* Daniel Oliveira
A violência doméstica não nos apanha desprevenidos, na rua. Não nos assusta. E não tem classe, credo, cultura ou cor. De tão democrática, conseguimos integrá-la, ignorando as suas vítimas, que tantas vezes nos são próximas. Desde que fique invisível. Quando é mostrado, o país com pouco crime e que fala tanto dele, com tanta violência doméstica e que tão pouco fala dela, olha-se ao espelho
Éimpressionante o poder da imagem mediada. Por vários dias,
as televisões transmitiram uma cena de violência doméstica, em que um
bombeiro de Machico espancava a mulher à frente do filho de nove anos, que
suplicava pelo fim da tortura de que também ele era vítima. Este vídeo,
captado graças a uma câmara de segurança, retrata uma cena quotidiana. Uma cena
banal num país que passa o tempo a debater o choque com culturas imigrantes que
não respeitam as mulheres. O padrão é o de sempre: um homem que ficou “cego”
depois de ler umas mensagens e está profundamente arrependido, até voltar a
ficar cego.
No ano passado, a APAV apoiou 12 mil vítimas (mais de 80%
mulheres), o que corresponde, como sabemos, a uma gota num oceano de silêncio.
Mais de metade vivia em situação de violência continuada. Foram assassinadas
22 pessoas (19 mulheres) em contexto de violência doméstica. A PSP e a
GNR registaram mais de 30 mil queixas, mais outra gota no oceano.
Basta pensar que, das 12 mil vítimas apoiadas pela APAV, só metade apresentou
queixa – são condenados, anualmente, de dois a quatro mil agressores. E, ao
contrário do que já pensámos, as coisas não estão com ar de melhorar. 66% dos
jovens que já namoraram dizem ter sofrido, pelo menos, uma forma de
violência no namoro.
A violência doméstica é o crime violento mais comum em
Portugal. No
entanto, não povoa o discurso dos políticos que vivem do medo e do alarmismo
nem a comunicação social que faz disso negócio. Porque não permite
alimentar o ódio ao outro: ao que vive no bairro social, ao cigano, ao
imigrante. É um crime democrático. Cometido pelos nossos vizinhos, familiares,
gente de todas as classes e credos, culturas e cores.
Nem é um crime cometido pelo "outro", nem nos pode apanhar desprevenidos, na rua. Não povoa os nossos medos, não nos assusta. Não alimenta o terror do cidadão comum. De tão democrático, conseguimos mantê-lo integrado no nosso quotidiano, ignorando as suas vítimas, que tantas vezes nos são próximas. Desde que, claro, fique invisível. Quando é mostrado, num país com pouco crime e que fala tanto dele, com tanta violência doméstica e que tão pouco fala dela, acordamos para o nosso quotidiano, para os nossos verdadeiros "valores", sem estrangeiros, pobres ou ciganos para culpar. E o espelho é lixado.
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