A imensa humanidade que representam, construídos que são sobre a fome e a sede, a opressão e a injustiça, a doença e a dor, o medo e o terror perante o ignoto, dos homens e mulheres no seu lento, longo, complexo caminhar até hoje. Mesmo quando são coisas alienantes e alienadas visões da história, da sociedade, da realidade.

Catarina Eufémia foi (e ainda é) um desses mitos/símbolos que alimentaram muitos anos de combate à ditadura fascista, na esperança da revolução que trouxesse o pão, a paz e a liberdade a Portugal inteiro, e não só aos alentejanos. Como todos os mitos/símbolos que revestiram o corpo de um homem/mulher, real ou inventado, foi no processo de “construção” descarnado do seu concreto ser e viver humano, transfigurado e exaltado de forma quase exclusiva, na sua dimensão mítica, de símbolo político da luta do povo alentejano contra o latifúndio. A pouca “carne”/vida concreta que transporta procura assegurar a sua existência real, verdadeira.

É assim de pouco interesse saber hoje (como acontece com alguns escritos anti-PCP ) de muitos dos pormenores, claros e escuros, em que mergulham por vezes a história da vida e morte de Catarina. O crime não é mais ou menos hediondo, não se reduz ou aumenta a dimensão heróica da sua figura. (E isto sem desvalorizar todo o aprofundamento do estudo histórico dos dramáticos acontecimentos que deve continuar a ser feito). Ela era uma pobre trabalhadora rural explorada pelo latifúndio. Ela resistiu e foi morta. E assim se transformou em símbolo/mito dos comunistas e do seu Partido. Que animaram essa luta heróica de resistência à fome, desemprego, exploração dos latifundiários. Que tinham na Ditadura o poder político que os defendia e que era sua emanação.

Os poetas são fervorosos construtores de mitos e símbolos. Leiam-se os poemas de Sofia e Ary e compreendemos toda a humanidade presente em Catarina, camponesa assassinada em Baleizão a 19 de Maio de 1954. Para não falar da canção de Zeca Afonso construída sobre um poema de Vicente Campinas. E faltam muitos e muitas a esta curta lista.

Os mitos e os símbolos só são perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo da sua construção (mesmo quando não conseguimos a sua integral racionalização) e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos da acção, do combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem guerras nem exploração. Se o mito não ilude, perturba, apaga o grito presente no último verso de Sofia para Catarina: “E a busca da Justiça continua”.

(1) Para este texto tenho apenas em consideração as “narrativas” de três abordagens: (i) “Como morreu a ceifeira que ficou na história”, Felícia Cabrita, SOL, 25ABR24; (ii) “Chamava-se Baleizão, Catarina Eufémia”, Paulo Barriga, Público, 19MAI24; e (iii) “Seara Vermelha”, documentário, José Manuel Portugal, RTP1, 17MAI24. Sendo diferentes nos formatos e ângulos de análise, têm todos marcas do que criticamente referimos no artigo: anticomunismo. No mínimo a tentativa de contrapor o discurso do PCP às palavras de familiares e gente que foi próxima de Catarina, mesmo que o texto de Felícia Cabrita o exiba de uma forma despudorada e acintosa.

(2) A peça de Felícia Cabrita exibe na página 11, numa fotografia intitulada “Recortes Imprensa/Regional”, quatro fac-smiles de notícias de jornais sem verificar que são todos recortes de n.ºs do Avante! clandestino!

(3) Página 4 do artigo de Felícia Cabrita atrás referido.

(4) “À memória de Catarina Eufémia, Militante Comunista Alentejana”, de António Gervásio, no livro Catarina de Baleizão, 50 anos depois da morte, Coordenação de João Honrado, Cooperativa Cultural Alentejana, 2004. Ver também neste livro os testemunhos de duas companheiras de Catarina: Antónia da Graça Leandro e Mariana Cascalheira.

(5) “Ocultação”, Expresso online, 09FEV24, Agostinho Lopes.

(6) Neste caso um jornal diário, Público de 24JUL04, em seis páginas e um Editorial sobre Carlos Paredes (ainda o jornal era publicado no formato “Tabloide”) as únicas vezes em que se refere PCP é no fim da peça “Depoimentos”, citando cinco curtas linhas do Comunicado de Secretariado do CC: “A morte de Carlos Paredes constitui uma grande perda para a arte e cultura portuguesa e também para o PCP, do qual era membro desde 1958 e militante generoso até ao fim da sua vida activa”, e na sua biografia: “1958 – É preso pela PIDE – DGS (a polícia política do Estado Novo) sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Português – de que de facto era militante, vindo a ser libertado no final de 1959”. Foram escritos importantes textos de Eduardo Lourenço, Manuel Alegre e Vasco Graça Moura, mas nenhum de qualquer personalidade da área do PCP – não devia haver nenhum! Um Editorial em que não se faz qualquer referência ao seu Partido, o PCP. E pior, no artigo central conseguiram mesmo insultar o seu Partido e o próprio artista: “Carlos Paredes fez da música e da guitarra portuguesa a sua vida. À esquerda e à direita (como???), a “inteligentsia” reivindicava-o como herói da sua causa. Foi vê-lo (a ele e a outros) actuar de graça por esse país fora no rodopio do 25 de Abril, a cantar a “liberdade” e a “justiça” em nome de partidos com poucos escrúpulos. Estava encontrado com despesas reduzidas de manutenção, o embaixador do nosso fado e dos valores tradicionais ou o “porta-voz” das classes desfavorecidas na luta pelos amanhãs que cantam, conforme o exigiam a ocasião e os interesses em causa. Ele existia e tocava, tocava sempre, e isso bastava-lhe”. Não, nunca bastou a Carlos Paredes… que toda a vida percebeu bem a luta e a vida do seu povo e a ela entregou parte importante da sua vida! Parte desta Nota são do artigo “Na morte de um comunista – Máscaras do Anticomunismo”, Agostinho Lopes, Avante!, 29JUL04.

27 Maio 2024

https://expresso.pt/opiniao/2024-05-27-catarina-mito-e-historia--dimensoes-do-anticomunismo-955c7d85

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Carlos Coutinho - Genocídios, etnocídios, massacres



*  Carlos Coutinho
 

PELO menos para mim, genocídio é hoje a palavra mais indesejável no vocabulário corrente. Mas já cá está e não me parece que, nos tempos mais próximos, a possamos excluir do nosso linguajar quotidiano, porque os factos, hoje em dia, quase sempre se transformam em notícias e estas não distinguem entre ouvidos sensíveis, ouvidos hipersensíveis – meus! – e os ouvidos de mercador.

Idiossincraticamente, caibo nas três categorias, embora seja a segunda e a terceira sejam as que mais se me podem aplicar.

É verdade que nem sempre consigo discernir entre genocídio, morticínio, massacre, limpeza étnica, pogromes e outras devastações demográficas, porque estas são mais que muitas na História da Humanidade, variam de extensão e de metodologia, continuam em diversos pontos do planeta e não me parece que vão acabar tão depressa, mas genocídio, no meu entendimento, é outra coisa e, de momento, só tenho indícios de um, o que os israelitas estão a perpetrar em Gaza.

Claro que entre os sodomitas e gomorranos bíblicos – que tornaram o dilúvio em única solução aceitável por Jeová – e os governadores britânicos da Austrália – que davam um coelho ou uma galinha por cada cabeça de aborígene que lhe levassem –, as diferenças são abissais, porque o primeiro caso é lendário e o segundo é histórico, assim como entre os cruzados e os muçulmanos, ambos verdadeiros documentados, mas, como não sou historiador, nem antropólogo, nem filósofo, vejo com razoável justeza as definições triviais, tomando como categóricos casos já muito estudados, como, por exemplo, o genocídio armênio. Ou, muito antes, os pogromes russos e polacos.

Quanto ao conceito de etnocídio, a tipificação é mais discutível e apenas me aparece com nitidez naquilo que os alemães fizeram, entre 1904 e 1908, no que hoje é a Namíbia. Mataram sem qualquer engulho ou hesitação ética, por simples cumprimento do desígnio político germinado e maturado em Berlim, 65 mil hereros e 10 mil namaques.

E, “se mais houvera, mais matara”, como os colonos e os seus militares fizeram aos índios, visto eles não eram gente. Eram bichos parecidos com pessoas – como acontecia a qualquer etnia vista da varanda dos conquistadores britânicos, espanhóis, portugueses, holandeses, franceses, etc.

Uma perceção que me assalta de forma sufocante é a da evidência de que será tanto maior a crueldade, frieza e racionalidade mortífera quanto maior for o desenvolvimento espiritual, técnico, científico, artístico do povo em cena, como ressalta do que gerou Hitler, Goebbels, Goering, Menghele e outros monstros absolutos, depois de ter gerado génios como Goethe, Schiller, Irmãos Grimm, Tomas Mann, Brecht, Anne Zeller, Mozart, Beethoven, Hegel, Kant, Marks, Enghels, Gunther Grass, os grandes cientistas, os extraordinários construtores de catedrais como a de Colónia, a de Aachen ou a de Frankfurt.

Nunca fiz as contas, mas, para já, o que me parece é que o mundo que fala alemão é também o fala melhor e com mais vozes diferentes ao resto do mundo, seja com Einstein a relativizar a realidade seja com Freud a definir como realidade espessa a ficção narrativa do vómito psíquico.

