quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Manuel Cardoso - José Sócrates não se lembra se o jantar estava Salgado

* Manuel Cardoso

Humoista

Habitualmente, "fui jantar" é uma frase que garante que ocorreu um jantar. Não para José Sócrates

Nesta terça-feira, realizou-se a sexta sessão do julgamento da Operação Marquês. O procurador do Ministério Público questionou José Sócrates sobre um jantar que terá acontecido na casa de Ricardo Salgado. José Sócrates negou a ocorrência desse repasto. Ora, reproduziu-se uma escuta em que José Sócrates faz um convite a Fernanda Câncio, namorada à altura, para um jantar em casa de Ricardo Salgado que teria lugar nessa mesma noite - que a jornalista rejeita. Perante isto, José Sócrates admite ao tribunal que foi "convidado para jantar, mas o jantar não aconteceu".

Até aqui, tudo bem. Todos nós já fomos alvo de cancelamentos de última hora. Ricardo Salgado pode ter entupido uma sanita, pode ter queimado a lasanha, pode ter-se esquecido de acondicionar as litrosas no congelador. O banqueiro pode ter ficado demasiado nervoso com o dilema de pedir ou não pedir a José Sócrates para retirar os sapatos à entrada e calçar uns chinelos felpudos com a forma de animais da savana.

Depois, outra escuta é reproduzida. Desta vez, é uma conversa entre José Sócrates e Manuel Pinho, no dia seguinte ao alegado jantar. "Fui jantar com o teu patrão", terá dito José Sócrates ao ex-ministro da Economia, condenado a dez anos de prisão efectiva por, entre outros crimes, ter sido corrompido por Ricardo Salgado. Habitualmente, "fui jantar" é uma frase que garante que ocorreu um jantar. Não para José Sócrates. No tribunal, indicou que "foi uma forma de falar, porque o jantar não aconteceu."

É uma força de expressão, claro, comum quando nos referimos a compromissos sociais. O leitor poderá experimentá-la em contexto conjugal. Vai concluir que, se disser em casa "Estive no IBIS com a Mónica do departamento de vendas", vai ser obviamente interpretado como "Que disparate. Ele de modo algum esteve no IBIS com a Mónica do departamento de vendas."

José Sócrates é um criativo de novas e desconhecidas ambiguidades semânticas. Quanto foi confrontado, por alturas da detenção, em 2014, com uma escuta em que Carlos Santos Silva lhe perguntava se "podia" mudar a cor do chão da casa em Paris, que era supostamente do amigo, José Sócrates também inventou uma rebuscada natureza polissémica para uma frase muito clara: "Talvez ele até pensasse que… que eu tenho melhor gosto. E é muito importante que se perceba o seguinte: há muitas pessoas que por gentileza… referem… o verbo… poder, em vez de dever." . Um génio.

Apesar do convincente esclarecimento, o procurador não desistiu de provar que o jantar aconteceu. Rómulo Mateus apresentou um documento com a análise da geolocalização do telemóvel de Sócrates, que mostra que este se ligou à antena que cobre a casa de Salgado por volta das 20 horas e que se desligou por volta da meia-noite - portanto, José Sócrates teria estado quatro horas em casa do banqueiro. "Estive lá meia hora", contrapôs o ex-primeiro-ministro em tribunal, revelando que seguiu para uma casa a cerca de 200 metros, que não identificou, alegando tratar-se da sua vida privada.

Há três hipóteses: ou José Sócrates está a mentir, o que seria surpreendente; ou José Sócrates esteve, de facto, quatro horas em casa de Ricardo Salgado, mas este não lhe ofereceu jantar, o que é mais vergonhoso do que qualquer ato de corrupção que pudesse estar a ser combinado; ou José Sócrates esteve de facto só meia-hora em casa de Ricardo Salgado, bebeu um whisky em jejum, despediu-se, percorreu tropegamente o jardim do banqueiro, adormeceu na casota do cão e não se lembra de nada. O que é certo é que José Sócrates saiu da casa de Salgado com fome, tanto é que ainda hoje tenta comer-nos por parvos.

 (Expresso 2025 09 03)


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