segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Daniel Oliveira - Perceções, pacotes e vídeos: a regressão da propaganda

* Daniel Oliveira

Depois do Pontal, Montenegro pôs a gravata preta e, em poucos dias, passámos de sete minutos num discurso de quase uma hora para uma estratégia para a floresta para os próximos 25 anos. Quase tudo rebranding. Se Montenegro caça com pacotes, Ventura caça com vídeos em que ataca uma pequena labareda, gozando com quem lutou contra os incêndios. A demagogia e a manipulação nada têm de novo. Mas nunca com tanto desrespeito intelectual pelos destinatários. Enganem as pessoas, mas não as tratem como imbecis

Poucos dias depois de ter feito uma longa intervenção, na qual dedicou poucos minutos aos incêndios, em parte para se queixar de estar a estragar a transmissão televisiva da festa do Pontal, Montenegro deve ter sido aconselhado pela sua agência de comunicação a marcar um Conselho de Ministros especial para aprovar mais um pacote. É isto que faz há quase dois anos. Nada há que um PowerPoint não resolva.

Pôs a gravata preta, aceitou responder a umas perguntas, assumiu a sua responsabilidade pela percepção injusta sobre a sua responsabilidade (que é uma forma muito particular de assumir responsabilidades) e aqui vai disto: em poucos dias, passámos de sete minutos num discurso de quase uma hora para uma estratégia para a floresta para os próximos 25 anos. Como não há milagres, era, em grande parte, rebranding de matéria herdada para ocupar o sonoro até mais uma crise de perceções passar.

Um dia depois de se ter percebido que nenhuma das 45 medidas incluía os bombeiros, o governo anunciou uma medida para os bombeiros – uma majoração nos seus rendimentos e promessas sobre o estatuto dos bombeiros. Ao rebrandingteve de ir fazer acrescentos, à medida que se notaram as falhas da pressa.

Poucos dias antes, foi Ventura que saiu das redes e acordou para um tema pelo qual não podia responsabilizar os imigrantes – mais tarde, depois de puxar pela cabeça, lá apareceu a comparação entre os supostos subsídios dados aos imigrantes e o que recebem os bombeiros voluntários. Se Montenegro caça com pacotes, Ventura caça com vídeos. E desta vez esmerou-se.

No primeiro que vi, recebia, na sede do partido, mantimentos para quem combatia os fogos. Atendia jovens e transportava os mantimentos de forma mais ou menos irracional. Anotava o que faltava, limpando da testa suor inexistente, depois de tanto esforço de notário. Descia escadas transportando pesos, apesar de o elevador do prédio ser visível. E enchia carrinhas, sendo que filmavam lá de dentro. O esforço de realismo era semelhante ao de uma novela venezuelana dobrada. Nenhuma pessoa com cérebro funcional podia sequer ter dúvidas da encenação.

No segundo vídeo que vi, o Super Ventura, que há poucos dias ainda mal tinha dado pelos incêndios, saiu do estúdio e foi para o “terreno”. Ele e um estagiário, de cócoras, camisas impecáveis, atacaram afanosamente uma pequena labareda na base de um eucalipto. Não fosse um momento heroico, poderia pensar-se que era um gozo a bombeiros e cidadãos que andaram a lutar contra os fogos para salvar casas e vidas. No fim, depois de um dia de luta contra os incêndios, Ventura teve o seu momento sentimental para dar festas a um cão que, com faro infalível, não se aproximou da farsa. A ele, o algoritmo não engana. Uns dias depois, ainda vi mais um momento de ação do líder do TikTok, a transportar fardos de palha.

Depois de ver o seu líder apagar uma perigosa labareda, os trolls da extrema-direita nas redes sociais dedicaram-se a tentar desmentir a participação de imigrantes no verdadeiro combate às chamas. Aquele que não se faz de camisinha para o funcionário que trata das redes filmar.

Olha-se para aquilo e pergunta-se se alguém pode realmente acreditar no que vê. Depois, lembramo-nos de que a versão portuguesa do ataque à faca a Bolsonaro e o ataque a tiro a Trump foi o ataque de azia a Ventura, que lhe valeu uma cobertura exaustiva nas televisões e um crescimento imparável nas intenções de voto. Se o espetáculo que deu naqueles dias resultou, porque não havia de resultar a Leni Riefenstahl em versão “Duarte e Companhia”? Parece que o eleitorado aceita que, na nossa pequenez, merecemos uma versão de baixo custo.

Os governos sempre fizeram que faziam para responder aos momentos mediáticos. A oposição sempre tentou fazer que faria melhor se governasse. A demagogia e a manipulação nada têm de novo e a nossa direita, liderada pelo refugo político, parece ter-lhe um gosto especial – vejam como Carlos Moedas governa a capital há quatro anos, sem pegar na Câmara e largar a câmara. Mas nunca nada disto foi feito com tanto desrespeito intelectual pelos destinatários. Enganem as pessoas, mas não as tratem como imbecis. Esforcem-se.

A direita está mais estúpida? Os eleitores são mais ingénuos? Não. O escrutínio jornalístico é que tornava este tipo de exercício mais exigente. Se não fosse feito com o mínimo de profissionalismo, morria à nascença. Não é que o escrutínio já não se faça. Mas deixou de funcionar. Poucos querem saber do “jornalixo”. Agora, procuram a manipulação direta, sem intermediários óbvios. É por isso que não estamos a assistir apenas a um retrocesso político e ético. O retrocesso é estético e cognitivo. Duas décadas de expansão das redes sociais parecem ter garantido uma notável involução da espécie. Para quem é, isto basta.

(Expresso  2025 09 01)