Detenho-me, por exemplo, no termo genocídio, ao olhar para o mapa de Angola, com a sua Baixa do Cassange, ou subo para a Palestina e soletro os nomes das cidades mártires da Faixa de Gaza, lembro-me do arrasamento metódico da espanhola Guernica e dos dois dias de bombardeamento ininterrupto anglo-americano da alemã Dresden, que matou 22 mil civis, assim como da incineração de Hiroxima, com os seus 160 mil mortos a que se juntaram os 80 mil de Nagasaki, três dias depois.

Não me violenta a consideração de que genocídio é o “extermínio deliberado de um povo – normalmente definido por diferenças étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, por vezes, sócio-políticas – a tal engenharia social –, no total ou em parte.

À nossa e escala e saltando por cima de todo sangue que fizemos correr pelas razões invocadas, há pelo menos três factos recentes que não devemos permitir que continuem obnubilados na nossa história. A saber:

3.8.1959 – Os marinheiros e os estivadores do porto de Bissau ao serviço da Casa Gouveia entram em greve, exigindo melhores salários e melhores condições de vida. “A PIDE, o cabo de mar e outras forças” encarregaram-se de resolver o problema, deixando no chão cerca de 100 cadáveres.

1953 – Em fevereiro, o mesmo tipo de assassinos com as mesmas obediências, mas acrescentando o envenenamento e o afogamento a sua sanha, procedem a uma limpeza que pode ter causado 132 mortos e ficou registado co mo o Massacre de Batapá.

1973 – Pelo menos 385 pessoas foram assassinadas na aldeia de Wiriyamu pela 6.ª Companhia de Comandos de Moçambique, além das que morreram na “limpeza” da zona, do local, que ocorreu nos três dias seguintes ou devido aos interrogatórios que seguiram o episódio. O massacre

As tropas portuguesas dizimaram um terço dos 1350 habitantes de cinco povoações (Wiriyamu, Djemusse, Riachu, Juawu e Chaworha) integradas numa área designada como “triângulo de Wiriyamu”, afetando um total 216 famílias em 40 povoações.

A chamada Operação Marosca foi instigada pela PIDE e “guiada” pelo agente Chico Kachavi, que foi assassinado mais tarde, enquanto o massacre era investigado. Os soldados foram instruídos por Kachavi de que “a ordem é para matar todos”, incluindo mulheres e crianças.

Mandava quem podia e obedecia quem devia.

Como Salazar gostava.

 2024 05 20

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domingo, 19 de maio de 2024

Carlos Coutinho - UMA das minhas ocupações mais frequentes


* Carlos Coutinho

UMA das minhas ocupações mais frequentes – e rendíveis! – é esta de procurar palavras caídas em desuso ou que apenas continuam a brotar das bocas ainda arcaicas de algumas tribos regionais lusitanas, gente que vai, sempre que pode, postar-se em frente de um ecrã de televisão, para apenas ver telenovelas, mesmo que não sejam brasileiras nem portuguesas.

Também as há mexicanas e venezuelanas, como se sabe, só que grosseiramente legendadas num português de segunda classe, escolarizado ou conventual.

Ainda se ouve dizer a expressão “por franças e araganças”, sem se ter em conta a valiosíssima herança cultural do escritor e crítico José Augusto França, nem o legado generoso do idealista maçónico nascido em Sobral de Monte Agraço, o jornalista e ensaísta França Borges, ou a pestilência largada pelo general França Borges, que também tinha intercalados no nome de batismo um vulgaríssimo António e um derrotado Vitorino e que, além de fascista incondicional e presidente salazarista, primeiro da Câmara de Torres Vedras e depois da de Lisboa, tem o seu nome nas placas toponímicas de uma rua próxima de Campo de Ourique.

É, portanto, um nome fardado e “andar por franças” significa “andar por muitos lados”, assim como “porra” começou por designar o duro cacete do infante medieval sem direito a espada que, às vezes, ainda aparece por aí, mesmo onde menos se espera.

Trata-se de um instrumento que até a PIDE usou nos seus primórdios no que pode ser uma educação à cacetada como a que Salazar, na sua juventude coimbrã, assessorando um futuro cardeal patriarca de Lisboa, largamente praticou em Coimbra, no princípio do século passado, imitando a minhota de pêlo na venta que viria a chamar-se Maria da Fonte os outros arruaceiros de que se serviu Camilo nas suas “Novelas do Minho” e no lacrimejante “Amor de Perdição”, com aquela cena tão portuguesa em que o furibundo Simão Botelho, um subfidalgote viseense, contaminado por uma paixão plebeia não autorizada pelos seus progenitores, protagonizou junto ao fontenário granítico de Castro Daire que eu nunca vi nas várias tentativas que fiz para tal, mas que, ao que me dizem, ainda verte água fresca no verão e quase morna no inverno.

Vem tudo isto a propósito do canhenho de palavras sepultadas no exterior do nosso léxico ou cruelmente abandonadas por imposição da ditadura daruinista que tudo apaga ou perverte, se o cadáver etimológico não couber nas tabelas de atualização civilizacional, vocabular ou até bairrista, mesmo que seja apenas dialetal, como o barranquenho e o mirandum.

É o que acontece, aliás, com "ficar ns encolhas", ou "a porca torce o rabo"", ou "cagalhetas", ou "unhas de fome", ou "berbicacho", ou "caga-sentenças" ou "salta-pociu "mama no burra", ou "borra-botas", ou "pilha-galinhas", ou "cuspir perdigotos", ou "pata-choca”, ou "pichorra", ou "mata-borrão", ou “escaravatanador”, a “esporra”, uma substância densa e fertilizadora, ou seja, o vizinho lexical de “porra” que ainda é educadamente nomeado como “sémen”, apesar de o latim, sem andar à porrada com idiomas próximos ou afins, assim o catalogar há mais dois mil anos como porru, um substantivo feminino que os godos e outros bárbaros transformaram posteriormente, cada um à sua maneira.

É certo que, hoje em dia, porra é um termo quase obsceno maioritariamente proferido como interjeição, seja para exprimir irritação, descontentamento e indignação, seja para mostrar surpresa, alegria, felicidade e euforia pós-vínica.

No plural, “essas porras” equivalem a coisas de pouca valia, como “ninharias, niquices, banalidades, bagatelas, bugigangas, porcarias”, etc.

Segundo a Wikipédia, estamos a usar um substantivo feminino que é o nome antigo da clava, ou seja, da arma rudimentar que não era mai

É o que acontece, aliás, com “esporra”, o vizinho lexical de “porra” que ainda é educadamente nomeado como “sémen”, apesar de o latim, sem andar à porrada com idiomas próximos ou afins, assim o catalogar há mais dois mil anos como porru, um substantivo feminino que os godos e outros bárbaros transformaram posteriormente, cada um à sua maneira.

É certo que, hoje em dia, porra é um termo quase obsceno maioritariamente proferido como interjeição, seja para exprimir irritação, descontentamento e indignação, seja para mostrar surpresa, alegria, felicidade e euforia pós-vínica. No plural, “essas porras” equivalem a coisas de pouca valia, como “ninharias, niquices, banalidades, bagatelas, bugigangas, porcarias”, etc.

Segundo a Wikipédia, estamos a usar um substantivo feminino que é o nome antigo da clava, ou seja, da arma rudimentar que não era mais que um pau curto, periforme, muito nodoso ou armado de puas de ferro. Também podia designar o pénis, o cacete, a moca ou uma barra, enquanto esporra é o masculino esperma. Há também quem, para significar o mesmo, diga langonha e meleca.

Entre os galegos, pode ser também um rebento de cebola, se plantado na terra, assim como cabeça do polvo. Já para os catalães, é um alho silvestre da espécie Allium pyrenaicum, assim como o bastão de extremo grosso que é a maça simbólica de autoridade, bem como uma moléstia duradoura. Expressa raiva, descontentamento, insatisfação, frustração.

Voltando, no entanto, às franças e às araganças, o que vemos é que “andar por franças e araganças” é um recurso retórico que se reporta aos tempos em que eram frequentes as guerras entre os dois países queria dar a noção de longas distâncias e paragens. Findas as guerras, foi a expressão foi equivalendo a "coisas e loisas, mundos e fundos, deste mundo e do outro”.

Julga-se também que a expressão ocorre, por um lado, como escorrência do antigo reino de Aragão (atualmente região autonómica espanhola) e, por outro, comodeturpação do próprio nome Aragão, de modo a fazer rima com França, como registou Orlando Neves no seu “Dicionário de Expressões Correntes”, observando:

“Se França se entende como o país além-Pirenéus, já parece que Aragança está aqui como deturpação, para efeitos de rima, de Aragão.

O uso no plural supõe-se ser também um recurso rítmico. "Andar por Franças e Araganças", em tempos em que eram frequentes as guerras entre os dois países, correspondia ao sentido de longas distâncias e paragens.”

Mas Aquilino Ribeiro, passando a expressão para o singular, ainda a escreveu com o sentido primitivo em “Filhas da Babilónia”: “Pergunte-me, antes, o que fui fazer ao meu país. Sabe o quê? Vender umas terras que herdei, espremer a teta da vaquinha, como diz um irmão que lá tenho.

