domingo, 21 de setembro de 2025

"Estamos a chegar a um ponto em que a escrita parece toda igual. Antes da IA os estudantes podiam dar erros, mas escreviam com mais alma"

 

Joana Pereira Bastos (Jornalista) e Nuno Botelho (Fotojornalista)

18 setembro 2025 

Qual é a origem de alguns dos nomes e apelidos mais comuns em Portugal? De onde vem a palavra ‘azul’? Por que razão usamos o ‘h’ no início de algumas palavras se não o lemos? Estas são apenas algumas das muitas curiosidades exploradas nos vídeos partilhados por Marco Neves que têm feito sucesso nas redes sociais. Só em agosto tiveram 10 milhões de visualizações Qual é a origem de alguns dos nomes e apelidos mais comuns em Portugal? De onde vem a palavra ‘azul’? Por que razão usamos o ‘h’ no início de algumas palavras se não o lemos? Estas são apenas algumas das muitas curiosidades exploradas nos vídeos partilhados por Marco Neves que têm feito sucesso nas redes sociais. Só em agosto tiveram 10 milhões de visualizações

Marco Neves é linguista e professor na Universidade Nova de Lisboa. Mas são os vídeos que partilha nas redes sociais sobre a origem das palavras e outras curiosidades que fazem dele, atualmente, o maior divulgador de conhecimentos sobre a língua portuguesa em Portugal

Há dois anos, Marco Neves começou a partilhar nas redes sociais vídeos sobre a origem das palavras e outras curiosidades da língua. O sucesso não se fez esperar. Tem quase 380 mil seguidores e 72 milhões de visua­lizações só este ano

O que o levou a fazer estes vídeos?

 Comecei por brincadeira, mas não estava à espera de receber tantos comentários e perguntas. Percebi que, enquanto os livros que escrevo sobre a língua chegam sobretudo às pessoas que já têm interesse pelo tema, os vídeos chegam a outras que nem sequer sabiam que tinham esse interesse, e isso é fascinante.

O que explica o seu sucesso?

O discurso sobre a língua sempre esteve muito tomado por uma perspetiva de dizer o que está certo ou errado do ponto de vista da ortografia e da gramática, o que é muito limitado. Eu tentei mostrar que há outras coisas que interessam às pessoas, como a origem das palavras e dos nomes, as diferenças entre regiões ou entre os vários países que falam português. A língua também é uma maneira de nos identificarmos com os grupos a que pertencemos — a cidade, a re­gião, o conjunto de amigos ou a classe social. Pode parecer um pouco feio falar disto, mas a verdade é que as pessoas identificam-se socialmente pela forma como falam. 

Qual é a dúvida ou pergunta que lhe colocam mais vezes?

 Para surpresa minha, a que recebo mais tem a ver com a pronúncia da palavra “muito”. Porque é que a pronunciamos como se tivesse um ‘n’ ou um til? Na verdade, é a única palavra em que aquele ditongo (‘ui’) é nasal, ainda que não haja nenhuma marca gráfica que o indique. Quem sistematizou a nossa ortografia, em 1911, pôs mesmo uma nota de rodapé a dizer que a palavra ‘muito’, exce­cionalmente, lê-se de uma maneira e escreve-se de outra.

 A forma descontraída como fala destes temas ajuda a combater a ideia de que o português é difícil?

 Desafiar as pessoas para se interessarem pela língua implica mostrar que também se podem divertir com o tema.

 A seu ver, a maneira de ensinar o português nas escolas é apelativa?

Penso que há uma série de conhecimentos técnicos que talvez sejam introduzidos demasiado cedo. Se começarmos pelo telhado, não corre bem. Antes de mais, é preciso criar o gosto por ler e escrever.

Os clássicos dados na escola são bons para fomentar o gosto pela leitura?

Os clássicos fazem parte do nosso património cultural, e a escola tem de continuar a transmiti-los, ainda que possa descobrir formas novas de os abordar. Por exemplo, há muitos tiktoks sobre os clássicos da Jane Austen que fizeram sucesso nas redes, e a escola pode aprender com estas novas abordagens. Por outro lado, pode acrescentar à lista de leituras livros sugeridos pelos próprios alunos.

Muitos livros transformaram-se em fenómenos de vendas graças ao TikTok. Têm qualidade para serem dados nas escolas?

