domingo, 28 de setembro de 2025

Antonio Gnoli - Retrato de Claudia Cardinale

 



Domingo, 31 de agosto de 2014

No dia 21 de julho, La Repubblica publicou um grande retrato de Riccardo Mannelli e uma entrevista com Claudia Cardinale de Antonio Gnoli.

Claudia Cardinale: "Nunca quis ser diva, descobri tarde que sou bonita."

Sua infância em Túnis, o primeiro diretor que se encantou com ela, sua estreia com Monicelli. E depois Visconti, Fellini, Germi. Memórias de uma atriz que escolheu se defender do sucesso: "Tive sorte, guiei bem meu destino seguindo apenas uma regra: viver como se fosse o primeiro dia, não o último."


As faculdades menos óbvias de uma grande atriz são a timidez, a solidão, um corpo que muda impiedosamente, mas que continua a conservar um senso de mistério. Ao assistir a uma grande atriz, nos sentimos solidários com a imagem que ela transmitiu em seus muitos filmes. Alguns nós amamos. Outros nós esquecemos. Mas é como se através deles descobríssemos não apenas sua metamorfose, mas também uma parte de nossa história, nossos gostos, nossos desejos mais ou menos remotos. É cinema. Com seu poder imaginativo. E a comunhão latente que sentimos nos enche de espanto.

"Nunca me considerei uma grande atriz. Sinto-me desconfortável diante da imagem de alguém que me faz falar alto. Nunca pensei em me tornar como Greta Garbo ou Marlene Dietrich. Acho...

que atuar ainda é a mais humilde e gratificante das profissões. Fiz 141 filmes. Cada vez era como descer para dentro de mim mesma, para a escuridão daquele pequeno mundo interior que, quando revelado, equivale a um nascimento. Quantas vezes nasci na minha vida?" Enquanto Claudia Cardinale acende seu primeiro cigarro, ela deixa a pergunta cair como uma carta de tarô jogada na mesa: "Não sou supersticiosa, gosto de brincar com os signos do zodíaco, sou de Áries, afinal, mas no fundo acho que o destino está apenas em nossas mãos. " 

Ela já sentiu que estava perdendo o controle?
"Quando você está em uma crise, pode sentir que está perdendo o controle sobre as coisas. É desconcertante aprender nesses momentos o quão fraca ou frágil você pode ser. Mas, afinal, fui uma mulher de sorte que guiou bem seu destino. E acho que não vale a pena se atormentar com perguntas que não têm saída. Sempre me impus uma regra básica: Claudia, viva não como se fosse o último dia da sua vida, mas o primeiro.

Toda vez, a primeira vez?
"Para quem faz cinema, muitas vezes é assim. Se eu não tivesse essa paixão, essa necessidade de me surpreender com o que faço, dificilmente teria durado muito. E isso parece ainda mais surpreendente quanto mais penso no meu começo, que foi completamente por acaso."

Você não era uma dessas garotas determinadas a trilhar seu caminho?
"Eu tinha 16 anos, morava em Túnis, onde nasci. Dois diretores me viram em frente à escola. Eles estavam procurando uma adolescente para um pequeno papel. Convenceram meu pai, apesar da minha resistência. E assim estreei no papel de uma árabe completamente velada."

Você gostou?
"Não sei. Senti uma sensação de intolerância. Então, na última cena, uma rajada de vento rasgou meu véu. Um close incrível foi criado, encantando o diretor. Ele me ofereceu um novo papel em um filme estrelado por Omar Sharif.

E ela aceitou?
"Relutantemente. Por um lado, era um mundo que me intrigava, por outro, me entediava. Eu pensava no set como uma gaiola."

Como era Sharif?
"Bonito, com olhos doces e irônicos. Mais tarde, nos tornamos amigos. Ele tinha uma mania de jogo. Se eu ligasse para ele, ele frequentemente estava sentado em uma mesa de cassino tentando a sorte."

Falando em beleza, ela tinha consciência da sua?
"Nem um pouco. Eu me achava feia. Então, aconteceu de eu ganhar um concurso de beleza e o prêmio era uma viagem a Veneza. Fui convidada para o festival de cinema, onde uma das seções era dedicada ao cinema tunisiano. Inesperadamente, começou o cerco de fotógrafos e produtores.Todos queriam que eu fizesse filmes. Não resisti e voltei para Túnis no primeiro avião. Eu tinha 18 anos.

Ele descobriu o pior lado do cinema.
"Como em todas as coisas, há um lado menos agradável. Muitas pessoas, que tinham começado a cercar minha família, tentaram convencer meu pai de que o cinema era um ótimo caminho a seguir. E, finalmente, meu pai me mostrou as muitas cartas e telegramas sobre mim. Ele timidamente disse: talvez valesse a pena tentar. Foi assim que vim para Roma e entrei no centro de cinema experimental."

Onde ele morava em Roma?
"Com uma tia que morava fora da cidade. Peguei o ônibus para casa. Eles me alertaram sobre o risco da 'mão morta'. Perguntei: 'O que é essa 'mão morta'?' E minha tia riu: 'Você vai entender imediatamente quando sentir alguém apalpando furtivamente seu traseiro.'

E aconteceu?
"Infelizmente, sim. Virei-me com raiva para um homem que fugiu."

De que anos estamos falando?
"Era 1956. Depois da experiência no 'Centro', voltei para Túnis, determinado a deixar tudo para trás novamente. Resumindo, levei um tempo para me convencer de que este seria o meu mundo."

Seu primeiro filme de verdade, ou melhor, um grande filme, foi um papel em I Soliti Ignoti. O que você lembra dessa estreia?
"Era 1958, e aquele foi o início da comédia italiana. No filme, eu estava flertando com Renato Salvadori, que fingia ser meu irmão: 'Sou Michele, esqueci minhas chaves'. E eu, virtuosamente, bati a porta na cara dele. Fiz isso com tanta violência que Renato machucou o olho. Monicelli, depois da cena, gritou para mim: 'Claudia, no cinema, você finge. Lembre-se, nada é real, embora tudo seja real!'"

Que lembranças você tem de Monicelli?
"Um homem aparentemente rude. Penso nele com infinita gratidão. Alguns anos antes de morrer, nos encontramos em Paris para uma homenagem que o cinema francês lhe prestou. Ele subiu no palco, eu estava na primeira fila. E quando ele me viu, disse: "Olha aquela garota, a Claudia, ela começou comigo." Foi comovente. Apesar das diferenças, ele me lembrou, em alguns aspectos, o Pietro Germi."

Outro diretor incomum.
"Muito talentoso e subestimado. Ele era fechado, introvertido como eu. Bastava olhar nos olhos um do outro para nos entendermos."

Você não dá a impressão de ser introvertido.
"Não gosto de multidões. Gosto de ficar sozinho. "

O sucesso não te envolve?
"Faço de tudo para não me deixar abater por ele."

O auge foi alcançado em 1963, quando você filmou "O Leopardo" e "8 1/2" ao mesmo tempo.
"Tive que me dividir entre dois 'monstros' governados por impulsos opostos. Com Luchino era como estar no teatro. Com Federico, o set era uma espécie de happening.Tudo aconteceu sob o signo da improvisação."

Com quem você se deu melhor?
Visconti era obcecado por detalhes. Tudo tinha que ser perfeito. Fellini não tinha roteiro. Ele frequentemente improvisava. Luchino e eu nos tornamos amigos. Assistimos ao Festival de Música de Sanremo, fomos ao teatro. Eu me senti adotada. Fizemos nossa última viagem a Londres juntos, para um show da Marlene Dietrich. Descobri que eles eram amigos. E foi uma surpresa. Quando se encontraram para jantar, ela caiu no choro."

E ele?
"Ele gostava de confortá-la. Ele sabia como sentir o lado oculto das pessoas. O que era útil na preparação de um filme. Lembro-me de quando Burt Lancaster chegou ao set de O Leopardo, Alain Delon olhou para ele e disse: 'O quê, eles escolheram um caubói para interpretar o príncipe?' E, em vez disso, ele foi extraordinário. Pobre Alain."

Vocês eram amigos?
"Ainda somos. Profundamente. Ele teve alguns problemas com um filho e com a parceira que o deixou. Mas conversamos com frequência."

Falando em filhos, ela disse que, ao retornar a Túnis, descobriu que estava grávida.
"Não quero falar sobre isso."

Não é crime.
"É um assunto privado. Enfim, se decidi fazer filmes, foi para aquela criança, para me sentir independente."

Não deve ter sido fácil.
"Não foi. O agravante foi que Franco Cristaldi, meu produtor, me aconselhou, por questões de carreira, a manter segredo. Para evitar escândalos."

E ela concordou?
"Por um tempo, sim. No fim, decidi contar a eles. No fundo, eu me sentia uma mulher livre. Posso acender um cigarro?" De nada.
"Aprendi a fumar depois que Visconti me obrigou em Vaghe stelle dell'orsa."

Depois do sucesso com Visconti, ela atuou em Hollywood.
"Meu primeiro filme americano, dirigido por Henry Hathaway, foi com John Wayne e Rita Hayworth. Uma noite, Rita entrou no meu camarim e disse algo que me fez chorar: Eu também já fui bonita como você. Ela disse isso com infinita dor em suas palavras. Ela estava claramente chateada. Havia uma sensação insuperável de decadência nela, mas para mim ela continuava sendo Gilda."