A expressão é ridícula, mas traduz com felicidade o meu património, malbaratado por França e Aragança, bem magro, bem português. Aí tem!”

Aqui temos…


2024 05 19

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sábado, 18 de maio de 2024

Miguel Sousa Tavares - Quando os alarmes soam

 

* Miguel Sousa Tavares 

(EXPRESSO 2024 05 18)
2 - Em 24 de Fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia naquilo a que Vladimir Putin chamou uma “operação militar espe­cial”. Para trás tinham ficado meses de infrutíferas negociações destinadas a evitar a guerra, envolvendo sobretudo a Alemanha e a França, enquanto Inglaterra se mantinha ao largo e a NATO e os Estados Unidos se limitavam a dizer que a invasão estava iminente e nada faziam para a evitar. Num muito mediatizado encontro com Putin no Kremlin, o Presidente francês, Emmanuel Macron, saiu dizendo que estabelecera com o Presidente russo as bases para um acordo, retomando os princípios do Acordo Minsk II. Interrogado sobre esta declaração, Putin disse, no dia seguinte, mais ou menos isto: “Sim, com ele estamos de acordo. O problema é que não é ele quem manda na NATO, mas sim os Estados Unidos.” Pouco depois da invasão, logo em 10 de Março, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia e da Ucrânia reuniram-se para conversações de paz em Antalya, na Turquia, com mediação turca e israelita. Aí ficou estabelecido um acordo em 15 pontos, prevendo desde logo um cessar-fogo e a retirada russa, mas, quando tudo parecia pronto para ser assinado, Zelensky recuou. Segundo contou depois o então PM israelita Naftali Bennett, o acordo falhou porque Boris Johnson e Joe Biden convenceram Zelensky a não assinar, garantindo-lhe todo o apoio militar necessário para uma vitória sobre os russos. E em Abril, quando a possibilidade de novo acordo estava em cima da mesa, Boris Johnson voou para Kiev para de novo dissuadir Zelensky de o assinar. De então para cá cessaram todas as tentativas de parar a guerra e os poucos que se atreveram a falar de paz, incluindo o Papa, foram tratados como “amigos de Putin”. Hoje, o ex-PM inglês ganha centenas de milhares de euros a fazer conferências pelo mundo fora pregando a necessidade de apoiar a Ucrânia indefinidamente. E o complexo militar industrial inglês e americano ganha milhares de milhões a vender armas para a guerra da Ucrânia, pagas pelos contribuintes desses países e dos países europeus.
Entretanto, no campo de batalha passou-se alternadamente do medo de uma rápida vitória russa para a euforia prematura de uma vitória ucraniana e daí para a situação actual: o avanço consistente e continuado dos russos e a iminência de uma derrota ucraniana. As linhas vermelhas no apoio militar fornecido foram sendo sucessivamente ultrapassadas — em tanques, aviões, sistemas de defesa anti-aérea e mísseis de longo alcance, incluindo até a presença de “conselheiros militares” —, tornando claro que esta não é apenas uma guerra da Ucrânia contra a Rússia, mas da Ucrânia e da NATO contra a Rússia. Porém, mesmo o fornecimento, em qualidade e em quantidades impensáveis, de armamento ocidental à Ucrânia está a tornar-se impotente face a um último e decisivo factor: o factor humano. A Ucrânia está a ficar sem homens para a defender: os que estão fora não querem voltar, os que estão dentro tudo fazem para não ir para a frente. Para evitar a derrota da Ucrânia falta então dar o último passo, aquele que Macron — outrora mediador da paz — agora propõe: o envio de tropas ocidentais para combater na Ucrânia contra a Rússia. A Terceira Guerra Mundial.
Sejamos claros: a derrota da Ucrânia será uma catástrofe. Uma catástrofe para a Ucrânia, primeiro que tudo, e para os ucranianos, que já sofreram mais do que lhes podem exigir. E seria também uma séria ameaça para a Europa. É fácil, ironicamente fácil, compreender a dimensão do que seria a ameaça de ver a Rússia de novo uns milhares de quilómetros adentro das fronteiras da Europa “livre”: basta imaginar a ameaça que os russos sentem ao verem a NATO avançar paulatinamente em direcção às suas fronteiras desde 1991. Viver em segurança ou em estado de ameaça latente não mudou hoje em relação ao que era no tempo da “Guerra Fria”: mede-se nos minutos que leva o míssil disparado pelo outro a atingir uma grande cidade nossa, dando-nos ou não tempo para ripostar de igual forma. Chama-se “equilíbrio do terror” e tudo passa, portanto, pela demarcação de fronteiras entre os dois lados. Quando Putin avisa que vai reposicionar mísseis nucleares junto à fronteira com a Finlândia e a imprensa ocidental logo noticia que “Putin volta a ameaçar com a guerra nuclear”, o que ele está a fazer é simplesmente a repor o equilíbrio alterado pela adesão da Finlândia à NATO e pelos mil quilómetros de fronteira com a Rússia assim acrescentados.
Porém — e isto é uma tese que vale o que vale —, eu acredito que Putin não tem nada a ganhar com a ocupação de uma Ucrânia derrotada e hostil, nem sequer para efeitos de propaganda interna. De volta a Macron, dizia ele — o Macron pró-paz e quando a guerra não corria tão bem a Putin — que era preciso ajudar a Rússia a sair da Ucrânia sem ser humilhada. A frase, embora ele já não a subscreva, continua actual, porque só há duas maneiras de acabar com uma guerra: ou pela derrota e humilhação de um dos lados ou por um acordo de paz. Ao contrário do que afirma o nosso actual ministro da Defesa, nem as eleições europeias nem a política europeia se resumem a escolher entre “os amigos da Ucrânia e os amigos de Putin”. Os verdadeiros amigos da Ucrânia querem que a Ucrânia deixe de ser massacrada e que Putin saia da Ucrânia, e isso consegue-se negociando um acordo de paz em que ambas as partes terão de ceder e os únicos que sairão a perder são os amigos da guerra.
MIGUEL SOUSA TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

https://expresso.pt/opiniao/2024-05-16-quando-os-alarmes-soam-1dc1f354

Pedro Almeida Vieira - Um irresponsável populista chamado Gouveia e Melo


* Pedro Almeida Vieira
/ Maio 15, 2024

Gouveia e Melo andou em ‘conspirações de maledicência nos corredores militares‘ – irrelevantes e inúteis para a sociedade nacional e internacional – até lhe cair no colo a tarefa logística de vacinar contra a covid-19 até o periquito, incluindo, claro, crianças e jovens que jamais integravam grupos de risco.
A ‘medalha’ foi a sua ascensão, primeiro ao posto mais elevado do Almirantado da Marinha e depois ao cargo, para nosso encargo, de Chefe do Estado-Maior da Armada. E à boleia veio a peregrina ideia de ser ele um putativo candidato a Presidente da República, sustentada e promovida por jornais como o Diário de Notícias, que se transformou no seu órgão oficial, tanto é o palco que lhe concedem.
Desde aí, Gouveia e Melo, um especialista em submarinos, aproveita qualquer oportunidade para vir à tona mostrar a sua existência – e, hélas, tentar-nos convencer da suposta necessidade de o termos por perto, mesmo se ele tem vontade de mandar alguns de nós – presumo, os mais novos – morrer longe.
Em mais uma entrevista publicada hoje no Diário de Notícias, em parceria com a TSF (do mesmo grupo de media) somos confrontados com tiradas populistas e irresponsáveis, o que não admira porque vem de um irresponsável populista. Gouveia e Melo nada mais faz do que instigar um conflito grave. Fala das habituais passagens de navios russos na nossa gigantesca Zona Económica e Exclusiva (a quinta maior da Europa) – que deve ser fiscalizada com naturalidade – como se estivessem associadas a preparativos de uma invasão ou de um iminente conflito mundial. E, perante um conflito localizado geograficamente nos confins da Europa, face à nossa posição, e que deve ser tratado sobretudo pela via diplomática, e não por militares sedentos de bacoco protagonismo, destapa a sua veia – ou variz – bélica, prometendo insensatamente ‘carne lusa para canhão’.
Não é minimamente aceitável que em Portugal, em modelo democrático e em pleno século XXI, venha uma alta patente militar, como Gouveia e Melo, dizer estas duas simples frases a pretexto de um conflito armado grave, humanamente lastimável, mas que se circuscreve à mesma região há mais de dois anos: “E podem ter certeza absoluta de que se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum. Afinal, estamos a defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia“.
“Defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” não se faz, primeiro, através de uma organização militar a EXIGIR o que quer que seja a um povo, ainda mais ao povo de um país soberano com quase 900 anos de existência. A ideia de ‘carne para canhão’ não se conjuga bem como o ‘nosso modo de vida’ no século XXI.


