quinta-feira, 25 de setembro de 2025

António Santos - Charlie Kirk,vida e morte de um país doente

 

* António Santos 

(Avante, 2025 09 25)

Já todos percebemos para que precipício se dirigem os EUA – paulatinamente, desde a última eleição de Trump, e por vezes de chofre, como foi esta semana, por conveniente ensejo do funeral de Charlie Kirk, um provocador da extrema-direita ultra-montana que uma bala canonizou. Perante a turba fanática em Glendale, no Arizona, Trump, transido de fervor apoteótico foi certeiro no epítome: «Eu odeio os meus oponentes», declarou o presidente em funções dos EUA, «eu não lhes quero bem». 

E eis que milhares de corações graníticos, tão resistentes ao impacto diário de imagens do esquartejamento de crianças palestinas, se comoveram com esta morte individual, que veio para justificar tudo. Charlie Kirk está para o MAGA como Horst Wessel esteve para o partido nazi. Trump prometeu «trazer de volta a religião para a América» e logo ouvimos o secretário de Estado da Guerra (nomenclatura muito mais honesta, reconheça-se), Pete Hegseth, gritar «Deus é rei», ameaçar com «uma tempestade cuja força não compreendem» e explicar que «os nossos oponentes não são nada, não têm nada. São a maldade». A morte de Kirk, desinteressante em si mesma, insere-se na maior espiral de violência política vivida nos EUA desde a guerra civil. É disso que estamos a falar.

No dia seguinte, o Presidente assinava uma ordem executiva que designa o “movimento antifa” como uma organização terrorista, abrindo espaço à criminalização de todas as organizações de esquerda nos EUA. Não é mera retórica: Trump exigiu publicamente que a procuradora-geral, Pam Bondi, prenda todos os magistrados e adversários políticos que alguma vez se atreveram a enfrentá-lo e pondera ordenar, à semelhança de Washington DC e Los Angeles, a ocupação militar de Chicago, Baltimore, Nova Orleães, Nova Iorque, Oakland e outras cidades controladas pelo Partido Democrata.

Acto contínuo, todas as agências federais em cuja proverbial independência se alicerçavam as crença nos “pesos e contra-pesos” da democracia estado- -unidense, revelam-se joguetes na mão de Trump: Brendan Carr, chefe da agência federal para as comunicações, ameaçou retirar a licença audiovisual a qualquer canal que critique o presidente ou ofenda “a memória de Kirk”, despoletando uma vaga de despedimentos de famosos apresentadores de televisão e comediantes. «Querem fazer isto a bem ou a mal?», sintetizou. No mesmo sentido, também esta semana, o Supremo Tribunal confirmou que Trump pode demitir membros da Comissão Federal de Comércio, garantindo assim a gestão presidencial dos monopólios do império.

Em todos os acontecimentos moram partes diferentes de continuidade e de mudana. A tirânica subversão da democracia que Trump opera explica-se, em primeiríssimo lugar, com as características brutais, tirânicas, que essa “democracia” já possuía: um jogo nas mãos dos bilionários e refém da sua boa-vontade para escolher os comediantes certos ou distribuir os despojos do imperialismo com maior ou menor justiça. Kirk deu-nos, na vida como na morte, uma boa síntese da psicose colectiva de uma sociedade niilista, violenta, desumanizada, decadente, em que a vida humana é a mais barata das mercadorias.

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