O que é beleza para uma mulher bonita?
"Não é um objetivo, mas uma ferramenta. Pasolini escreveu um dos primeiros artigos sobre mim. Ele disse que minha beleza estava contida no meu olhar."

Você o conheceu?
"Que bom. Porque nessa época comecei a namorar Alberto Moravia."

Eu sei que ele dedicou um livro a você.
"Um livro que nasceu depois de uma longa entrevista."

O que o grande escritor fez você sentir?
"Eu não o conhecia. Fui à casa dele pela primeira vez para aquela famosa entrevista. Encontrei-o sentado à máquina de escrever.Um pouco rígido. Fiquei envergonhado."

Por quê?
"Ele me disse que se interessava pelo corpo de uma atriz. As sensações que esse corpo proporcionava. Ele me fez perguntas desconcertantemente simples. Qual é a primeira coisa que ele faz ao acordar de manhã? Quando está no banheiro, na banheira, em que pensa? E assim por diante."

O que a impressionou naquele encontro?
"A total falta de pretensão intelectual. Eu não estava me exibindo, e ele também não."

Você já se sentiu uma diva?
"Nunca. Eu sempre disse: me julguem pelos filmes que fiz, não pela minha vida privada. O estrelato confunde os dois níveis."

Mas sua vida privada se entrelaçou com seu trabalho.
"Sobre o que você pensa?"

Gostaria de retornar por um momento a Cristaldi. Tem-se a sensação de que a presença dele a afetou.
"Certas imposições, certas durezas, me amarguraram. Nosso relacionamento nunca foi verdadeiramente único."

Você frequentemente compartilhou sua vida com homens particularmente durões.
"Gosto deles fortes, mas justos. Como Pasquale Squitieri."

Qual o papel que ele desempenhou?
"Ele era o homem da minha vida."

Por quê?
"Faz um tempo que não estamos juntos. Mas ainda conversamos com frequência. Entre outras coisas, temos uma filha juntos."

Doeu quando terminou?
"Não, tive o mesmo problema quando decidi me mudar para Paris. Agora moro lá. Sozinha. Silenciosa. Numa linda casa às margens do Sena."

Sinto uma leve melancolia.
"É a tristeza de tudo que nunca mais volta. Como você era e como seus amigos eram. Revi O Leopardo há algum tempo, na versão restaurada por Martin Scorsese. Foi uma noite estranha. Eu tinha Delon ao meu lado, e ele segurou minha mão durante todo o filme. Parecia estar tentando arrancá-la. Então eu o ouvi chorar. E perguntei a ele o que estava acontecendo, Alain. Somos os únicos que restam vivos, ele disse. Essa é a grande tristeza. Steve McQueen, que recebi em Roma; Cary Grant, com quem fui a um show dos Beatles em Los Angeles; Marcello e Vittorio, com quem fiz minha estreia. Pessoas que eu amava, ou talvez odiava, e que não estão mais entre nós. O que resta?" O que resta?
"Algumas lembranças e um pouco de fé. "

Quanto?
"O suficiente para entrar em uma igreja. O importante é que ela esteja vazia. Me incomoda ser reconhecido."

O sucesso pesa sobre você?
"Eu não acreditava no sucesso. Parecia absurdo. Então aconteceu."

Moravia perguntou a ela sobre seu corpo. Como você se sente em relação a ele hoje?
"Não gosto de atrizes que fazem cirurgia plástica. Você se olha no espelho e não sabe mais quem é. Não dá para parar o tempo. Não dou muita importância a isso."O que transparece através da tela é, acima de tudo, a capacidade de comunicar emoções."

A tela não mente?
"Ou mente demais. Às vezes, faz você sonhar."

Você sonha?
"Sim, eu vou para a cama tarde. Fecho os olhos e anseio por ver os rostos dos meus entes queridos. "

Sonhos são involuntários.
"Eu costumo esquecê-los. Quando criança, sonhava com frequência que me jogava de uma janela. Sempre penso nisso quando olho da sacada da minha casa em Paris. Penso naquele sonho e na minha África."

Quais são seus sentimentos?
"Sinto vontade de chorar quando penso no que está acontecendo naquele continente. Estou envolvida com várias organizações humanitárias. Há mulheres para defender, crianças para proteger, natureza para preservar, doenças para erradicar. As pessoas quase nunca têm a chance de falar. Ou são tratadas apenas com demagogismo. Gostaria que pudéssemos recomeçar daqui."

Postado por Fany / Raffaella Spinazzi 

(Tradução automática, sem revisão do texto)

 https://fany-blog.blogspot.com/2014/08/ritratto-di-claudia-cardinale.html

Jaime Nogueira Pinto - Claudia Cardinale (1938-2025)



* Jaime Nogueira Pinto

O desaparecimento de Claudia Cardinale lembra-nos o muito que nos trouxe e ao cinema e damos graças pelo dom da vida e pelo que de bom e de belo constantemente se cruza connosco e nos toca neste mundo

27 set. 2025

Quando comecei a ver cinema (a “ir ao cinema”, como se dizia), o cinema italiano era um grande cinema, para não dizer o grande cinema. A começar pelos realizadores, os Visconti, os Fellini, os Pasolini, os Antonioni, os Monicelli, os Risi, os Rossellini, os De Sica, criadores admiráveis em todos os géneros, da comédia mais divertida à tragédia mais shakespeariana.

Mas para nós, miúdos, muito mais do que os realizadores, que até à adolescência nos passavam relativamente despercebidos, impressionavam-nos os actores – um cómico admirável, como Antonio de Curtis, Totó, um actor genial para papéis mais sérios, como Marcelo Mastroianni, ou alguém preparado para todos os géneros, como Vittorio Gassman. E mais ainda que os actores, fascinavam-nos as actrizes.

Estávamos no Portugal dos anos 1960, a sair da Igreja pré-conciliar de Pio XII, e as nossas “referências artísticas” eram americanas (como a Marilyn Monroe, a Rita Hayworth ou a Ava Gardner, que víamos nos filmes e nas páginas do Século Ilustrado),  francesas (como a Brigitte Bardot de Et Dieu créa la femme ou a Catherine Deneuve de Belle de Jour)  e italianas  (como a Silvana Mangano, a Sofia Loren, a Gina Lollobrigida, a  Monica Vitti… e a Claudia Cardinale).

Claudia Cardinale era uma italiana nascida na Tunísia, então um domínio francês, onde, com 19 anos, ganhara um concurso de beleza. O primeiro prémio dava direito a uma semana em Veneza com acompanhante. Claudia levou a mãe e voltou para a Tunísia.  Estávamos em 1957. Não passou um ano até que saísse da Tunísia para o grande écran, com I Soliti Ignoti, de Mario Monicelli.

Era o começo. Em 1960, estava em Rocco e i Suoi Fratelli, de Visconti, com Alain Delon, em 61 era La Ragazza con la Valigia no filme de Valerio Zurlini, e em 63 dava corpo à Ragazza di Bube, de Luigi Comencini. No mesmo ano, Visconti voltava a escolhê-la, desta vez para desempenhar o papel de Angelica em Il Gattopardo.  Angelica era a bela filha do burguês Dom Calogero Sedara, parte do exercício de transição política e social que “o Leopardo”, o príncipe de Salina (Burt Lancaster), vai protagonizar para que a estrutura social não sofra muitos abalos com a passagem da monarquia tradicionalista dos Bourbon-Duas Sicílias para a monarquia liberal e revolucionária dos Saboia.

São raros os grandes filmes de grandes livros, ou da adaptação de grandes livros, vá-se lá a saber porquê… Talvez porque os livros falem outra linguagem, mais intimista, centrada na palavra e deixando a imaginação visual à solta, e o cinema encontre o seu encanto sobretudo na imagem, no movimento, na acção, num apelo mais directo aos sentidos.  Por alguma razão nem as adaptações francesas de Le Rouge et le Noir ou de La Chartreuse de Parme, de Stendahl, resultaram em grandes filmes, nem os livros que serviram de guião aos geniais tratados do poder e da condição humana que são Os Padrinhos de Coppola eram obras-primas.

Il Gattopardo, de Lampedusa, é uma excepção. É um romance admirável que, pela mão de Visconti, inspira um filme admirável. Livro e filme são obras diferentes e assumem essa diferença. Visconti, ao sabor do seu tempo, da sua arte e da sua condição de aristocrata-comunista, faz uma leitura marxista do romance de Lampedusa, a narrativa nostálgica da viagem à Sicília do aristocrata Giuseppe Tomasi de Lampedusa à procura de um tempo perdido.

Claudia Cardinale veste bem a pele de Angelica, a filha de Dom Calogero (Paolo Stoppa), o burguês em ascensão social que, nas terras feudais dos Salina, ajuda a evitar a revolução que a sucessão dos “homens novos” aos aristocratas e o fim do Ancien Régime podia provocar. Visconti encerra o filme com Claudia Cardinale a rodopiar no salão dos Salina nos braços do patriarca,  um Burt Lancaster que nos tínhamos habituado a ver nas fitas americanas como trapezista, pirata, cowboy  ou até índio (no Último Apache), mas que o realizador italiano se atreve a transformar no aristocrata nostalgicamente maquiavélico que muda o que for preciso (o acessório) para que o essencial (a propriedade dos meios de produção – segundo Visconti, conde de Lonate Pozzolo, com casa em Milão, cheia de criadagem e dois chefs de cozinha, segundo o amigo e rival Fellini) continue na mesma. E sim, o filme é diferente do livro também no essencial.