Não se defende “o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” PROMETENDO que “vamos morrer onde tivermos de morrer”, sobretudo quando o senhor que assim promete não é o Mel Gibson a armar-se em romântico William Wallace – que, na realidade, foi enforcado e esquartejado por alta traição aos 35 anos – mas sim um homem de 63 anos, almirante e Chefe do Estado-Maior da Armada de um país da NATO, antevendo-se assim que, ficando tudo torto, ficará ele no recato do lar ou no conforto do seu gabinete a esquadrinhar estratégias e tácticas militares enquanto a gente (jovem) que ele enviou está a morrer onde tiver de morrer – e a matar. Tudo para supostamente se defender a Europa, como se fosse uma angélica pomba da paz.
Aliás, a ideia de “defender a Europa, que é a nossa casa comum”, colocando a Europa como um modelo, constitui uma pérola do populismo, ainda mais por meter a Rússia como pária. E nem é por a Rússia e a Ucrânia serem nações consideradas europeias, e nem é por ambos os países lamentavelmente não saberem o que é uma democracia, mas sim por o almirante Gouveia e Melo querer fazer-nos de parvos.
Se há um Continente do Mundo que é belicista, esse é a Europa, com conflitos seculares, mais ou menos duradouros, mais ou menos grotescos nas causas. Antes das chamadas Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), já houvera muitos mais conflitos armados à escala planetária, e se as duas do século XX foram marcantes deve-se sobretudo à capacidade tecnológica de letalidade e de afectar mais vidas de civis. E em todos esses conflitos de grande dimensão, não me parece ter sido a Rússia a má da fita.


Se erro histórico houve para que a Europa não tenha evoluído nas últimas décadas em conjunto com os mesmo valores – aproveitando a Queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética – foi o ostracismo a que se botou a Rússia – para agradar aos Estados Unidos –, não promovendo, por outro lado, através de vias diplomáticas, a resolução de evidentes disputas territoriais, como as da Crimeia e do Donbass.
A forma como se permite que militares se interponham em querelas que devem antes ser diplomáticas é um erro crasso. Ouvir um chefe militar anunciar alegremente que “vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum” é um ultraje, porque uma guerra é a pior das formas de se atingir a paz.
Acham que foi melhor, por exemplo, a compra da Louisana aos franceses em 1803 ou seria preferível uma guerra franco-americana?
Acham que foi melhor, por exemplo, o Tratado de Montevideu em 1828 que consagrou a independência do Uruguai ou seria preferível antes dirimir uma anexação oportunista de Portugal aos territórios da Cisplatina antes ocupados por Espanha através de uma guerra entre o então recém-independente Brasil e os independentistas uruguaios?
Acham que foi melhor, por exemplo, os milhares de acordos e tratados para se resolverem os milhares de disputas territoriais a nível mundial ou seria preferível que milhares de Gouveias e Melos por este Mundo fora enviassem milhares de inocentes para morrerem (e matarem) em nome de uma suposta “casa comum”?



Uma das coisas mais absurdas destes tempos modernos é a desmesurada vontade de muitos responsáveis políticos e militares em levarem toda a Europa para uma guerra fratricida, que é regional, e que assim deve continuar até que surja uma paz moderada pela diplomacia e bom senso.
E o bom senso inclui permitir que o almirante Gouveia e Melo falar opine sobre o envio de ‘carne para canhão’ contra a Rússia, mas não que o faça como Chefe do Estado-Maior da Armada. Sem funções militares, pode ele mandar as postas de pescadas que assim quiser como comentador de assuntos militares. Ser-me-á indiferente. Mas tê-lo assim, nesta postura, como alta patente militar, assusta-me mais do que os mísseis russos.

https://paginaum.pt/2024/05/15/um-irresponsavel-populista-chamado-gouveia-e-melo/

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Europeias '24 - Entrevista a João Oliveira (CDU)

 

Costa no Conselho Europeu? "Com um ananás não se faz um bolo de laranja"

Miguel Pinheiro -  Texto  / Rita Tavares - Texto /  Rui Pedro Antunes - Texto

 16 mai. 2024 

O candidato da CDU às europeias defende a saída do euro e admite um referendo sobre o assunto. Não vê vantagens em ter Costa na Europa. Admite ainda que a esquerda tenha um candidato único à Belém.


O comunista João Oliveira defende a saída do euro, mas garante que seria com preparação e com o país a receber compensações pelos prejuízos causados pelas políticas europeias. É o cabeça de lista da CDU às europeias de 9 de junho e vai já lembrando, a propósito do euro, que a Suécia e a Dinamarca não estão na moeda única e que isso não é um drama para esses países.

Em entrevista à Rádio Observador, o cabeça de lista comunista diz que António Costa na presidência do Conselho Europeu não significaria uma vantagem para Portugal, embora admita que o socialista é uma pessoa “muito diferente” de José Manuel Durão Barroso, que foi presidente da Comissão Europeia num período especialmente sensível para Portugal, quando teve de pedir assistência financeira.

Nesta conversa no programa Sob Escuta, o comunista mostra-se ainda preocupado com a escalada de declarações dos líderes europeus que parecem preparar a Europa para a guerra, incluindo nas que lhe causam maior melindre as proferidas pelo almirante Gouveia e Melo. O cabeça de lista da CDU admite ainda que venha a existir uma candidatura comum da esquerda à Presidência da República em 2026.

“A Dinamarca e a Suécia não estão no euro e não consta que tenham problemas”

Já disse que Portugal tem de se preparar para uma saída do euro. Que preparação seria essa, exatamente? Quanto tempo demoraria? Pode dar-nos mais detalhes?
A perspectiva que temos quando abordamos esta questão do euro é a de identificar os elementos de crítica que temos relativamente ao euro e às consequências negativas que tem tido para o país, na perda da desvalorização dos salários, na perda de capacidade produtiva, na sujeição do país a um conjunto de dificuldades que lhe são impostas de fora. O exemplo das taxas de juros decididas pelo BCE, com a ruína toda que causam às famílias, às pequenas e médias empresas, são talvez um exemplo flagrante disso. E, a partir dessas razões de crítica, aquilo para que queremos apontar é um caminho de resposta a esses problemas. Não centramos a nossa crítica no euro. Há um conjunto de outros aspetos de políticas europeias.

Mas como é que nos preparávamos para sair?
Isso implica que, identificando essa origem dos problemas, tivéssemos que tomar decisões e orientar as nossas políticas para dar resposta para ultrapassarmos esses problemas. E isso significa que, em relação ao euro, temos que ter o país preparado para lidar com essa opção de libertação da submissão ao euro. Seja por decisão própria, seja para lidarmos com essa decisão se ela nos for imposta de fora.

Mas o é que isso significa?
Significa tomar medidas de valorização dos salários, de preparação da defesa dos salários, das poupanças, dos rendimentos dos portugueses. Significa tomarmos medidas de desenvolvimento da nossa capacidade produtiva naquilo em que hoje estamos dependentes do estrangeiro.

Saindo do euro, iria haver um enorme aumento de preços de tudo o que fosse bens importados…
… a Dinamarca e a Suécia não estão no euro e não consta que tenham…

Mas nós é que iríamos sair, não é?
Repare uma coisa, a circunstância…

… isso iria levar a um aumento imediato dos preços dos bens importados, não é?
Se eventualmente fôssemos empurrados para fora do euro, se não estivermos preparados para isso, sim. Se tomarmos medidas para evitar isso, não.

Mas como é que evita estas consequências?
A questão é precisamente essa, é tomar medidas para evitar que situações dessas aconteçam. Porque quando nós colocamos a questão de preparar o país para se libertar do euro, é na perspectiva de termos um país melhor, com salários melhores, com mais capacidade produtiva, com mais capacidade de satisfação das necessidades nacionais sem dependência externa.

Saída do euro? "Não temos nenhum prazo fixado em relação a isso, porque essa é uma questão que verdadeiramente há de ter que ser colocada em função do caminho que o país conseguir fazer"

Mas como é que evitaria, por exemplo, que o valor da nossa dívida disparasse com aquilo que eu presumo que depois quisesse fazer, que fosse uma desvalorização da nova moeda?
Esse é um dos aspectos que há mais ou menos 10 anos foi discutido com alguma profundidade relativamente às medidas que precisamos de tomar em qualquer circunstância, haja ou não integração na zona euro. Portugal deve tomar medidas que permitam uma resposta à situação de endividamento público que temos. São medidas de captação das poupanças internas, por exemplo, de diversificação das fontes de financiamento do Estado português, de capacidade de, a partir de medidas internas e também de alargamento e diversificação das fontes de financiamento do ponto de vista externo, não ficarmos dependentes de um credor em especial e não ficarmos sujeitos a operações especulativas como aquelas que tivemos em 2013.

E tem um prazo? Esta preparação duraria quanto tempo? Cinco anos? Dez? 
As medidas de preparação da adesão ao euro demoraram à volta de oito anos. É a mesma coisa, mais ou menos. Não temos nenhum prazo fixado em relação a isso, porque essa é uma questão que verdadeiramente há de ter que ser colocada em função do caminho que o país conseguir fazer. Agora, não é possível desligar esta consideração a propósito do euro daquilo que verdadeiramente precisamos fazer para resolver estes problemas. A consideração das medidas para preparar o país para fazer esse caminho está objetivamente dependente dos objetivos que queremos atingir com isso. A valorização dos salários nos últimos 25 anos foi exatamente o oposto. Aliás, essa era uma das grandes promessas, que com o euro nós poderíamos ficar mais perto do salário médio da União Europeia, mais perto dos salários médios na Alemanha. Ora, estamos cada vez mais distantes. Disseram-nos que o euro significava a possibilidade de expansão económica, porque passávamos a ter a mesma moeda de outros países. Acontece exatamente o contrário. Estamos hoje mais dependentes, com uma economia mais desvalorizada. O perfil produtivo da nossa economia é assente em baixos salários, produção com pouca incorporação científica e tecnológica, de baixo valor acrescentado, o que significa não apenas problemas económicos, significa, por exemplo, problemas de imigração. A resposta a isso implica medidas de política económica, medidas de política salarial que correspondam àqueles objetivos.

