* Daniel Oliveira
18 setembro
2025
O assassínio de
Kirk não é encarado como mais um triste episódio de violência política nos EUA,
onde 76% foram vítimas da extrema-direita. É uma oportunidade para repetir um
guião: semear a violência e a desordem para, quando as sociedades se entregam a
esta bebedeira, impor a ordem autoritária
Uma morte é uma
morte, e a violência política é sempre um ataque à democracia, mesmo quando a
vítima é inimiga da democracia. Isso não permite erguer uma estátua a Charlie
Kirk. Porque uma vítima não é obrigatoriamente um herói. Kirk não era um
ativista conservador, como tenho lido por aí. Defendia a teoria da “grande
substituição”, que os negros viviam melhor quando eram escravos, que as
execuções deveriam ser televisionadas, patrocinadas e vistas por menores, que a
pena de morte devia ser aplicada a alguns opositores de Trump e que as mortes
de crianças em tiroteios escolares eram um custo aceitável de “direitos dados
por Deus”.
Não é todos os
dias que se vê um assassínio político em direto. Em minutos, o vídeo do disparo
já circulava no TikTok, no Instagram, no X, no Facebook, em grupos de
WhatsApp... Sangue, morte e likes. Os algoritmos privilegiaram os vídeos mais
grotescos, as músicas mais dramáticas, as teorias da conspiração. Um deles, com
milhões de visualizações no TikTok, mostrava a bala a atingir, num plano
fechado e numa excruciante câmara lenta, o pescoço da vítima. O autoplay das
redes disparou mais rápido do que a bala. Milhões foram apanhados desprevenidos
pela violência que lhes tomou os ecrãs. Investigadores citados pela “Wired”
garantem que a maior parte dos vídeos não tinha qualquer aviso sobre o seu
carácter violento e, vários dias depois, continuavam a circular livremente.
Controlar a emoção é controlar a reação.
Em 2020, o FBI
travou um plano para raptar Gretchen Whitmer, governadora do Michigan. Em 2022,
o marido de Nancy Pelosi teve o crânio fraturado por um invasor da sua casa. Em
2025, bombas caseiras foram lançadas sobre a casa do governador Josh Shapiro. Melissa
Hortman, antiga presidente da Câmara dos Representantes do Minnesota, e o seu
marido foram assassinados. O senador John Hoffman e a sua mulher foram
alvejados. Em todos os casos, com uma fração da atenção agora dada a Charlie
Kirk. 76% das vítimas de atentados cometidos por extremistas, na última década,
nos EUA, foram mortas por grupos ou indivíduos ligados à extrema-direita. Mas,
questionado pela Fox sobre a necessidade de unir o país quando existirão grupos
radicais dos dois lados, Trump respondeu que “os radicais da direita são
radicais porque não querem ver crime, os radicais da esquerda são o problema, a
pior coisa que aconteceu a este país”. Anunciou que vai classificar Antifa e
outros grupos de esquerda como terroristas. Como já tem acontecido em relação à
imprensa, a instituições públicas, à justiça e às universidades, isto quer
dizer censura, repressão e limpeza cultural.
Adam
Berry/Getty Images
Em poucos dias,
várias pessoas foram despedidas por terem feito publicações desagradáveis sobre
Kirk, tendo sido criado um site para expor quem critique o novo mártir. A ABC
suspendeu o “Jimmy Kimmel Live” por comentários bastante comedidos do
humorista, porque a liberdade de expressão sem limites defendida por Kirk e
Trump acaba, como é evidente, em Kirk e Trump. Em cinco dias, o congressista do
Wisconsin Derrick Van Orden escreveu 550 tweets sobre uma “segunda Guerra
Civil” e apelando à violência contra democratas e jornalistas. Musk passou uma
semana a promover a manifestação da extrema-direita que espalhou o caos pelas
ruas de Londres e, à distância, defendeu a violência como resposta e a queda de
um Governo democraticamente eleito. O assassínio de Kirk não é mais um triste
episódio de violência política nos EUA. É, para a extrema-direita, Trump e
Musk, uma oportunidade.
Ao sair, há uns
dias, do Museu do Centro de Documentação de Munique para a História do
Nacional-Socialismo, mesmo ao lado da antiga sede do NSDAP, senti-me oprimido.
Pela evidência de que a História não se repete, mas rima. No racismo, na
xenofobia, no antifeminismo, na homofobia, na escolha de grupos vulneráveis
como fonte de todos os males, no ódio à “arte degenerada”, nos de bem e nos
demais, na tibieza da reação, na normalização pública, na infiltração nas
instituições, na instrumentalização das forças de segurança, no financiamento
de milionários para que a revolta se vire para os de baixo, na cumplicidade da
direita conservadora. E é porque a História rima que acabaremos por ter o
incêndio do Reichstag, provocado pelos próprios ou por crimes de outros. O
guião da extrema-direita, pelo menos desde a ascensão ao poder de Mussolini ou
Hitler, foi sempre o mesmo: semear a violência e a desordem para, quando as
sociedades se entregam a esta bebedeira, imporem a sua ordem autoritária.
Estamos a entrar na segunda fase.
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