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A versatilidade de Claudia Cardinale não será menor do que a do trapezista, pirata, cowboy, índio e príncipe, Burt Lancaster. Em 1968, em Hollywood, vai protagonizar entre vaqueiros, caminhos-de-ferro, maus muito maus (Henry Fonda) e um bom com cara de mau (Charles Bronson) Aconteceu no Oeste, um filme de Sergio Leone, que trabalhara com mestres como Vittorio de Sica e Luigi Comencini e se lançara nos chamados Western Spaghetti com fitas como Por um Punhado de Dólares O Bom, o Mau e o Vilão.

Contrastando em quase tudo com a Angélica de O Leopardo, Claudia é, em Once Upon a Time in the West, Jill McBain, uma mulher de vida fácil (ou difícil) de Nova Orleães que vem para a terra onde se passa a acção porque casa com o homem que é assassinado, com a família, logo no princípio da história. E desce, linda e feliz, do comboio, para enfrentar o que der e vier.

Vi este Aconteceu no Oeste num dia que é sempre inesquecível: o dia seguinte ao do último exame da época; o dia ou a noite em que, pela primeira vez depois de um tempo de grande azáfama e sofrimento, em pleno Verão, estamos livres, soltos e podemos jantar bem e ir ao cinema.

Pude, por isso, apreciar mais ainda a beleza da Cardinale, ajudado pela música de Ennio Morricone e por aqueles desfechos típicos dos Westerns, com os maus a serem punidos e tudo a acabar bem.

E vi-a em muitas outras fitas – como Claudia, no 8 ½ de Fellini, como dona de uma casa de passe, no Fitzcarraldo de Werner Herzog, como chefe de quadrilha em Les Petroleuses, de Christian-Jacques (que  juntava na mesma quadrilha Bardot e Cardinale, BB e CC). Vi-a sempre bela, como princesa Dala na Pantera Cor de Rosa sempre bem, ainda na tela ou já a sair de cena e a envelhecer.

Dizem que em 1967, na Basílica de S. Pedro  (Paulo VI quisera receber um grupo de actrizes italianas), o Papa conversou alguns minutos a sós com ela e Claudia saiu a chorar. Especula-se que teriam falado do que lhe acontecera aos 17 anos: a violação, a hesitação em abortar e a decisão de ter o filho, o seu Patrick, que o futuro marido, Franco Cristaldi, iria perfilhar.

O desaparecimento de Claudia Cardinale lembra-nos o muito que nos trouxe e ao cinema, a sua forma única de passar pelo tempo. E lembra-nos também aquilo de que muitas vezes nos esquecemos: de dar graças pelo dom da vida e pelo que de bom e de belo constantemente se cruza connosco e nos toca neste mundo. Que descanse em paz.

https://observador.pt/opiniao/claudia-cardinale-1938-2025/?

Cory Doctorow - NÃO PODES LUTAR CONTRA A MERDA

 


* Cory Doctorow, 

Medium. Trad. OLima.

É preciso dizer-te algo desagradável: as tuas escolhas pessoais de consumo não farão uma diferença significativa na quantidade de merda que enfrentas na tua vida.

Claro, podes fazer pequenas alterações, e deves fazê-lo! Comprar um portátil reparável, como o Framework, que é o melhor computador que já tive, e instalar o Linux nele (eu uso o Ubuntu, que é fácil de instalar). Passarás duas semanas a procurar na interface do utilizador o que precisa clicar e, depois, deixarás de notar isso para sempre.

Acede à Internet através de RSS e evita toda a manipulação algorítmica e vigilância que te obriga a ti e os seus às depredações das piores pessoas do mundo e dos seus algoritmos selvagens.

Prefira ferramentas de mensagens privadas e abertas de alta segurança, como o Signal. Abre uma conta num serviço de rede social federado, como o Mastodon, e torna-a o principal local para a sua vida social online.

Faz tudo isso! Faz mais! Tornarás a tua vida um pouco melhor e, em alguns casos, muito melhor. Mas não vais combater a merda dessa forma. A merda não é o resultado de pessoas a fazerem más escolhas: é o resultado de más políticas que produzem maus sistemas.

A merda é uma descrição clara, que fala sobre como as plataformas se tornam ruins. Eis como as plataformas morrem: primeiro, são boas para os seus utilizadores; depois, abusam dos seus utilizadores para melhorar as coisas para os seus clientes empresariais; finalmente, abusam desses clientes empresariais para recuperar todo o valor para si próprias.

Mas a parte mais importante da merda é a sua hipótese causal: a resposta que propõe para explicar por que razão esta degradação está a acontecer em todo o lado, neste momento.

Eis porque estás a ser prejudicado: decidimos deliberadamente deixar de aplicar as leis da concorrência. Como resultado, as empresas formaram monopólios e cartéis. Isto significa que não precisam de se preocupar em perder os seus negócios ou mão de obra para um concorrente, porque não competem. Isso também significa que elas podem facilmente controlar os seus reguladores, porque podem facilmente chegar a um acordo sobre um conjunto de prioridades políticas e usar os biliões que acumularam ao não competir para controlar os seus reguladores. Elas podem controlar os seus antigos e poderosos trabalhadores de tecnologia, despedindo-os em massa e aterrorizando-os para que abandonem qualquer pretensão inspirada em Tron de «lutar pelo utilizador». Por fim, podem usar a lei de propriedade intelectual para silenciar qualquer pessoa que crie tecnologia que desvalorize as suas ofertas.

Podes tomar cuidado para evitar a merda, podes até mesmo fazer disso um fetiche, mas sem resolver essas falhas sistémicas, as tuas ações individuais não te levarão muito longe. Claro, usa ferramentas que aumentam a privacidade, como o Signal, para comunicar com outras pessoas, mas se a única maneira de levar o teu filho ao jogo da liga infantil é entrar no grupo de boleias no Facebook, vais partilhar dados sobre tudo o que fazes para a Meta.

Da mesma forma, podes usar bloqueadores de anúncios que preservam a privacidade no teu navegador, mas no momento em que tiveres que fazer negócios com um monopólio que exige que uses a aplicação deles, ficarás totalmente indefeso diante deles, porque a lei antievasão criminaliza a modificação de uma aplicação para preservar a sua privacidade. Uma aplicação é apenas uma página da web revestida com o tipo certo de lei de propriedade intelectual para tornar a instalação de um bloqueador de anúncios um crime passível de prisão.

Quando todos os teus amigos vão a um festival, vais mesmo desistir de ir porque o evento exige que uses a aplicação Ticketmaster (porque a Ticketmaster tem o monopólio da venda de ingressos para eventos)? Se sim, não vais ter muitos amigos, o que é uma péssima maneira de viver

Se transformares a tua campanha pessoal para viver uma vida livre de merda num conjunto de práticas rígidas que te isolam da tua comunidade, ficarás infeliz — e prejudicarás a tua capacidade de lidar com as raízes sistémicas da merda. Isso porque problemas sistémicos têm soluções sistémicas. Eles são abordados por meio de movimentos de massa, litígios de impacto, ação política, revoltas de rua, ajuda mútua e outras formas de solidariedade e comunidade.

Os monstros que beneficiam do status quo não querem que saibas disso. Eles querem fazer uma lavagem cerebral em ti com o mantra de Margaret Thatcher: «A sociedade não existe». Eles querem que penses que és um indivíduo patético e atomizado. Eles querem que morras numa onda de calor enquanto expressas o teu profundo arrependimento por não reciclares mais diligentemente e não teres mais cuidado com a tua «pegada de carbono». Querem que conduzas durante horas à procura de um vendedor independente de cartão para fazeres o teu cartaz de protesto, convencido de que é mais importante evitar fazer compras na Amazon do que realmente aparecer no protesto em frente ao armazém da Amazon. Querem que te amaldiçoes por não andares de bicicleta e apanhares o autocarro na tua cidade, onde não há ciclovias e os autocarros passam a cada 45 minutos e param às 20h. Se querias uma cidade habitável, deverias ter feito melhores escolhas de consumo! Talvez pudesses cavar o teu próprio metro, já pensaste nisso, hmmm?

Tu, eu e todos que conhecemos fomos submetidos a uma campanha de 40 anos de propaganda antissolidária, com o objetivo de nos convencer de que só podemos lutar contra o sistema como indivíduos. Não gostas do teu plano de saúde? Procura outro! Não gostas do teu chefe? Despede-te! Nunca deves defender um sindicato ou um sistema de saúde socializado. Tu és um indivíduo, a sociedade não existe. «Não existe tal coisa como sociedade» é o que se diz quando se beneficia da sociedade (que existe, sem dúvida) e não se quer que ela mude.