Já falou aqui da possibilidade de sermos empurrados para fora do euro e também já disse várias vezes nesta campanha  que há uns anos um ministro das Finanças alemão disse publicamente que achava que Portugal e  outros países, se calhar, tinham de sair do euro. Quem é que disse isso?
Wolfgang Schäuble.

Disse que Portugal tinha de sair do euro?
Sim. Portugal e a Grécia. Na altura as duas questões foram colocadas. Aliás, em relação à Grécia de forma mais flagrante e mais evidente, quando o Governo do Syriza tentou tomar aquelas medidas relativas à renegociação da dívida, mas também em relação a Portugal essa permanência no euro foi questionada.

Não foi.
Foi, foi.

Em relação à Grécia chegou a haver um draft sobre a hipótese de saída, mas no caso de Portugal, não.
Olhe que nós tivemos várias vezes essa discussão, aliás, até do ponto de vista parlamentar…

Mas tem essa frase?
Vou tratar de encontrar os elementos para fazer chegar essa referência.

“O referendo [para a saída do euro] é umas das possibilidades a considerar”

A CDU diz no manifesto para as europeias que a saída do euro deveria ter o apoio maioritário da população. O PCP defende um referendo sobre a saída do euro? É essa a forma para avaliar se tem o apoio da maioria da população?
Não. Essa afirmação tem um sentido muito claro. Não é possível fazer isso sem o apoio do povo português.

Isso é um referendo ou não?
Não. Vai muito para lá do referendo. Isso exige uma mobilização do povo português que vai muito para lá da expressão eleitoral.

Mas vamos só especificar. O PCP defende um referendo sobre esta matéria?
Essa pode ser uma das possibilidades a considerar. Nós não vemos problema nenhum na auscultação do povo por via do referendo. Agora, quando falamos da mobilização do povo português, isso vai muito para lá do referendo.

"Não vejo que o referendo [à saída do euro] seja uma dificuldade ou um problema"

E nesse referendo o PCP defenderia o sim à saída do euro?
Está a limitar isso à ideia de uma decisão, de um acto súbito de saída do euro. Agora, aquilo que nós defendemos é um processo de resposta a este conjunto de problemas que enunciei, que tem no euro um dos obstáculos, e insisto neste aspecto: o euro não é a causa de todos os males, é um dos obstáculos às medidas de valorização dos salários, de valorização da nossa produção nacional e da nossa capacidade produtiva e de desenvolvimento do país a partir desses elementos. É o euro, como são as regras do mercado único, como são as políticas comuns, seja a PAC, seja a política comum de pescas, seja a política de comércio da União Europeia. Ou seja, há um conjunto de constrangimentos que se constituem como entraves, como obstáculos a essa política de que o país precisa. E, portanto, nós não temos a ideia de que a saída do euro seja uma questão de um ato súbito. É um processo que envolve a preparação do país com políticas que deem a resposta a esses problemas.

Mas essa preparação também é política, no sentido de tentar ter essa legitimidade através de uma auscultação popular como referendo?
Sim, não vejo que o referendo seja uma dificuldade ou um problema.

Mas há algum prazo temporal para fazer isso?
Nós não temos isso colocado nesses termos.

Mas o PCP estaria sempre do lado do sim à saída do euro, ou não?
Repare, nós não temos isso colocado nesses termos.. Há um caminho que tem que ser feito de resposta a esses problemas do país e isso implica a criação de condições para que Portugal possa tomar essa decisão.

O PCP defende a saída do euro?
Repare, a partir do momento em que nós dizemos que o país deve preparar-se para se libertar da submissão ao euro, essa é uma das hipóteses que admitimos.

Mas é aquela de que gosta mais? Ainda ontem na entrevista ao Público e à Renascença colocou três hipóteses: o euro acabar, Portugal ser expulso do euro ou tomar a decisão de sair. O que lhe pergunto é: a sua hipótese preferida é Portugal tomar a iniciativa de saída do euro?
A nossa opção preferida era resolver os problemas do aumento dos salários com uma política que o garantisse. A nossa opção preferida era garantir que não tivéssemos a nossa indústria destruída e que tivéssemos uma política que permitisse a reindustrialização do país para dar resposta às necessidades industriais do país. Esse é o objetivo em função do qual orientamos o nosso posicionamento. Encontrando no euro um obstáculo à concretização dessa política, o que dizemos é que também esse obstáculo deve ser considerado como tal. Isso implica esse conjunto de medidas e a preparação do país para que essa discussão possa ser feita.

O que está a dizer no fundo é que o país fica ótimo e depois sai do euro. Então: se é possível ficar ótimo dentro do euro, porque é que o euro é um obstáculo?
Há uns tempos fiz uma comparação arriscada que se calhar agora corro o risco de fazer outra vez, que é a comparação com os incêndios florestais. Quando a gente vê as medidas de prevenção dos incêndios florestais, com a limpeza das matas, com a limpeza dos terrenos perto das casas para que as casas não sejam atingidas pelos incêndios, com as faixas de segurança em relação às instalações elétricas, em relação às vias de comunicação, nós encontramos medidas…

Não leve a mal, mas é uma péssima comparação.
Eu sei que ela é arriscada, mas tomando todas essas medidas para prevenir os incêndios, de repente até se percebe que se consegue dar um outro uso à floresta, que se consegue aproveitar de outra forma os recursos florestais e silvícolas, que se consegue ver outro tipo de articulação das atividades produtivas, inclusivamente com as preocupações da proteção civil. E tudo isso acaba por contribuir para um resultado positivo, não só de prevenir os incêndios, mas de aproveitar um conjunto de outros meios. A comparação é arriscada, porque naturalmente comparar as prevenções dos incêndios às questões do euro até implica grandes distâncias. Agora, insisto nisto porque o que é determinante é esse caminho que tem de ser feito para dar resposta aos problemas que temos hoje.

Mas se é possível melhorar o país  dentro do euro, há aí um problema de lógica. 
É sempre possível tomarmos medidas para melhorar a situação em que o país está. Foi possível, por exemplo, as propostas que o PCP defendia de aumento dos salários terem tido uma concretização parcial entre 2015 e 2019. Foi possível, por exemplo, garantir o investimento público para reduzir o custo dos transportes, para garantir manuais escolares gratuitos, um conjunto de outras matérias, mesmo em confronto com essas regras. Tudo isso demonstra que há sempre espaço.

O PCP defende, nesse mesmo compromisso eleitoral, a “criação de um programa que enquadra a saída negociada da moeda única contendo medidas de compensação em caso de evidentes prejuízos causados pela adesão e permanência do euro”. Isto significa que quer que Portugal, se sair do euro, seja indemnizado por isso?
Isto é uma expressão de um princípio que já hoje existe no quadro da União Europeia, da compensação aos países pelos impactos assimétricos que têm nos países as políticas europeias. Ou seja, já hoje há esse princípio de compensação relativamente aos países que sofrem baixos prejuízos com as políticas europeias naturalmente suportados por aqueles que delas retiram benefícios.

Mas tem isso quantificado? Qual foi o prejuízo?
Apontamos um caminho que naturalmente implica a mobilização de um conjunto de entidades e de meios em função da possibilidade de concretização desse caminho. Não temos um plano de operações definido como se fosse um ataque a um incêndio, por exemplo, para manter a comparação.

“Nunca propusemos a saída da União Europeia”

Há pouco dizia sobre o euro que é “apenas um dos obstáculos”. Em relação à pertença à União Europeia: também devíamos começar a preparar a saída?
Não há nenhuma proposta nossa nesse sentido.

Mas já foi defendido um referendo sobre esta matéria. O PCP acha uma boa ideia?
Nós defendemos os referendos em relação a um conjunto de decisões que foram tomadas em que achámos que o povo português devia ser consultado, mas não há nenhuma proposta nossa no sentido de saída da União Europeia.

"Insisto nessa questão porque é uma mistificação que não pode ficar criada. Nós nunca propusemos a saída da União Europeia. E essa proposta não está apresentada"

Numa entrevista à Antena 1, em dezembro de 2012, Jerónimo de Sousa disse que “o povo português tem o direito de decidir inclusive da saída da União Europeia e do euro”. E, questionado se a consulta devia ser feita através de um referendo, Jerónimo de Sousa disse: “Designadamente. O povo português nunca foi chamado para se pronunciar sobre instrumentos fundamentais que hoje condicionam a nossa soberania”. Defendeu claramente um referendo sobre a saída da União Europeia. O que eu lhe pergunto é se o PCP se arrependeu?
Nessa resposta a propósito da União Europeia e do euro, já lhe dei há pouco resposta. A possibilidade de utilização de um referendo a propósito do euro é uma das respostas que nós admitimos. Sobre a saída da União Europeia nunca tivemos nenhuma proposta sobre isso.

Arrependeram-se? Acham que não é boa ideia?
Não podemos arrepender-nos de uma coisa que não propusemos.