 Dizer que uns livros são bons e outros não são é discutível. Há muitos caminhos para chegar à literatura, e penso que não devemos, à partida, recusar nenhum. O importante é que as pessoas ganhem hábitos de leitura. Sem isso, por mais que saibam gramática, não conseguirão escrever bem. E, na sociedade em que vivemos, saber fazê-lo é essencial.

As pessoas recorrem cada vez mais à inteligência artificial quando têm de fazer um texto. Isso vai diminuir a capacidade de escrita?

 Há esse risco no que toca à criatividade. Estamos a chegar a um ponto em que a escrita parece toda igual. Até já digo, na brincadeira, que tenho saudades de [os meus alunos] me entregarem textos com erros ortográficos. Antes destas ferramentas, os estudantes podiam dar erros, mas escreviam com mais alma. Agora, o registo é muito uniformizado. 

A linguagem usada nos telemóveis e nas redes sociais acabará por provocar alterações no português?

Há uma parte central da língua que não muda muito. Por isso é que conseguimos ler poesia medieval e perceber grande parte dela. Mas, à superfície, está sempre a mudar, e não sabemos o que vai ficar disso. Por exemplo, nos anos 1980 ninguém sabia se o ‘bué’ ia perdurar, mas perdurou, enquanto outras palavras que dizíamos na altura não ficaram. As transformações da língua à superfície são normais e sempre aconteceram. A questão é que hoje, com a internet, são mais rápidas e mais globais. Nos anos 1970/80, se fosse preciso, cada escola tinha o seu calão. Mas agora o movimento é internacional e muitas vezes baseado em palavras inglesas. No entanto, a maior transformação provocada pela internet não é essa.

Qual é?

A internet provocou um uso muito mais intenso da escrita. Quando eu tinha 15 anos, nos anos 1990, nunca comunicava com os meus amigos pela escrita, mas apenas oralmente. Falava ao vivo ou telefonava. A escrita quase só era usada em contextos formais, de escola ou de trabalho. O único uso informal eram as cartas, mas ninguém as escrevia todos os dias. Isso mudou de forma radical. Hoje, as pessoas namoram, conversam ou insultam-se pela escrita. Nunca escreveram tanto como agora, sobretudo do ponto de vista informal. O que ajuda a explicar algumas dificuldades que sentimos ao usar a escrita de forma informal — por isso é que usamos os emojis, para compensar a falta do olhar, da expressão, dos gestos... Esta transformação levará a uma aproximação dos vários registos na escrita, e o formal terá tendência de já não o ser tanto.

“Em poucas décadas, Angola e Moçambique, juntos, terão mais população do que o Brasil, o que significa que o continente onde o português vai ser mais falado será África e não América do Sul”

O que mais o fascina nas línguas?

Perceber que cada palavra tem uma história. Por exemplo, o ‘azul’, que é a minha palavra preferida, vem do persa, por causa das rotas da seda, depois passou pelo árabe, chegou ao latim e finalmente ao português. Outra palavra interessante é ‘jaguar’, que vem de uma língua sul-americana, o tupi, e que usamos em Portugal, enquanto os brasileiros, curiosamente, usam uma palavra latina (‘onça’) para se referirem ao mesmo animal. As palavras revelam muito da história dos povos e dos seus intercâmbios, e isso é fascinante, em todas as línguas. No português, em particular, fascina-me o facto de ser um arquipélago, já que nenhum dos países que fala português faz fronteira com o outro. Isso não acontece noutras línguas e cria uma dinâmica muito própria.

Em que sentido?

O Brasil tem uma dimensão esmagadora, e isso alimenta algum receio e narrativas de superioridade no que diz respeito à língua. “Nós é que sabemos, porque somos 200 milhões”, pensam os brasileiros. “Nós é que sabemos, porque nós é que a inventámos”, dizem os portugueses. Mas, em poucas décadas, Angola e Moçambique, juntos, terão mais população do que o Brasil, o que significa que o continente onde o português vai ser mais falado será África e não América do Sul. O centro de gravidade do português vai mudar.

É verdade que a palavra ‘saudade’ só existe em português?

 Não. O romeno ou o galês, por exemplo, também têm uma palavra para ‘saudade’ e curiosamente, nesses países, também há a ideia de que a palavra só existe nessa língua. Dito isto, é verdade que ‘saudade’ tem uma presença e uma força muito grande na cultura portuguesa que não existe em mais lado nenhum.

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