Para fazer mudanças, é preciso existir na sociedade. Sim, o Partido Democrata é uma gerontocracia fraca e patética, mas os Socialistas Democráticos, o Movimento Sunrise e outros grupos políticos independentes dos democratas, mas que ainda assim os levam a fazer algo de bom, às vezes, merecem o seu apoio. Sim, o movimento sindical desperdiçou os anos de Biden, recusando-se a gastar as suas reservas de dinheiro recordes na organização, apesar dos milhões de trabalhadores implorarem para se filiarem nos sindicatos. Mas a democracia no local de trabalho continua a ser a única maneira que temos — ou teremos — de derrotar o capital, então filia-te num sindicato, forma um sindicato, apoia um sindicato.

Sim, a reciclagem do plástico é uma farsa criada pela indústria petroquímica e todo o plástico que coloca no seu caixote azul vai para uma incineradora ou para um aterro, mas se não apoiares (e se juntares a) verdadeiros ativistas ambientais, vais ser queimado vivo.

Sim, Israel está a cometer um genocídio e Brown, Columbia e outras universidades de elite estão a capitular perante Trump, cuja base evangélica acredita que a guerra em Israel acelerará a Segunda Vinda, quando todos os judeus serão condenados à condenação eterna. Mas isso não te isenta da responsabilidade de agires para defender os nossos irmãos e irmãs palestinianos da morte que lhes é infligida com as armas que os nossos governos enviam a Israel. Isso vale em dobro para nós, judeus, em cujo nome o massacre está a ser cometido. (…)

Claro, vive a melhor vida que puderes, fazendo as melhores escolhas possíveis. Mas não te iludas achandque isso é lutar contra a merda.

A razão pela qual as empresas te espiam não é porque você é mesquinho demais para pagar pelos media, então elas precisam recorrer à publicidade de vigilância. Independentemente de você pagar ou não a uma empresa de tecnologia, elas vão espiá-lo de qualquer maneira. A razão pela qual eles podem espiar você é que os EUA não têm uma nova lei de privacidade do consumidor desde 1988, quando a Lei de Proteção à Privacidade de Vídeos proibiu os funcionários das locadoras de vídeos de divulgar que fitas VHS você levava para casa. Essa foi a última ameaça tecnológica à nossa privacidade que o Congresso abordou. A razão pela qual você é espiado é porque não há consequências sistémicas para essa vigilância.

A razão pela qual as empresas de trabalho temporário classificam erroneamente os seus trabalhadores como prestadores de serviços, para abusar deles, roubar os seus salários e negar-lhes proteções no local de trabalho, é porque podem fazê-lo — não porque os trabalhadores não sejam suficientemente exigentes em relação aos seus contratos de trabalho.

Para combater problemas sistémicos, é preciso fazer parte de uma solução sistémica. (...)

Posted by OLima at sexta-feira, setembro 26, 2025 

https://onda7.blogspot.com/2025/09/leituras-marginais_0387707902.html

Rezgar Akrawi - Repressão digital suave

Repressão digital suave - Como a inteligência artificial garante a continuidade da hegemonia capitalista

Se a repressão digital suave procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como ferramenta de libertação.

*  Rezgar Akrawi 

27 de setembro 2025

Durante a última ofensiva contra Gaza, milhares de ativistas ficaram surpresos ao ver suas publicações apagadas ou suas contas restritas simplesmente por documentarem os crimes da ocupação israelita. Muitos sentiram impotência e revolta, como se suas vozes estivessem sendo silenciadas de propósito. Não foi uma coincidência ou falha técnica, mas sim um exemplo vivo do que hoje podemos chamar de “repressão digital suave”. Trata-se de uma repressão que não aparece necessariamente sob a forma de bloqueios diretos ou prisões visíveis, mas que se infiltra por meio de algoritmos invisíveis, remodelando o espaço digital para servir à continuidade da hegemonia capitalista. Surge então a pergunta: como funciona esse sistema e como enfrentá-lo?

A repressão digital suave é um conjunto de políticas e ferramentas tecnológicas usadas para restringir a liberdade de expressão e controlar o espaço digital por parte das grandes empresas e dos Estados dominantes, mas de formas que parecem neutras e não conflituosas. Em vez da censura explícita, da proibição direta ou de medidas abertamente repressivas, baseia-se em técnicas de ocultação gradual e na criação de um ambiente em que as pessoas se submetem a uma vigilância invisível — e às vezes até se autocensuram.

Como funciona a vigilância invisível? Controlo digital e autocensura voluntária

Imagine que tudo o que você faz em sua vida digital está a ser monitorizado: as suas deslocações pelo telemóvel, suas reuniões privadas, até mesmo as suas mensagens pessoais. Não é ficção. As grandes empresas digitais, em colaboração com Estados hegemónicos, recolhem sistematicamente esses dados e os analisam para classificar utilizadoras e utilizadores de acordo com os seus comportamentos e orientações políticas. Assim, as plataformas tornam-se instrumentos centrais para detetar e conter tendências críticas, seja através de campanhas de desinformação ou de mecanismos que reduzem o alcance e a influência de determinados conteúdos.

E não pára por aí. Graças a algoritmos cuidadosamente projetados, o conteúdo político de esquerda e progressista é restringido sem precisar ser apagado. Parece que a baixa interação é resultado do desinteresse do público, mas na realidade trata-se de uma redução deliberada da visibilidade. Diversos estudos falaram da “bolha de filtros” que isola pessoas de qualquer conteúdo divergente. Vazamentos internos do Facebook, por exemplo, mostraram como a empresa reduzia intencionalmente o alcance de movimentos políticos ou de direitos humanos, enquanto afirmava publicamente ser neutra.

Com o tempo, muitas pessoas começam a praticar a chamada “autocensura voluntária”: moderam ou mudam seu discurso por medo de serem banidas, perderem alcance ou terem suas contas fechadas. Esse medo altera a natureza do próprio discurso e transforma a internet em um espaço pré-formatado para servir aos interesses das forças capitalistas.

A frustração digital

A repressão não se limita a restringir conteúdo. Existe também uma arma menos visível e ainda mais eficaz: a frustração digital. Através de um fluxo contínuo de conteúdos calculados, os algoritmos criam uma sensação generalizada de impotência e resignação, especialmente entre pessoas com posições de esquerda e progressistas. De repente, você se vê rodeado por mensagens que insistem que as experiências socialistas fracassaram e que resistir é inútil. Em contrapartida, o capitalismo é apresentado como uma força eterna e invencível.

Ao mesmo tempo, promove-se o individualismo e as soluções centradas no sucesso pessoal — como o consumo ou o desenvolvimento individual — como alternativas “realistas” à ação política coletiva. Assim, as pessoas são isoladas umas das outras e convertidas em consumidoras em vez de militantes. Não se trata de uma escolha espontânea, mas de uma estratégia de classe cuidadosamente elaborada para abortar qualquer possibilidade de transformação socialista radical.

Prisão e assassinato digital

Quando nem a censura nem a frustração bastam, o sistema recorre a um nível ainda mais grave: a prisão digital. De repente, pessoas comuns encontram as suas contas suspensas por longos períodos, bloqueadas totalmente ou encerradas sem aviso prévio. Normalmente, isso é justificado com argumentos como “violação das normas comunitárias” ou “promoção da violência”, embora o conteúdo censurado frequentemente seja documentação de crimes capitalistas ou de violações de direitos humanos.

Em muitos casos, a repressão chega ao que podemos chamar de “assassinato digital”: a eliminação completa da presença online de indivíduos ou organizações. Movimentos operários, organizações de esquerda, meios de comunicação independentes e até entidades de direitos humanos tiveram seus sites encerrados, arquivos apagados ou contas desativadas. O exemplo mais evidente é o do conteúdo palestino, que sofreu exclusões massivas de contas e publicações que denunciavam os crimes da ocupação, enquanto continuava a ser permitido o discurso de ódio ou a propaganda da direita israelita. Essas práticas transformam o espaço digital de um campo de expressão livre em um território rigidamente monitorado, onde o capital decide o que pode aparecer e o que deve ser enterrado.

Quais alternativas para as forças de esquerda e progressistas?

Se a repressão digital suave procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como ferramenta de libertação. Isso exige iniciativas de esquerda progressistas que promovam transparência e controle democrático, além de legislações rigorosas que criminalizem a vigilância política e proíbam o uso da inteligência artificial para restringir liberdades.

Não se trata apenas de leis. É necessário também construir redes de solidariedade transnacionais que denunciem violações e pressionem as grandes empresas. Utilizadoras e utilizadores comuns podem participar de boicotes contra empresas que vendem tecnologias de vigilância a regimes autoritários, colocando-as em listas negras. Em contrapartida, é essencial apoiar softwares e sistemas de código aberto geridos por órgãos independentes, com representantes da sociedade civil e sob controle coletivo, para que se tornem ferramentas de denúncia de abusos, de monitoramento de governos e de análise de dados para expor práticas repressivas.

Além disso, as organizações de esquerda precisam desenvolver as suas próprias ferramentas: desde técnicas de criptografia e proteção da privacidade até campanhas de consciencialização que revelem os bastidores dos algoritmos. Afinal, esta luta não é apenas técnica, mas eminentemente política. Enfrentar a inteligência artificial capitalista é parte da luta de classes, uma extensão do conflito sobre fábricas e campos no passado, mas agora no espaço digital.