Quando Jerónimo de Sousa diz que o povo português tem o direito de decidir, “inclusive da saída da União Europeia e do euro”, não está a propor um referendo sobre a saída da UE?
O povo português tem o direito de tomar as decisões todas relativamente ao seu futuro. Coisa diferente é dizer que propomos a saída da União Europeia. Nunca apresentámos essa proposta. Insisto nessa questão porque é uma mistificação que não pode ficar criada. Nós nunca propusemos a saída da União Europeia. E essa proposta não está apresentada.

No caso de haver um referendo, de que lado é que se colocariam?
Temos muitas razões críticas, mas nunca propusemos a saída da União Europeia.

As razões críticas não afinal suficientes para propor, então, o referendo à saída?
Nunca fizemos essa proposta porque ela, manifestamente, não corresponde ao nosso posicionamento. E, portanto, continuamos a não ter essa proposta feita porque ela não corresponde à reflexão que temos feito sobre isso.

“Nós defendemos o investimento público e privado”

Nesta campanha tem dito que, desde 1996, Portugal recebeu, em termos líquidos, 101 mil milhões de euros de fundos comunitários e depois diz: “Mas, nesse período, Portugal viu sair, para outros países da União Europeia, mais de 168 mil milhões de euros em lucros, dividendos, rendas e juros”. O que é que um número tem a ver com o outro? O que é que a entrada de fundos comunitários tem a ver com estes lucros, dividendos, rendas e juros?
A entrada de fundos comunitários não chega sequer para compensar os prejuízos que Portugal sofre com as políticas da União Europeia.

Mas o que é que isto tem a ver com políticas da União Europeia?
A partir do momento em que o nosso país está integrado no mercado único, a partir do momento em que entidades na União Europeia podem operar em Portugal como se fossem portuguesas, a partir do momento em que a riqueza que aqui criam é transferida para fora do país, isso são consequências diretas das políticas europeias.

Neste momento em Portugal há 130 mil milhões de euros de investimento direto estrangeiro. Porque é que não contabiliza também este dinheiro que entra?
Agora deixa-me com pena de não ter trazido um quadro do Banco de Portugal interessantíssimo sobre isso. Uma boa parte daquilo que é contabilizado hoje como investimento direto externo é de sociedades portuguesas que estabeleceram as suas sedes fora de Portugal. Essa falácia que nos últimos anos se criou de que há um grande investimento direto externo no nosso país…

"Nós defendemos o investimento público e privado. Aliás, defendemos um forte investimento público, porque só com um forte investimento público é possível haver um investimento privado correspondente"

Mas então, se é assim, não estamos submetidos a empresas estrangeiras. Afinal, há muitas empresas estrangeiras cá ou não há?
A questão do investimento direto externo tem essa manipulação. Essa manipulação que é feita a partir da localização das sedes das empresas que fazem o investimento em Portugal.

E quando olham para este número dos 160 mil milhões, não olham também para os empregos  que são criados pelas multinacionais que operam cá? Há números do INE que nos dizem que em 2021 os funcionários de empresas estrangeiras em Portugal recebiam mais 42,7% em remunerações do que os trabalhadores de empresas portuguesas. As empresas estrangeiras não trazem coisas boas?
Estamos a mudar de assunto, mas deixe-me ainda responder ao primeiro ponto. Porque a comparação que fazemos entre esses dois números, entre o saldo, o balanço dos fundos comunitários que recebemos e aquilo que sai do país em juros, lucros, rendas e dividendos é a comprovação de que nós não podemos aceitar a redução do orçamento comunitário nem podemos aceitar a redução das transferências para Portugal. Porque a configuração dos fundos comunitários está feita de forma a que se garante essa compensação de que há pouco falávamos. Ora, se do ponto de vista de saídas em rendas, juros, lucros e dividendos, esses montantes superam os fundos comunitários que recebemos, isso significa que Portugal não está sequer a ser compensado pelos impactos diretos que tem.

Mas isso não tem a ver com as instituições da União Europeia, tem a ver com empresas.
Tem a ver com as regras em que as empresas operam em Portugal. A partir do momento em que nós deixámos de ter um setor bancário de base nacional e passámos a ter um único banco de base nacional, que é a Caixa Geral de Depósitos, porque praticamente todos os outros têm estruturas acionistas que envolvem entidades externas, então isto não tem uma consequência direta com a liberalização dos mercados financeiros no âmbito da União Europeia?

Portugal não ganha em ter empresas estrangeiras cá?
Deixe-me concluir o raciocínio. Isso envolve a saída de riqueza que é criada em Portugal para fora do país, em consequência direta das políticas da União Europeia. O que isso significa é que Portugal tem direito a ter fundos comunitários para ser compensado pelos impactos.

Mas Portugal ganha em ter empresas estrangeiras a operarem cá ou não?
Nós defendemos o investimento público e privado. Aliás, defendemos um forte investimento público, porque só com um forte investimento público é possível haver um investimento privado correspondente. O que defendemos é que as opções de investimento, associadas ao caminho que temos para o desenvolvimento da nossa economia devem ser conduzidas em função daquilo que corresponde ao nosso modelo de desenvolvimento e à possibilidade de aproveitamento do nosso potencial produtivo.

Deixe-me só tentar mais uma vez: Portugal ganha em ter empresas estrangeiras cá ou não?
O investimento externo não deve ser excluído, porque é que havia de ser excluído? Se ele corresponder às necessidades de desenvolvimento da nossa economia, é bem-vindo e é positivo. Se ele não corresponder ao caminho de desenvolvimento que queremos para o nosso país e às prioridades do ponto de vista do nosso desenvolvimento económico, naturalmente não é. Agora, nós não temos uma perspetiva de que o investimento deva ser exclusivamente público ou que deva ser exclusivamente nacional.

Segundo os números do INE de 2021, os funcionários de empresas estrangeiras recebem mais de 42,7% em remunerações do que os trabalhadores de empresas portuguesas…
E essa avaliação podemos fazê-la exclusivamente em função do carácter multinacional ou nacional das empresas? Por acaso, fiquei com curiosidade em relação a esse número, porque acho que valia a pena perceber se, por exemplo, dentro de um determinado setor de atividade, na comparação entre empresas nacionais e multinacionais, isso verdadeiramente é assim. A ideia que tenho, e particularmente do ponto de vista da comparação direta que pode ser feita com as condições de trabalho que vamos encontrando, particularmente em empresas multinacionais, há regras muito draconianas relativamente às condições de trabalho, aos salários, aos horários de trabalho. E esses elementos determinam as condições de vida, e, aliás, determinam a capacidade de, valorizando o trabalho, nós termos ou não mais trabalho qualificado e uma produção mais qualificada. A forma como, por exemplo, deixamos sair do país, para países do centro da Europa mais poderosos, uma grande parte dos nossos trabalhadores qualificados, com as instalações das multinacionais em Portugal a servirem como centro de recrutamento, deixa o país depauperado dessa mão de obra qualificada. Ora, nós devíamos ter uma política económica, e particularmente de desenvolvimento industrial, que permitisse a fixação destes trabalhadores mais qualificados.

No compromisso eleitoral da CDU para as europeias está escrito que a adesão à União Europeia fez parte de um processo contra-revolucionário, que pôs em causa as conquistas de 25 de Abril e da Constituição de 76. A entrada na União Europeia foi para o PCP uma espécie de um segundo 25 de Novembro?
Se foi isso que sentiu lendo aquele texto, deixo-lhe o desafio para que haja melhores sentimentos. Genuinamente, vou até aproveitar uma frase, que não é a minha, é o título de um manifesto que foi lançado publicamente esta semana, que diz que o 25 de Abril não começou em Bruxelas e o mundo não acaba nas fronteiras da União Europeia. Julgo que, verdadeiramente, quando olhamos para o caminho que tem sido feito por Portugal, dentro da CEE, depois União Europeia, aquilo que temos verificado é um conjunto de promessas que nos foram feitas que não foram cumpridas. Prometeram-nos uma terra do leite e do mel, prometeram-nos que seríamos um país mais desenvolvido, com mais progresso, mais justiça social e somos hoje um país mais dependente, mais atrasado em relação a outros países. Um país onde, do ponto de vista das condições de vida, nos são impostas situações que são verdadeiramente a contradição e a negação de todas essas promessas. Em muitas circunstâncias, nós já nem conseguimos perceber se a União Europeia é a verdadeira causa dos problemas ou se é apenas um pretexto que é utilizado. Porque, em muitos casos, há duas dimensões que não podem ser desligadas: a dimensão da decisão política nacional e a dimensão europeia. E, em muitas circunstâncias, nem sequer conseguimos perceber se decisões que alguns governos vão tomando ao longo destes mais de 40 anos se são verdadeiramente decisões que resultam de um condicionamento inultrapassável que a União Europeia nos impõe, ou se verdadeiramente a União Europeia é utilizada como pretexto para essas medidas

Decisões dos governos “de direita” do PS, como o PCP diz, mas depois faz acordos com esses governos.
Não, dizemos governos da política de direita. O nosso inimigo é a política de direita.

O que quer dizer é que a União Europeia tornou o país mais liberal, com políticas mais liberais, e isso está nos antípodas daquilo que o PCP defende.
Mais injusto e mais desigual. O problema é sobretudo as consequências do neoliberalismo. O neoliberalismo tem como consequências as injustiças e as desigualdades sociais.

