domingo, 21 de setembro de 2025

Daniel Oliveira - Vítima não é herói

* Daniel Oliveira

18 setembro 2025

O assassínio de Kirk não é encarado como mais um triste episódio de violência política nos EUA, onde 76% foram vítimas da extrema-direita. É uma oportunidade para repetir um guião: semear a violência e a desordem para, quando as sociedades se entregam a esta bebedeira, impor a ordem autoritária

Uma morte é uma morte, e a violência política é sempre um ataque à democracia, mesmo quando a vítima é inimiga da democracia. Isso não permite erguer uma estátua a Charlie Kirk. Porque uma vítima não é obrigatoriamente um herói. Kirk não era um ativista conservador, como tenho lido por aí. Defendia a teoria da “grande substituição”, que os negros viviam melhor quando eram escravos, que as execuções deveriam ser televisionadas, patrocinadas e vistas por menores, que a pena de morte devia ser aplicada a alguns opositores de Trump e que as mortes de crianças em tiroteios escolares eram um custo aceitável de “direitos dados por Deus”.

Não é todos os dias que se vê um assassínio político em direto. Em minutos, o vídeo do disparo já circulava no TikTok, no Instagram, no X, no Facebook, em grupos de WhatsApp... Sangue, morte e likes. Os algoritmos privilegiaram os ví­deos mais grotescos, as músicas mais dramáticas, as teorias da conspiração. Um deles, com milhões de visualizações no TikTok, mostrava a bala a atingir, num plano fechado e numa excruciante câmara lenta, o pescoço da vítima. O autoplay das redes disparou mais rápido do que a bala. Milhões foram apanhados desprevenidos pela violência que lhes tomou os ecrãs. Investigadores citados pela “Wired” garantem que a maior parte dos vídeos não tinha qualquer aviso sobre o seu carácter violento e, vários dias depois, continuavam a circular livremente. Controlar a emoção é controlar a reação.

Em 2020, o FBI travou um plano para raptar Gretchen Whitmer, governadora do Michigan. Em 2022, o marido de Nancy Pelosi teve o crânio fraturado por um invasor da sua casa. Em 2025, bombas caseiras foram lançadas sobre a casa do governador Josh Shapiro. Melissa Hortman, antiga presidente da Câmara dos Representantes do Minnesota, e o seu marido foram assassinados. O senador John Hoffman e a sua mulher foram alvejados. Em todos os casos, com uma fração da atenção agora dada a Charlie Kirk. 76% das vítimas de atentados cometidos por extremistas, na última década, nos EUA, foram mortas por grupos ou indivíduos ligados à extrema-direita. Mas, questionado pela Fox sobre a necessidade de unir o país quando existirão grupos radicais dos dois lados, Trump respondeu que “os radicais da direita são radicais porque não querem ver crime, os radicais da esquerda são o problema, a pior coisa que aconteceu a este país”. Anunciou que vai classificar Antifa e outros grupos de esquerda como terroristas. Como já tem acontecido em relação à imprensa, a instituições públicas, à justiça e às universidades, isto quer dizer censura, repressão e limpeza cultural.

Adam Berry/Getty Images

Em poucos dias, várias pessoas foram despedidas por terem feito publicações desagradáveis sobre Kirk, tendo sido criado um site para expor quem critique o novo mártir. A ABC suspendeu o “Jimmy Kimmel Live” por comentários bastante comedidos do humorista, porque a liberdade de expressão sem limites defendida por Kirk e Trump acaba, como é evidente, em Kirk e Trump. Em cinco dias, o congressista do Wisconsin Derrick Van Orden escreveu 550 tweets sobre uma “segunda Guerra Civil” e apelando à violência contra democratas e jornalistas. Musk passou uma semana a promover a manifestação da extrema-direita que espalhou o caos pelas ruas de Londres e, à distância, defendeu a violência como resposta e a queda de um Governo democraticamente eleito. O assassínio de Kirk não é mais um triste episódio de violência política nos EUA. É, para a extrema-direita, Trump e Musk, uma oportunidade.

Ao sair, há uns dias, do Museu do Centro de Documentação de Munique para a História do Nacional-Socialismo, mesmo ao lado da antiga sede do NSDAP, senti-me oprimido. Pela evidência de que a História não se repete, mas rima. No racismo, na xenofobia, no antifeminismo, na homofobia, na escolha de grupos vulneráveis como fonte de todos os males, no ódio à “arte degenerada”, nos de bem e nos demais, na tibieza da reação, na normalização pública, na infiltração nas instituições, na instrumentalização das forças de segurança, no financiamento de milionários para que a revolta se vire para os de baixo, na cumplicidade da direita conservadora. E é porque a História rima que acabaremos por ter o incêndio do Reichstag, provocado pelos próprios ou por crimes de outros. O guião da extrema-direita, pelo menos desde a ascensão ao poder de Mussolini ou Hitler, foi sempre o mesmo: semear a violência e a desordem para, quando as sociedades se entregam a esta bebedeira, imporem a sua ordem autoritária. Estamos a entrar na segunda fase.

 https://expresso.pt/opiniao/2025-09-18- 

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