O exemplo da repressão digital contra o conteúdo palestino, e contra vozes de esquerda e emancipação em geral, deixa clara a gravidade do problema. Mas também mostra a lição mais importante: alternativas são possíveis. Transformar a inteligência artificial em ferramenta de libertação e vinculá-la a um projeto político de esquerda progressista pode abrir novos horizontes para a resistência. A internet não nasceu para ser apenas um mercado de consumo, mas pode ser um campo de luta comum e internacionalista. Isso, porém, só será possível se ligarmos a batalha digital a uma luta mais ampla contra o capitalismo e sua hegemonia de classe, recolocando o ser humano no centro da decisão digital.


Rezgar Akrawi é um militante de esquerda independente, interessado na esquerda e na revolução tecnológica, e atua como especialista em desenvolvimento de sistemas e governança eletrónica.

Fontes consultadas:

Filter bubble – Wikipedia

How tech platforms fuel U.S. political polarization and what government can do about it

PNAS – Algorithmic amplification of politics on Twitter

Arxiv – The Political Amplification Bias of the Twitter For You Algorithm

2021 Facebook leak – Wikipedia

O Capitalismo de Inteligência Artificial: desafios para a esquerda e alternativas possíveis

https://leanpub.com/ai-socialism-pr

https://www.esquerda.net/artigo/como-inteligencia-artificial-garante-continuidade-da-hegemonia-capitalista/95969

sábado, 27 de setembro de 2025

Discurso na tomada de posse: Marcelo Caetano, 27/9/1968

* Marcelo Caetano,


O Senhor Presidente da República resolveu, no seu alto critério e segundo as normas constitucionais, designar-me para a presidência do Conselho de Ministros. Afastado há bastante anos da vida pública essa escolha surpreendeu-me. Tenho a consciência do que valho e do que posso e nunca poderia considerar-me à altura das gravíssimas responsabilidades deste momento histórico.

Em todo o mundo e em qualquer país são hoje bem pesadas as funções do governo. Mas que dizer quando se trata de suceder a um homem de génio que durante quarenta anos imprimiu à política portuguesa a marca inconfundível da sua poderosíssima personalidade, dotada de excepcional vigor do pensamento, traduzida por uma das mais eloquentes expressões da nossa língua e senhora de uma vontade inflexível e uma energia inquebrantável que ao serviço do interesse nacional não tinha descanso nem dava tréguas?
Compreende-se bem que, sem falsa modéstia, eu tenha hesitado em aceitar o esmagador encargo. Mas a lúcida serenidade do Chefe do Estado que a Providência proporcionou ao País nesta hora, venceu os meus escrúpulos. A vida tem de continuar. Os homens de génio aparecem esporadicamente, às vezes com intervalos de séculos, a ensinar rumos, a iluminar destinos, a adivinhar soluções, mas a normalidade das instituições assenta nos homens comuns. O País habituou-se durante largo período a ser conduzido por um homem de génio; de hoje para diante tem de adaptar-se ao governo de homens como os outros.
Alguém teria de arcar com as dificuldades dessa nova fase da vida constitucional. Desde que nas presentes circunstâncias quem de direito me chamou a assumir as duras responsabilidades do momento, entendi não poder fugir a elas. Pensei no povo português que, bem o tem demonstrado pela sua exemplar conduta cívica nesta ocasião, anseia antes de tudo por que se mantenha a independência nacional, a integridade do território, a ordem que permita o trabalho e facilite a aceleração do progresso material e moral. Pensei particularmente na necessidade de não descurar um só momento a defesa das províncias ultramarinas às quais me ligam tantos e tão afectuosos laços e cujas populações tenho presentes no coração.   Pensei nas Forças Armadas que vigiam em todo o vasto território português e nalgumas partes dele se batem lutando contra um inimigo insidioso, em legítima defesa da vida, da segurança, e do labor de quantos aí se acolhem à sombra da nossa bandeira. Pensei na juventude a quem as gerações mais velhas têm de ajudar a preparar-se para vencer as árduas dificuldade de um futuro cheio de interrogações...

Não me falta ânimo para enfrentar os ciclópicos trabalhos que antevejo. Mas seria estulta a pretensão de os levar a cabo sem o apoio do País. Entre as fórmulas lapidares em que o Doutor Salazar concretizou um pensamento cuja riqueza iguala a perene actualidade, encontra-se aquela frase tão divulgada e tão verdadeira, bem adequada a esta hora: «Todos não somo de mais para continuar Portugal».
Esse apoio terá muitas vezes de ser concedido sob a forma de crédito aberto ao governo, dando-lhe tempo para estudar problemas, examinar situações, escolher soluções. Outras vezes será solicitado através da informação tão completa e frequente quanto possível, procurando-se estabelecer comunicação desejável entre o governo e a Nação.
Neste momento não se estranhará que a minha preocupação imediata seja a de assegurar a normalidade da vida nacional, garantir a continuidade da administração pública e, se possível, a aceleração do seu ritmo, reduzir ao mínimo os factores de crise de modo a podermos vencer vitoriosamente as dificuldades da ocasião.
Temos de fazer face a tarefas inadiáveis. Enquanto as Forças Armadas sustentam o combate na Guiné, em Angola e em Moçambique e nas chancelarias e nas assembleias internacionais a diplomacia portuguesa faz frente a tantas incompreensões, não nos é lícito afrouxar a vigilância na retaguarda. Em tal situação de emergência há que continuar a pedir sacrifícios a todos, inclusivamente nalgumas liberdades que se desejaria ver restauradas.

Não quero ver os portugueses divididos entre si como inimigos e gostaria que se fosse generalizando um espírito de convivência em que a recíproca tolerância das ideias desfizesse ódios e malquerenças. Mas todos sabemos, pela dolorosa experiência alheia, que se essa tolerância se estender ao comunismo estaremos cavando a sepultura da liberdade dos indivíduos e da própria Nação. E que se vacilarmos perante certos ímpetos anárquicos, correremos o risco de nos vermos cercados de ruínas sobre as quais só um feroz despotismo poderá vir a reconstruir depois. Se queremos conservar a liberdade temos de saber defendê-la dos seus excessos, porventura os mais perigosos dos inimigos que a ameaçam.

 O desejo sinceríssimo de um regime em que caibam todos os portugueses de boa vontade não pode pois ser confundido com cepticismo ideológico ou tibieza na decisão. A ordem pública é condição essencial para que a vida das pessoas honestas possa decorrer com normalidade: a ordem pública será inexoravelmente mantida.

Disse há pouco da minha preocupação imediata em assegurar a continuidade. Essa continuidade será procurada não apenas na ordem administrativa, como no plano político. Mas continuar implica uma ideia de movimento, de sequência e de adaptação. A fidelidade à doutrina brilhantemente ensinada pelo Doutor Salazar não deve confundir-se com o apego obstinado a fórmulas ou soluções que ele algum dia haja adoptado.

O grande perigo para os discípulos é sempre o de se limitarem a repetir o Mestre, esquecendo-se que um pensamento tem de estar vivo para ser fecundo. A vida é sempre adaptação.

O próprio Doutor Salazar teve ensejo, durante o seu longo governo, de muitas vezes mudar de rumo, reformar o que ensaiara antes, corrigir o que a experiência revelara errado, rejuvenescer o que as circunstâncias mostravam envelhecido. Quem governa tem constantemente de avaliar, de optar e de decidir. A constância das grandes linhas da política portuguesa e das normas constitucionais do Estado não impedirá pois o governo de proceder, sempre que seja oportuno, às reformas necessárias.

Entro a exercer as árduas funções em que fui investido animado de uma grande fé. Fé na Providência de Deus sem cuja protecção são vãos os esforços dos homens. E fé no povo português que espero firmemente saberá corresponder ao apelo de quem, com absoluto desinteresse, apenas deseja servir a sua Pátria e fazer quanto possa para ajudar os seus concidadãos numa hora difícil a prosseguir no caminho penosamente trilhado da dignidade, da paz e da justiça social.

Temos de cerrar fileira, aquém e além-mar, para avançarmos juntos, com prudência, sim, mas seguramente. A divisão pode-nos ser fatal a todos. A dispersão enfraquecer-nos-á sem remédio. Saibamos ser dignos desta hora. O mundo tem os olhos postos em Portugal: a dignidade do Povo Português responderá a essa curiosidade ansiosa.


Infografia para Tv - Marcelo Caetano, Conversas em Família.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

António Santos - Charlie Kirk,vida e morte de um país doente

 

* António Santos 

(Avante, 2025 09 25)

Já todos percebemos para que precipício se dirigem os EUA – paulatinamente, desde a última eleição de Trump, e por vezes de chofre, como foi esta semana, por conveniente ensejo do funeral de Charlie Kirk, um provocador da extrema-direita ultra-montana que uma bala canonizou. Perante a turba fanática em Glendale, no Arizona, Trump, transido de fervor apoteótico foi certeiro no epítome: «Eu odeio os meus oponentes», declarou o presidente em funções dos EUA, «eu não lhes quero bem». 

E eis que milhares de corações graníticos, tão resistentes ao impacto diário de imagens do esquartejamento de crianças palestinas, se comoveram com esta morte individual, que veio para justificar tudo. Charlie Kirk está para o MAGA como Horst Wessel esteve para o partido nazi. Trump prometeu «trazer de volta a religião para a América» e logo ouvimos o secretário de Estado da Guerra (nomenclatura muito mais honesta, reconheça-se), Pete Hegseth, gritar «Deus é rei», ameaçar com «uma tempestade cuja força não compreendem» e explicar que «os nossos oponentes não são nada, não têm nada. São a maldade». A morte de Kirk, desinteressante em si mesma, insere-se na maior espiral de violência política vivida nos EUA desde a guerra civil. É disso que estamos a falar.