“A UE tem uma política de confrontação com a Rússia”

A CDU escreve o seguinte: “O que faz falta é uma Europa de cooperação: ao serviço dos povos e não como instrumento do capital e das grandes potências; assente numa cooperação genuína e solidária entre Estados soberanos e iguais em direitos, ao invés de relações de domínio e subordinação entre os países”. Esta Europa da cooperação devia até ir para lá daquilo que são as fronteiras da União Europeia, por exemplo, incluir a Rússia, que também é um país geograficamente na Europa.
O continente europeu vai muito para lá da União Europeia e a nossa preocupação é o afunilamento das relações de Portugal apenas com o espaço dentro da União Europeia.

Mas a Rússia devia entrar nesta Europa de cooperação, nesta organização que fosse mais de cooperação e menos de integração?
Nós não estamos a propor uma organização alternativa à União Europeia. Aquilo que defendemos é uma Europa, um continente europeu, de relações de cooperação de Estados soberanos e iguais em direitos. E quando nós defendemos isso, aquilo que dizemos é que a política externa portuguesa não pode ficar afunilada no espaço da União Europeia. Não estamos a propor nenhuma organização alternativa à União Europeia, nem estamos a propor uma reconfiguração da União Europeia. O que estamos a dizer é que queremos que se viva numa Europa, num continente europeu, que seja verdadeiramente de cooperação entre Estados e povos iguais em soberania e direitos. E isso implica, como estava a dizer, uma política externa portuguesa que vá muito para lá das fronteiras da União Europeia. Repare, um dos aspectos mais negativos em que se tem avançado e que se vai provavelmente agudizar nos próximos tempos em matéria de política externa é o sentido em que a política externa da União Europeia tem avançado, procurando limitar o estabelecimento de relações bilaterais de países da União Europeia com países terceiros para que essas relações sejam estabelecidas através da União Europeia. Eu pergunto: um Portugal afunilado nas suas relações comerciais, económicas, políticas, diplomáticas, culturais nas fronteiras da União Europeia é verdadeiramente o desígnio que temos para o nosso futuro? Temos que ter uma política externa muito mais alargada, não só dentro da União Europeia, não só dentro da União Europeia, mas fora da União Europeia, com todos os países do mundo, com todos os países e povos do mundo.

Entre 2019 e janeiro de 2023, o PCP foi o partido no Parlamento Europeu que teve mais votos contra ou abstenções relativamente a resoluções que condenavam atos do regime russo.  Sente-se orgulhoso pelo PCP ser o partido que menos condenou no hemiciclo europeu?
Não, isso não é verdade. Nós somos o partido que mais firmemente se opõe à política de confrontação que a União Europeia vai fazer, não apenas com a Rússia, mas também com a Rússia.

"Em muitas circunstâncias, verdadeiramente aquilo que se está é perante iniciativas que acentuam uma lógica, uma política de confrontação, não só com a Rússia, mas também com a Rússia. Da União Europeia com a Rússia e com outros países"

Estes votos eram ao contrário, eram a condenar a confrontação da Rússia.
Não diga isso. Sabe que em muitas circunstâncias há até uma similitude da política nacional com as discussões no Parlamento Europeu, que é em muitas circunstâncias haver designações enganosas relativamente àquilo que se faz. E, em muitas circunstâncias, verdadeiramente aquilo que se está é perante iniciativas que acentuam uma política de confrontação, não só com a Rússia, mas também com a Rússia. Verdadeiramente, é isso que rejeitamos. Não aceitamos que o relacionamento externo, no caso de Portugal, seja assim. Temos essa visão em relação ao contributo que o nosso país deve dar: não devemos ficar, o nosso país não deve ficar amarrado a políticas e a lógicas de confrontação com outros países e com outros povos. O contributo que Portugal pode dar para a resolução dos problemas da humanidade é no sentido de acentuar valores de cooperação, de amizade, de estreitamente laços políticos e económicos para resolver os problemas dos povos no mundo inteiro. Políticas de confrontação e de promoção da guerra verdadeiramente não servem a povo nenhum e, portanto, o posicionamento do PCP é muito firme, e da CDU, dos deputados eleitos pela CDU, é muito firme relativamente a isso.

O PCP tem defendido que não deve haver ingerência na política interna de outros países. No entanto, no programa eleitoral defende, por exemplo, a reunificação do Chipre, a autodeterminação do povo de Saraui. Isto não é também uma ingerência em questões que são da Turquia e de Marrocos?
Não, é a expressão da nossa solidariedade com a luta desses povos. E a solidariedade é solidariedade.

Portanto, aqui, no seu entendimento, é diferente daquilo que se passa relativamente à Rússia.
É uma expressão de solidariedade com a luta que os povos fazem pela sua autodeterminação. E, portanto, é nessa circunstância que nós expressamos a nossa solidariedade. O que é muito difícil de encontrar aí algum elemento de ingerência.

Declarações de Gouveia e Melo: “Preocupa-me discurso a preparar-nos para a guerra”

Em Portugal o Almirante Gouveia e Melo, chefe do Estado Maior da Armada, fala em “prontidão” e em “entrar em operações reais”. O Governo deve esclarecer qual a sua posição sobre esta matéria quando o chefe militar já fala no “aprestamento dos navios, reforçar o treino e preparar as reservas, sejam materiais ou humanas”?
Essa questão é melindrosa pela forma como é colocada. Julgo que, eventualmente, o Governo pode entender solicitar a esse chefe militar, em função das declarações que foram feitas, esclarecimentos. Sinceramente, aquilo que mais me preocupa é o acentuar de um discurso que procura preparar-nos para a guerra. Essas declarações do Almirante Gouveia e Melo encaixam num conjunto de afirmações que nós vamos ouvindo de responsáveis de instituições europeias, como a do Presidente do Conselho, Charles Michel, da Presidente da Comissão.  Só daqui por 30 ou 40 anos é que se há-de fazer a história deste tempo que estamos a viver, mas é agora que decidimos como é que essa história fica escrita. E é agora que decidimos se empurramos os nossos filhos e os nossos netos para a morte, para a barbárie da guerra e para uma catástrofe nuclear, ou se pelo contrário conseguimos juntar os povos e a força dos povos para travar a guerra.

Acha que estas declarações mostram pouca sensibilidade para aquilo que se está a passar?
O presidente do Conselho Europeu escreveu há uns meses um artigo dizendo que o caminho tem que ser do militarismo e do investimento na corrida ao armamento e da criação de capacidade militar europeia. A Presidente da Comissão Europeia Ursula Von der Leyen faz declarações de acentuação dessa política de confrontação e de guerra. Temos chefes militares a fazerem discurso dessa natureza. Julgo que a história já nos deu lições suficientes para percebermos quando as coisas começam a encaminhar-se num determinado sentido. Já tivemos a experiência no século XX de duas guerras com toda a destruição, morte e sofrimento que causaram na Europa. Tivemos em Portugal há 50 anos um momento que pôs fim a uma guerra colonial que infelizmente só acabou depois de muitos milhares de vítimas de jovens que morreram ou vieram marcados para o resto da sua vida com a guerra colonial. Temos demasiado próxima a experiência do que significa a barbárie da guerra.

"É agora que decidimos se empurramos os nossos filhos e os nossos netos para a morte, para a barbárie da guerra e para uma catástrofe nuclear, ou se pelo contrário conseguimos juntar os povos e a força dos povos para travar a guerra"

Mas o que é que o Governo deve fazer? Deve travar o chefe da Armada nestas declarações?
A preocupação deve ser do ponto de vista nacional e do ponto de vista da expressão europeia. Precisamos de  ter forças armadas capazes de cumprir a sua missão constitucional de defender e de garantir a independência e a soberania nacionais. Isso implica que temos que fazer nas nossas Forças Amadas o investimento necessário para o cumprimento dessas missões. A missão constitucional das nossas forças armadas não é participar em guerras de agressão nem estimular conflitos e confrontos. E há uma política diplomática que tem que ser seguida e uma política externa que deve ser seguida com os objetivos da paz.

Não é isso que está a acontecer?
Quando um militar faz referência à atuação das forças armadas portuguesas no quadro de uma bloco político ou militar a que Portugal pertence, as afirmações desse militar têm esse contexto e têm esse enquadramento. Do ponto de vista da política externa, Portugal deve fazer todos os esforços para garantir que a solução não seja a corrida aos armamentos, seja o desarmamento geral, simultâneo e controlado. Portugal deve fazer todos os esforços para começar pelo desmantelamento dos arsenais nucleares. E há um conjunto variadíssimo de ações políticas e diplomáticas que podem ser feitas junto de países da União Europeia, fora do espaço da União Europeia, por todo o mundo. Há ações que Portugal pode desenvolver no sentido de contribuir para um caminho de paz, de desarmamento e de resolução pacífica dos conflitos. Esse papel é o papel que se exige do governo português, e julgo eu também, é o papel que cabe aos deputados portugueses no Parlamento Europeu, com o espaço que ali tem de afirmação dessas posições. E, honestamente, posso ter carregado demasiado nas tintas, mas essas declarações preocupam-me pelo ambiente de preparação para a guerra que nós vamos encontrando. E isto é dramático. Para pegar num exemplo, a Primeira Grande Guerra foi aquela guerra que fica para a história resumida como a a guerra que todos rejeitavam mas que ninguém foi capaz de evitar. Julgo que se este ambiente de preparação para a guerra for verdadeiramente aquilo que nos estão a pôr à frente, é preciso que nós tenhamos a compreensão da magnitude do que isso significa não apenas para os povos da Europa, mas para os povos de todo o mundo. Porque não estamos a falar de capacidades militares como aquelas que existiam há cem anos. Nós estamos hoje a falar da existência de capacidades militares absolutamente aniquiladoras da humanidade.

