* Manuel Cardoso
Humoista
Habitualmente, "fui jantar" é uma frase que garante que ocorreu um jantar. Não para José Sócrates
Nesta
terça-feira, realizou-se a sexta sessão do
julgamento da Operação Marquês. O procurador do Ministério
Público questionou José Sócrates sobre um jantar que terá acontecido na casa de
Ricardo Salgado. José Sócrates negou a ocorrência desse repasto. Ora,
reproduziu-se uma escuta em que José Sócrates faz um convite a Fernanda Câncio,
namorada à altura, para um jantar em casa de Ricardo Salgado que teria lugar
nessa mesma noite - que a jornalista rejeita. Perante isto, José Sócrates
admite ao tribunal que foi "convidado para jantar, mas o jantar não
aconteceu".
Até
aqui, tudo bem. Todos nós já fomos alvo de cancelamentos de última hora.
Ricardo Salgado pode ter entupido uma sanita, pode ter queimado a lasanha, pode
ter-se esquecido de acondicionar as litrosas no congelador. O banqueiro pode
ter ficado demasiado nervoso com o dilema de pedir ou não pedir a José Sócrates
para retirar os sapatos à entrada e calçar uns chinelos felpudos com a forma de
animais da savana.
Depois,
outra escuta é reproduzida. Desta vez, é uma conversa entre José Sócrates e
Manuel Pinho, no dia seguinte ao alegado jantar. "Fui jantar com o teu
patrão", terá dito José Sócrates ao ex-ministro da Economia, condenado a
dez anos de prisão efectiva por, entre outros crimes, ter sido corrompido por
Ricardo Salgado. Habitualmente, "fui jantar" é uma frase que garante
que ocorreu um jantar. Não para José Sócrates. No tribunal, indicou que
"foi uma forma de falar, porque o jantar não aconteceu."
É
uma força de expressão, claro, comum quando nos referimos a compromissos
sociais. O leitor poderá experimentá-la em contexto conjugal. Vai concluir que,
se disser em casa "Estive no IBIS com a Mónica do departamento de
vendas", vai ser obviamente interpretado como "Que disparate. Ele de
modo algum esteve no IBIS com a Mónica do departamento de vendas."
José
Sócrates é um criativo de novas e desconhecidas ambiguidades semânticas. Quanto
foi confrontado, por alturas da detenção, em 2014, com uma escuta em que Carlos
Santos Silva lhe perguntava se "podia" mudar a cor do chão da casa em
Paris, que era supostamente do amigo, José Sócrates também inventou uma
rebuscada natureza polissémica para uma frase muito clara: "Talvez ele até
pensasse que… que eu tenho melhor gosto. E é muito importante que se perceba o
seguinte: há muitas pessoas que por gentileza… referem… o verbo… poder, em vez
de dever." . Um génio.
Apesar
do convincente esclarecimento, o procurador não desistiu de provar que o jantar
aconteceu. Rómulo Mateus apresentou um documento com a análise da
geolocalização do telemóvel de Sócrates, que mostra que este se ligou à antena
que cobre a casa de Salgado por volta das 20 horas e que se desligou por volta
da meia-noite - portanto, José Sócrates teria estado quatro horas em casa do
banqueiro. "Estive lá meia hora", contrapôs o ex-primeiro-ministro em
tribunal, revelando que seguiu para uma casa a cerca de 200 metros, que não
identificou, alegando tratar-se da sua vida privada.
Há
três hipóteses: ou José Sócrates está a mentir, o que seria surpreendente; ou
José Sócrates esteve, de facto, quatro horas em casa de Ricardo Salgado, mas
este não lhe ofereceu jantar, o que é mais vergonhoso do que qualquer ato de
corrupção que pudesse estar a ser combinado; ou José Sócrates esteve de facto
só meia-hora em casa de Ricardo Salgado, bebeu um whisky em jejum, despediu-se,
percorreu tropegamente o jardim do banqueiro, adormeceu na casota do cão e não
se lembra de nada. O que é certo é que José Sócrates saiu da casa de Salgado
com fome, tanto é que ainda hoje tenta comer-nos por parvos.
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