No dia seguinte, o Presidente assinava uma ordem executiva que designa o “movimento antifa” como uma organização terrorista, abrindo espaço à criminalização de todas as organizações de esquerda nos EUA. Não é mera retórica: Trump exigiu publicamente que a procuradora-geral, Pam Bondi, prenda todos os magistrados e adversários políticos que alguma vez se atreveram a enfrentá-lo e pondera ordenar, à semelhança de Washington DC e Los Angeles, a ocupação militar de Chicago, Baltimore, Nova Orleães, Nova Iorque, Oakland e outras cidades controladas pelo Partido Democrata.

Acto contínuo, todas as agências federais em cuja proverbial independência se alicerçavam as crença nos “pesos e contra-pesos” da democracia estado- -unidense, revelam-se joguetes na mão de Trump: Brendan Carr, chefe da agência federal para as comunicações, ameaçou retirar a licença audiovisual a qualquer canal que critique o presidente ou ofenda “a memória de Kirk”, despoletando uma vaga de despedimentos de famosos apresentadores de televisão e comediantes. «Querem fazer isto a bem ou a mal?», sintetizou. No mesmo sentido, também esta semana, o Supremo Tribunal confirmou que Trump pode demitir membros da Comissão Federal de Comércio, garantindo assim a gestão presidencial dos monopólios do império.

Em todos os acontecimentos moram partes diferentes de continuidade e de mudana. A tirânica subversão da democracia que Trump opera explica-se, em primeiríssimo lugar, com as características brutais, tirânicas, que essa “democracia” já possuía: um jogo nas mãos dos bilionários e refém da sua boa-vontade para escolher os comediantes certos ou distribuir os despojos do imperialismo com maior ou menor justiça. Kirk deu-nos, na vida como na morte, uma boa síntese da psicose colectiva de uma sociedade niilista, violenta, desumanizada, decadente, em que a vida humana é a mais barata das mercadorias.

 https://www.avante.pt/


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Mário Beja Santos - "O último avô"



O mais genial escritor português queimou as suas memórias da Guerra Colonial. Porquê?
        
* Mário Beja Santos   

        É um romance avassalador, dotado de uma estrutura onde não faltam histórias que se desprendem como bonecas russas, onde o inescrutável assume proporções de uma investigação quase policial, o neto do mais genial escritor português soube que o seu avô prodigioso incendiou o manuscrito do que seria a sua obra luminescente, as coisas da guerra, porque ele combatera na região de Cabinda e no estrito círculo familiar falava de horrores, de sofrimentos incalculáveis, confessava que os companheiros mortos lhe eram presenças fantasmáticas.

        O maestro da narrativa é o neto, mas há também a avó, as tias-manas, a estranha companheira do avô em fim de vida, a governanta, as lembranças da mãe, prematuramente falecida, cuja ausência é sublinhada há anos por um quarto trancado na casa do avô. Enfim, enigmas em catadupa. Falecido o escritor que era uma instituição nacional, a quem só fugira o Nobel, era esse ponto de África que corria o risco de se transformar numa lenda, ele nunca escondera em público e em privado que aquela guerra era trauma que não se apagava. Será que o grande escritor não deixara uma cópia da sua obra mais esperada?

        O escritor nomeia como testamenteiro este neto, ele abre-nos a porta à sua infância, à vida agitada por que passara a mãe, uma quase vagabunda, vivera em comunidade lá para os Algarves, numa atmosfera de indecências. Assim vai detonar uma narrativa de presente e passados, em ritmo turbilhonante: O Último Avô, por Afonso Reis Cabral, Publicações Dom Quixote, recentemente dado à estampa.

        O leitor não desarma porque a narrativa do neto é enleante, urdida de diálogos surpreendentes, rapidamente de agiganta aquele escritor tirânico, mitómano e confabulador, há sempre tempestades nos diálogos entre escritor e a sua mulher, um escritor cheio de lábia apetrechado de marketing. “Os jornalistas perguntavam-lhe se escreveria sobre Angola. Quando não lhe perguntavam, ele mesmo encaminhava a conversa, dizia que sim, um dia sim, quando estivesse à altura do tema escreveria tudo o que vira e fizera, o quanto sofrera. Ele sabia o que significava ter a G3 por confidente. Por enquanto, a arma continuaria a única guardiã das suas mágoas.”

        A mãe do narrador, conhecida por Formiga, parecia destinada a ser mais do que a confidente do genial escritor, talvez uma sucessora. Acabara por ser a grande deceção do escritor e do pai. Neto e avó convivem felizes numa casa em Azeitão, já a avó se libertara do tirânico marido. O avô faiscava admirações, daí Regina, aquela companheira muito mais nova. É à filha mais nova, a Formiga, que ele conta os seus segredos africanos. Chegava a agir brutalmente em meio familiar, o genial escritor é bem capaz de atrocidades e truculências como esmagar pássaros bicos de lacre. Seria reminiscência do que ele passara na guerra?
 
        O neto lança-se na investigação, pretende saber se existe ou não um manuscrito. Há fotografias africanas, o avô contara histórias sobre certas mulheres, ele que dizia: “Nós éramos miúdos que achavam que eram homens. A recruta bárbara meteu-nos na cabeça que éramos homens. Nas éramos miúdos que, ao fim de seis meses de uma dureza insana, tinham de ir para a guerra a achar que eram homens. Ainda hoje os admiro, amo-os, aos meus camaradas. Deram o que tinham, tantos deram tudo. E só tinham a juventude para dar.”

      Aquele avô quis fazer do neto escritor, foi mais um desencontro, o genial escritor viveu desencontros familiares em alta voltagem. A pesquisa do manuscrito é desmesurada: nos dezassete mil volumes da biblioteca, abanaram-se molduras, bateram-se nas paredes à procura de fundos falsos, as gavetas dos móveis, os ficheiros dos computadores, as pastas de arquivo. Nada. Há mais histórias do avô, uma muito comovente, já na atmosfera da guerra civil em Angola, envolvendo Zacarias, a Jóia e a Estrela da Piedade. O neto é pressionado pelas tias-manas e pelo editor, por Regina e pela sua amiga Cecília, havia que descobrir o mais perfeito diamante da herança literária do genial escritor.

        Este romance de Afonso Reis Cabral atravessa três gerações. Estou absolutamente seguro de que será procurado avidamente por gente de todas as idades. Mas haverá um segmento desse público que lhe ficará profundamente agradecido por um parágrafo inspirador, talvez único em toda a literatura portuguesa contemporânea, é uma homenagem rendida aos antigos combatentes:

        “Restam uns trezentos mil soldados da velha guerra. A estatística manda que os encontremos na rua, na sucursal do banco ou dos correios, nos cafés. Frequentam os transportes públicos e sentam-se ao nosso lado na Loja do Cidadão. São eles que conversam entre si durante horas nos bancos de jardim. Uns falam alto, outros perderam a voz. Suspeito de que muitos dos que agarramos pelos pulsos e tornozelos às camas dos hospitais, e que bradam como cercados pelo inimigo, também sejam antigos combatentes. Alguns escondem-se à paisana de velho e à paisana de soldado: como ninguém lhes dá mais de setenta anos, não parecem velhos o suficiente e ninguém desconfia de que combateram em África. Outros entraram em lares.

        Vivem nas nossas casas, comem da nossa comida, bebem da nossa água e despejam os mesmos autoclismos. Usam o nosso papel higiénico. Se os observarmos com amor e algum cuidado, espantamo-nos e compreendemos que são nossos pais e avós e que, enquanto não morrerem, estão vivos; ao mesmo tempo vivos e invisíveis, porque são velhos e não olhamos, porque são veteranos e não ligamos.”

        Não estou aqui para contar o desenlace de toda esta investigação, acreditem que será inesperado, o neto percorre arquivos, até pede uma entrevista a um camarada do genial escritor, o retrato do ex-alferes Anselmo Baltazar é outro primor literário. Fica-se a saber a verdade de tudo. É um neto queixoso, justamente iracundo, que irá preparar a vingança da História, e paradoxalmente tornar mais grada a lenda do tão esperado romance que não conhecerá a luz do dia. Como tudo isso aconteceu é matéria para que o leitor se encontre com este romance inovador em que a Guerra Colonial anda obsidiante entre a verdade e a mentira.

        Uma obra-prima.

 https://malomil.blogspot.com/2025/09/o-mais-genial-escritor-portugues.htm

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Joseph Goebbels - A tempestade está chegando (Der Sturm bricht los)


* Joseph Goebbels

Falo como representante do maior movimento de milhões já visto em solo alemão. Não estou aqui para implorar por seu voto, seu favor ou seu perdão. Eu só quero que você seja justo. Dê seu veredicto sobre os últimos 14 anos, sobre sua vergonha, sua desgraça, seu colapso e nossa crescente humilhação política nacional. Você deve decidir se os homens e partidos responsáveis pelos últimos 14 anos devem ter o direito de continuar no poder no governo.