Candidatura de esquerda às Presidenciais “é uma questão que pode ser ponderada”

Já percebeu porque é que perdeu em 2022 o lugar de deputado em Évora e porque é que o PCP não conseguiu recuperar esse posto nas eleições de março passado?
Mais do que concentrar esforço na procura da resposta a essa pergunta, temos de concentrar esforços  na procura do reforço da nossa expressão eleitoral e havemos de encontrar a solução…

A esquerda tem sido incapaz de congregar o descontentamento da população, que tem sido ganho pelo Chega, nomeadamente no círculo onde já concorreu. O que é que a esquerda está a fazer de errado?
Essa sua constatação só confirma que quanto pior, pior. Quanto pior vivem as pessoas, quanto mais dificuldades têm, mais difícil se torna encontrarem em muitas circunstâncias perspectivas consequentes para ultrapassarem essas dificuldades. Mais ficam à mercê da instrumentalização, que é feita pelos mais variados vendedores de banha da cobra, que aproveitam esse descontentamento para encontrarem força política e eleitoral, não para resolver os problemas de quem os sofre, mas verdadeiramente para criar ilusões e artifícios relativamente às soluções que os perpetua. E julgo que verdadeiramente é perante essa circunstância que estamos…

Mas esse descontentamento já encontrou conforto na esquerda durante muito tempo, agora encontra no Chega. Porque é que a esquerda perdeu essas pessoas?
Não é só no Alentejo, não é só em Portugal. É pela Europa fora e por todo o mundo. Nós vamos vendo a forma como são instrumentalizadas pelas forças da extrema-direita as preocupações populares, não para lhes dar resposta, não para defender uma política que as ultrapasse, mas apenas para tornar esse descontentamento inconsequente e para acentuar valores reacionários e antidemocráticos. Aliás, o exemplo do tratamento que é dado às questões das migrações a inculcação de sentimentos de racismo, de xenofobia, de ódio, de conflito e de confronto entre as pessoas. Tivemos numa campanha eleitoral aqui há dois anos um exemplo de um candidato que andou aos tiros a uma família de imigrantes em função de serem imigrantes e terem um aspecto diferente daquele que nós temos.

Nestas últimas semanas, o PCP e o Chega votaram lado a lado entre os projetos do PS, o fim das portagens a redução do IRS e o aumento da redução das rendas. Não estão a ajudar o Chega?
O Chega, como outras forças da mesma natureza pela Europa fora, tem como opção tática esconder o projeto político deles. Isso significa o quê? Significa que, em muitas circunstâncias, dão o ar de terem posições que não são verdadeiramente correspondentes com o seu projeto político Quando nós estamos a falar dessas votações podia acrescentar muitas outras votações em que o Chega, de forma oportunista…

Mas sente-se confortável por estar ao lado do Chega?
Essa posição não é errada da nossa parte porque a nossa votação corresponde àquilo que é justo para resolver problemas das pessoas. O que ela é é mais exigente porque exige uma clarificação que o Chega está a votar muitas dessas iniciativas apenas por mera conveniência de circunstância e por oportunismo tático para dar ideias de que defende determinado tipo de políticas, determinado tipo de medidas que genuinamente não correspondem ao seu projeto político

Mas está a permitir que elas passem. Algumas delas sem o Chega não passariam.
Isso resulta da aritmética que as eleições expressaram.

O Livre defendeu uma convergência à esquerda no último congresso no último fim de semana defendeu essa convergência a algumas eleições. Admite que haja um candidato único a Presidente da República tendo em conta que a esquerda não ganha essa eleição há 20 anos?
Eventualmente, é uma questão que pode ser ponderada, Sinceramente, não tenho nenhuma reflexão individual sobre essa questão neste momento.

Mas põe dinheiro em como o PCP vai ter um candidato próprio?
Sabe que sou pouco de apostas. Aliás, faço uma confissão pessoal: normalmente só faço apostas quando tenho a certeza daquilo em que estou a teimar. E, portanto, muito dificilmente nessa ou noutra questão meteria o dinheiro que fosse.

O Governo aumentou o complemento solidário para idosos decidiu com participação a 100% de medicamentos para os reformados mais carenciados e escolheu Alcochete para o novo aeroporto. O PCP discorda de alguma destas coisas?
Olhe, veremos se são apenas anúncios de propaganda ou se verdadeiramente têm consequência direta na vida das pessoas.

Mas concorda com todas, certo?
Com as medidas dirigidas aos idosos, o Governo procura dar ideia de que está preocupado com os idosos e está a trabalhar para resolver os problemas dos idosos. Há muitos problemas que ficam por resolver para lá dessas medidas que o Governo tomou. Naturalmente, elas podem ter efeitos positivos no universo dos reformados a quem se dirigem, mas a quantidade de problemas desses reformados e dos reformados em geral que ficam por resolver é enormíssima. Não sei se temos tempo para descascar cada uma dessas medidas Mas se tiver…

Não consegue dizer que o Governo está a tomar boas decisões, já percebemos.
Posso dizer-lhe outra coisa a propósito do aeroporto. A propósito do aeroporto, da terceira travessia, da alta velocidade Primeiro, temos que ver se aquilo é apenas propaganda para o Governo dar a ideia de que está a agir e a tomar medidas e a governar no sentido daquilo que é preciso ao país. Verdadeiramente, isso é só para satisfazer esses objetivos da propaganda, eventualmente preocupado com umas eleições antecipadas que possam vir daqui a uns meses, ou se genuinamente há alguma intenção de concretizar alguma coisa. E em segundo lugar, é preciso ver a concretização dessas medidas. Se o Governo verdadeiramente garante condições para que elas sirvam o interesse nacional e o interesse público, ou se servem os interesses da Vinci. Em concreto há uma questão que é preciso ir clarificando: o financiamento para construir um novo aeroporto resultará das taxas aeroportuárias que a Vinci cobra como é devido ou o Governo vai encontrar alguma forma de desonerar a Vinci de utilizar as taxas aeroportuárias para financiar o aeroporto? É que o Tribunal de Contas disse-nos há alguns tempos que a perspectiva de cobrança de taxas aeroportuárias para os próximos anos é de 20 mil milhões de euros. A estimativa que está de custo de construção do aeroporto é de 6. Entre 20 e 6 ficam 14 mil milhões de receitas de taxas aeroportuárias que, ao que parece, o Governo se prepara para deixar também nas mãos da concessionária. Imaginem o que é era o país ter 14 mil milhões de taxas aeroportuárias para investir na modernização e no reforço da capacidade da rede aeroportuária, não só no aeroporto de Lisboa, mas em toda a rede aeroportuária envolvendo o Aeroporto de Lisboa, do Porto, de Beja e Faro. Imaginem o que seria isto: 14 mil milhões de taxas aeroportuárias para podermos investir nesta modernização. Era muita receita que tínhamos do lado do Estado.

“Se vocês só tiverem um ananás não conseguem fazer um bolo de laranja”

Deixe-nos fazer aqui uma ponte entre Lisboa e Bruxelas e perguntar-lhe muito diretamente se o PCP apoiaria António Costa para a presidência do Conselho Europeu.
Eu tenho dito isto já há algum tempo: o Parlamento Europeu não toma nenhuma decisão sobre isso. Não é uma matéria que os deputados sejam chamados a decidir. Sem prejuízo disso, aquilo que a história nos mostra é que não é verdadeiramente decisivo se as decisões que são tomadas ao nível do Conselho são tomadas em português, facilitando a tradução para Portugal, ou se são tomadas noutra língua exigindo essa tradução. Aliás, eu diria até que durante o período da troika, sendo uma das instituições que a integrava, a Comissão Europeia presidida por Durão Barros emitiu as ordens que nos foram dadas em português em prejuízo do povo e do país e que não nos valeu de grande coisa. E não quero comparar Durão Barroso a António Costa porque naturalmente as distâncias são muitas e evidentes

Até porque conviveram de forma diferente. Em 2015, tiveram a geringonça.
Diria que aquilo que é verdadeiramente decisivo é a substância das decisões que são tomadas ao nível do Conselho Europeu.

Não acredita que António Costa pudesse mudar alguma coisa? Por exemplo, em 2015 conviveram na geringonça e ele foi importante na gestão dessa correlação de forças — mas não serve para gerir um órgão que junta os chefes de governo europeus?
Se calhar, corro outro risco a fazer esta metáfora, mas se vocês só tiverem um ananás não conseguem fazer um bolo de laranja. E, portanto, naquela circunstância onde estávamos em 2015, com aquela correlação de forças, aquilo era possível. A perspetiva para a frente que temos de criar é outra: é termos laranjas para fazer bolos de laranja.

Já temos um título para a entrevista
Deixe-me só substituir os frutos para ficar com uma coisa mais adequada: bolo de morangos.

https://observador.pt/especiais/costa-no-conselho-europeu-com-um-ananas-nao-se-faz-um-bolo-de-laranja/