quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Daniel Oliveira - Violência doméstica: o crime sem “outro”

* Daniel Oliveira 

 A violência doméstica não nos apanha desprevenidos, na rua. Não nos assusta. E não tem classe, credo, cultura ou cor. De tão democrática, conseguimos integrá-la, ignorando as suas vítimas, que tantas vezes nos são próximas. Desde que fique invisível. Quando é mostrado, o país com pouco crime e que fala tanto dele, com tanta violência doméstica e que tão pouco fala dela, olha-se ao espelho

Éimpressionante o poder da imagem mediada. Por vários dias, as televisões transmitiram uma cena de violência doméstica, em que um bombeiro de Machico espancava a mulher à frente do filho de nove anos, que suplicava pelo fim da tortura de que também ele era vítima. Este vídeo, captado graças a uma câmara de segurança, retrata uma cena quotidiana. Uma cena banal num país que passa o tempo a debater o choque com culturas imigrantes que não respeitam as mulheres. O padrão é o de sempre: um homem que ficou “cego” depois de ler umas mensagens e está profundamente arrependido, até voltar a ficar cego.

No ano passado, a APAV apoiou 12 mil vítimas (mais de 80% mulheres), o que corresponde, como sabemos, a uma gota num oceano de silêncio. Mais de metade vivia em situação de violência continuada. Foram assassinadas 22 pessoas (19 mulheres) em contexto de violência doméstica. A PSP e a GNR registaram mais de 30 mil queixas, mais outra gota no oceano. Basta pensar que, das 12 mil vítimas apoiadas pela APAV, só metade apresentou queixa – são condenados, anualmente, de dois a quatro mil agressores. E, ao contrário do que já pensámos, as coisas não estão com ar de melhorar. 66% dos jovens que já namoraram dizem ter sofrido, pelo menos, uma forma de violência no namoro.

A violência doméstica é o crime violento mais comum em Portugal. No entanto, não povoa o discurso dos políticos que vivem do medo e do alarmismo nem a comunicação social que faz disso negócio. Porque não permite alimentar o ódio ao outro: ao que vive no bairro social, ao cigano, ao imigrante. É um crime democrático. Cometido pelos nossos vizinhos, familiares, gente de todas as classes e credos, culturas e cores.

Nem é um crime cometido pelo "outro", nem nos pode apanhar desprevenidos, na rua. Não povoa os nossos medos, não nos assusta. Não alimenta o terror do cidadão comum. De tão democrático, conseguimos mantê-lo integrado no nosso quotidiano, ignorando as suas vítimas, que tantas vezes nos são próximas. Desde que, claro, fique invisível. Quando é mostrado, num país com pouco crime e que fala tanto dele, com tanta violência doméstica e que tão pouco fala dela, acordamos para o nosso quotidiano, para os nossos verdadeiros "valores", sem estrangeiros, pobres ou ciganos para culpar. E o espelho é lixado.


(Expresso 2025 09 03)

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