Camaradas, este novo sistema nasceu há 14 anos. Nunca se julga sistemas ou governos pelo que eles querem ou pelo que prometem, mas sempre pelo que podem fazer e pelo que realizam. Os homens de novembro [1918] tomaram o poder mentindo para o povo, dizendo-lhes que haviam vencido. Eles prometeram a vocês, trabalhadores, cidadãos e alemães criativos, um Reich de liberdade, beleza e dignidade. Eles prometeram socialismo, prometeram um Estado popular, prometeram às grandes massas a realização de seus sonhos – paz, trabalho e prosperidade.

Vivemos essa mentira há 14 anos. Por 14 anos, derrotamos este governo; Vivemos na necessidade, sofremos, nos sacrificamos, passamos fome, às vezes choramos. E agora vemos os piores resultados desses 14 anos: a economia alemã está em ruínas, há enormes déficits orçamentários, a fortuna da nação é desperdiçada, as pessoas são roubadas de sua herança, as pessoas estão desesperadas e sem esperança, as ruas de nossas grandes cidades estão cheias de um exército de milhões de desempregados, a classe média está desaparecendo,  os fazendeiros expulsos de suas terras. Para nossa vergonha e desgraça, grandes áreas do território alemão foram perdidas. Nosso território está dividido pela ferida sangrenta do corredor polonês, e a Alemanha é drenada por um pagamento de tributo estúpido e antinatural.

Mais do que isso, os batalhões vermelhos pregam a guerra civil e o sangrento conflito de classes que estão destruindo nossa nação, não dando paz ao povo alemão. Em tal situação, os líderes e partidos do velho sistema estão fazendo a tentativa desesperada de libertar a Alemanha de suas cadeias estrangeiras. Passamos de uma conferência sobre reparações para outra. Assinamos com Versailles, Dawes e Young. Cada um significava mais fome, mais tortura, mais terror, mais horror para o povo alemão sofredor.

Não é difícil determinar quem é culpado, quem tem a responsabilidade, para com o povo, para com a história e para com Deus por essas condições. São esses homens e os partidos que enganaram o povo alemão durante 14 anos, prometendo-lhes uma vida de beleza e dignidade, do paraíso na terra, mas que no final nos deram palavras vazias e pedras em vez de pão. Eles estão agora perante o tribunal da nação para prestar contas do desastre sem precedentes que causaram nos últimos 14 anos. Cinco semanas atrás, o último gabinete deste sistema caiu. Novos homens surgiram no cenário político e declararam que tinham o objetivo de substituir o Sistema de Novembro e colocar a Alemanha em um curso político fundamentalmente novo. Vós, homens e mulheres, sabeis que encarámos esta tentativa com desconfiança desde o início. Vemos a ressurreição de nosso povo como não proveniente de um pequeno grupo que não tem forte conexão com o povo; apenas um movimento de milhões tem a força ativa e a capacidade de mudar a Alemanha.

O que o novo gabinete fez nas últimas cinco semanas?

Queria equilibrar o orçamento. Isso era necessário, já que os cofres estavam vazios quando assumiu o poder. Mas equilibrar o orçamento não resolverá nossos problemas. A verdadeira causa da nossa necessidade é o desemprego. Pedir às pessoas que se sacrifiquem só faz sentido se esse sacrifício for o primeiro passo para a recuperação. O que fez esse chamado gabinete de concentração nacional? Baseou-se no Decreto de Emergência de Brüning e o intensificou. Este gabinete cortou o escasso seguro-desemprego, reduziu as pensões das vítimas da guerra, adotou o imposto sobre o sal, a medida mais anti-social. Este gabinete não deve pensar que nós, nacional-socialistas, apoiaremos suas políticas prejudiciais.

Pergunto-vos, homens e mulheres, como é que o Partido Social-Democrata pode ter a ousadia de nos acusar de intolerância, quando foi exactamente assim que se comportou durante os últimos dois anos sob Brüning? O Partido Social-Democrata estaria pronto para engolir o Decreto de Emergência se tivesse certeza de que o novo gabinete lutaria contra nosso movimento tão duramente quanto o governo de Brüning.

O que mudou?

Nada, exceto que os governantes têm rostos diferentes. A economia está funcionando no vazio, o governo não conseguiu iniciar um novo programa de criação de empregos. A miséria das grandes massas continua a aumentar, e os famintos não sabem como podem sobreviver de um dia para o outro. A classe média está entrando em colapso sob pesados impostos e o agricultor está deixando sua fazenda porque não pode mais pagar os juros, hipotecas e dívidas. Tudo o que o gabinete pode dizer é o seguinte: "Não podemos consertar em cinco semanas o que deu errado em quatorze anos!" Bem, OK! Mas deve-se pelo menos ser capaz de ver que um começo está sendo feito. Concordamos que não se pode fazer muito com o artigo 48º. Mas pelo menos devemos ser capazes de esperar que o governo esteja fazendo tentativas para resolver os problemas políticos que enfrentamos. Mas o que vemos?

O assassinato vermelho se espalha pelas ruas. Barricadas são construídas em Moabit [um bairro da classe trabalhadora de Berlim]. Todas as noites, 50, 60 ou 70 de nossos membros são gravemente feridos, e todos os dias enterramos um, dois ou três camaradas. A imprensa vermelha mentirosa está mais ativa do que nunca, e no sul e oeste da Alemanha o Partido do Centro e seu Partido Popular da Baviera, relacionado com a eclesiástica, ameaçam uma fragmentação do Reich.

O que o ministro do Interior do Reich está fazendo a respeito?

Ele se senta com as mãos no colo. Ele quer tratar a direita e a esquerda com imparcialidade, mas assim nos trata injustamente. Vocês, meus camaradas, estão aqui em seus uniformes marrons gastos. O governo permitiu que você fosse caluniado e seus uniformes são pagos pelas contribuições dos pobres. O governo não caiu totalmente nos braços dos vermelhos. Ele afirma ser nacional, mas estamos convencidos de que, se não fosse por nós, nacional-socialistas, esse governo fraco teria esgotado o capital que a Alemanha nacional construiu ao longo de uma luta de doze anos pelo renascimento.

Uma nova Alemanha surgiu! É uma Alemanha que lutou por doze anos contra a traição marxista e a fraqueza burguesa.

Vocês, homens, mulheres e camaradas, são os portadores, testemunhas, construtores e finalizadores deste levante popular único. Nossas políticas não foram populares. Servimos à verdade, e somente à verdade. Por doze anos, eles nos insultaram, proibiram, caluniaram e perseguiram. Agora que estamos às portas do poder, as mentiras marxistas se juntaram à fraqueza burguesa para nos combater. Se fôssemos apenas um partido como todos os outros, entraríamos em colapso sob a ofensiva de nossos oponentes. Mas somos um movimento popular. Essa é a nossa sorte. Aqui e em qualquer outro lugar do país, a bandeira vermelha da suástica tremula sobre pessoas de todos os campos, partidos, classes, ocupações e confissões religiosas. Nossos oponentes riram de nós no passado, mas não riem mais.

Vocês, homens e mulheres diante de mim, cem ou duzentos mil em número, de cabeça erguida, eretos, orgulhosos e corajosos, os portadores do futuro da Alemanha, aos seus olhos está escrito:

Não pensamos mais em termos de classe. Não somos trabalhadores ou classe média. Não somos antes de tudo protestantes ou católicos. Não perguntamos sobre ancestralidade ou classe. Juntos, compartilhamos as palavras do poeta:

"Gente, levantem-se e invadam, soltem-se!"

Camaradas, homens e mulheres, o destino nos deu uma última chance. Temos mais uma oportunidade de falar com as pessoas. Nossa campanha se espalha por toda a Alemanha, e mais uma vez os ouvidos ouvem, os olhos veem, o coração bate mais rápido e os sentidos clareiam:

"O dia da liberdade e da prosperidade está chegando!"

Assim escreveu nosso falecido camarada Horst Wessel, e estamos cumprindo sua profecia. Os outros podem mentir, caluniar e derramar seu desprezo sobre nós - seus dias políticos estão contados.

Adolf Hitler está batendo às portas do poder, e em seu punho estão unidos os punhos de milhões de trabalhadores e agricultores. O tempo de vergonha e desgraça está quase no fim.

Vocês são as testemunhas, os construtores, os portadores da vontade de nossa ideia e nossa visão de mundo.

Os hacks partidários do Partido Socialista estão de repente se lembrando do povo. Por uma década, as revistas ilustradas os retrataram apenas em sobrecasacas e chapéus cilíndricos em mesas cheias de ostras e garrafas de champanhe. Agora eles usam bonés de trabalhadores e enchem seus jornais com apelos como "Pessoas, acordem!"

Bem, nós, o povo, despertamos! Nós nos levantamos contra a opressão, 15 milhões de pessoas se juntaram a um exército de vingança. Aqueles que aceitaram seus belos ternos dos Sklareks [irmãos judeus envolvidos em um grande escândalo financeiro de Berlim] dificilmente podem imaginar que um trabalhador alemão honesto gastará seu salário de fome por uma camisa marrom decente. Aqueles que engordaram com caviar, que recebem setenta, oitenta ou cem mil marcos por ano, que espalharam o fedor de corrupção sem precedentes por toda a Alemanha, querem fingir que são uma oposição. "Para as barricadas!", eles gritam.

Nossa resposta: "Os bons velhos tempos dos figurões do partido acabaram. Uma nova Alemanha está chegando, uma Alemanha criada nas leis espartanas do dever prussiano. É uma Alemanha que não engorda, mas que está morrendo de fome! É uma Alemanha com força, com vontade, com idealismo! É uma Alemanha que está farta da traição marxista e das luvas brancas burguesas."

E vocês são as testemunhas desta Alemanha. Vocês, povo, afirmaram esta Alemanha. E nós, povo, falamos em teu nome. Nós, os líderes deste emocionante movimento de milhões, viemos de vocês, o povo. Nós também, camaradas, já fomos homens desconhecidos marchando com as massas cinzentas. Pessoas, compartilhamos em nossos corações sua tortura, sua miséria, suas tribulações, seu desespero. Somos um pedaço do povo. Quando os sabe-tudo burgueses perguntarem o que realizamos, vocês, homens e mulheres, devem nos salvar da necessidade de dar resposta. Quando eles perguntam o que fizemos, vocês, 15 milhões, devem responder: "Eles nos deram fé mais uma vez, eles nos deram esperança. Eles despertaram uma Alemanha adormecida. Eles organizaram e mobilizaram milhões e os colocaram para marchar. Esses milhões estão em movimento, seguindo as leis da história. Assim como essa pequena seita cresceu de sete homens desconhecidos para um movimento de 15 milhões, também juro a você, esse movimento de 15 milhões crescerá para abranger um povo de 65 milhões.

As festas devem ir! Os hacks políticos devem ser jogados para fora de suas cadeiras. Não daremos perdão. Não permitiremos que a Alemanha caia em desgraça. Devolveremos à Alemanha uma razão de sua existência, um sentido para a vida. É por isso que vocês, homens e mulheres, estão aqui, um exército de duzentos mil. Nunca a capital do Reich viu um movimento popular de tal força. Você veio aqui de todos os lugares. A classe média veio do oeste, os trabalhadores do leste e do norte. Você veio de prédios de apartamentos escuros e sem alegria. Meus camaradas da S.A. estão diante de mim, de cabeça erguida, como se fossem os reis da Alemanha. Eu sei, camaradas, que há alguns entre vocês que não sabem de onde virá a refeição de amanhã. Mostramos a esses partidos materialistas que o idealismo está vivo na Alemanha. Mostramos a eles que, mesmo em meio à fome, sacrifício e necessidade, o povo pode ser mostrado o caminho para o aperfeiçoamento. Prometemos lealdade a este povo. Levantamos solenemente as mãos e prometemos:

Enquanto respirarmos, somos obrigados ao povo alemão. Viemos do povo e voltamos sempre a ele. O povo é o centro de todas as coisas para nós. Nós nos sacrificamos por este povo e, se necessário, estamos prontos para morrer por ele.

Lealdade ao povo, lealdade à ideia, lealdade ao movimento e lealdade ao Führer! Essa é a nossa promessa enquanto gritamos:

Nosso Führer e nosso partido - Salve a vitória!

1932 07 09
Tradução IA

Berlin on 9 July 1932

Artur Queiroz - Angola | Criaturas de um Deus Menor


< Artur Queiroz*, Luanda >

A liberdade só existe se estiverem reunidas todas as condições que lhe dão expressão concreta: Paz, pão, saúde, educação, trabalho, habitação. Isto quer dizer que no planeta há poucos povos livres. Em Angola a paz social é um mito. O pão falta na mesa de uma grande parte da população. Trabalho com salários dignos é raridade em vias de extinção. Habitação está ao nível do casebre de lata e da cubata. Educação é um sonho para milhões de crianças fora do sistema de ensino. Escolas sem professores são um pesadelo para as comunidades. Uma desilusão para estudantes do ensino superior. Estamos malé, malé, malé. 

Angola nasceu socialista. Mas o socialismo só serviu enquanto foi necessário mobilizar todo um povo contra os invasores estrangeiros. O regime socialista e os valores do socialismo permitiram triunfar na guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. 

O socialismo foi arma estratégica para derrotar o regime racista de Pretória e a sua unidade especial UNITA. O socialismo foi a ideia libertadora que voou de Angola para a Namíbia Zimbabwe e África do Sul. Quando o regime de apartheid capitulou e a maioria negra triunfou, Angola abandonou a via do socialismo. Mas o MPLA continuou guardião dos valores socialistas no seu Manifesto. Por isso faz parte da Internacional Socialista. 

Angola aderiu à economia de mercado e à democracia representativa, quando o Presidente José Eduardo dos Santos assinou com Jonas Savimbi o Acordo de Bicesse. Os socialistas deram a mão aos fascistas que sobrevieram ao 25 de Abril e à queda do regime de apartheid. Uma coisa contra natura. Para não se notar muito, a democracia popular e o socialismo ficaram para a História. Ou uma nostalgia para muitos que se bateram contra os invasores estrangeiros na Guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial.

A direcção do MPLA tomou esta decisão e as primeiras eleições multipartidárias, em 1992, provaram que tinha razão. O partido ganhou com maioria absoluta e nenhum concorrente se apresentou ao eleitorado defendendo o socialismo. Mau sinal. 

O oportunismo é a doença cancerígena do capitalismo. Está provado com resultados à vista. Descontando a armadilha que nos foi colocada no caminho entre 1992 e 2002 (rebelião armada de Savimbi) os “anos de paz” ainda não foram suficientes para garantir ao Povo Angolano paz, pão, saúde, educação, trabalho, habitação. Tudo se esvai por obra e graça dos oportunistas que pululam no MPLA, da base ao topo. Mas também em toda a sociedade, até nas igrejas. Em 2017 entrámos em retrocesso. E vamos andando de marcha atrás. Os recuos vão continuar até 2026. 

O congresso do MPLA vai responder se as nossas vidas vão continuar a andar para trás ou finalmente o Povo Angolano vai ter a vida que merece. Convém que ninguém esqueça o essencial. A mudança só é possível se formos capazes de explorar e colocar ao nosso serviço, os recursos naturais. Se apostarmos rudo na educação. Se formos capazes de dar máximo protagonismo á investigação científica. 

A ladainha da pobreza e da miséria não leva a lado nenhum. Os senhores bispos da Igreja bem podem pôr um padre desmiolado a perorar sobre miséria e fome. Podem prometer o céu aos famintos. Podem garantir aos mortos o paraíso no Além. Nada disso adianta. O paraíso tem de ser criado cá, nos nossos becos, nas nossas ruas, nos nossos bairros, nas nossas sanzalas, nas nossas casas. A liberdade religiosa é garantida a todos. Mas não enganem os crentes. 

O papel de enganar está reservado â UNITA. Desde sempre. Nasceu no seio do colonialismo. Savimbi, nas suas cartas de traição, reverenciava e elogiava os chefes fascistas de Lisboa. Os cabos de guerra colonialistas (genocidas). Não hesitou em lutar de armas na mão contra a Independência Nacional. 

O Galo Negro é filho do regime fascista e teve sempre uma prática fascista. Centenas de homens armados da UNITA reforçaram os Flechas da PIDE. Quando os Capitães de Abril derrubaram o regime fascista, a UNITA continuou incólume, ainda que fosse uma organização portuguesa ao nível da PIDE, da Legião ou da OPVDCA, as milícias nazis criadas em Angola depois da Grande Insurreição em 15 de Março 1961. O Povo Angolano foi enganado pelos libertadores de Lisboa. Valores mais altos se alevantaram.

Após o 25 de Abril 1974, a UNITA não hesitou em apoiar os independentistas brancos. Uma vez derrotados, Savimbi foi trabalhar directamente com o regime racista de Pretória. Nazis puros e duros. O chefe do Galo Negro mostrou uma coerência de betão. A UNITA nasceu no seio do fascismo. Cresceu ao serviço dos colonialistas. Serviu de armas na mão o regime racista de Pretória. Pratica a xenofobia. Sempre na senda da traição.

Em Portugal ganhou expressão, um partido que congrega os herdeiros dos fascistas derrubados em 25 de Abril 1974. Chama-se Chega. É um antro de fascistas, racistas e xenófobos. A UNITA tem uma ligação umbilical à Carta de Madrid. Faz parte da internacional Fascista. Tal como o Chega. São partidos irmãos. O MPLA em Portugal é irmão do Partido Comunista e do Partido Socialista. Primo direito do PSD. A UNITA é irmã do Chega. Coerência.

A igreja regressou ao passado mais problemático da sua existência, quando pôs a cruz ao serviço dos colonialistas. Benzeu as espadas que mataram civis inocentes. Participou nas Cruzadas. Ateou as fogueiras da Inquisição. Se Deus existe, vai preciar de milénios para vo perdoar. Agora os senhores bispos mandaram este recado pelo padre Pio: “O MPLA está ultrapassado!” Ai sim? Então digam quem está em condições de governar Angola com políticas actualizadas e políticos mais competentes. Mas digam já. É feio baterem e depois esconderem a mão. Foge-lhes sempre a conversa para o reaccionarismo mais primário.

Pobres criaturas de um deus menor!

* Jornalista

at setembro 22, 2025 

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