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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Marta Pinho Alves - No cinema e na rua, a luta continua
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Viriato Soromenho Marques - A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL
«A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL! MAS SEREMOS CAPAZES DE A IMPEDIR?»
* Maria João Caetano
2025 12 14
O filósofo Viriato Soromenho Marques aponta o dedo aos EUA e à Europa pela forma como trataram a Rússia e subestimaram Vladimir Putin. E espera que no meio da escalada a que temos vindo a assistir, os líderes políticos de hoje tenham a inteligência que outros tiveram no passado e saibam dar um passo atrás. Até porque, os desafios que a nossa civilização enfrenta vão muito além da possibilidade de uma guerra: "A guerra nuclear será um ataque cardíaco. Por outro lado, a esclerose generalizada, que é um processo de morte, mas mais lento, é a crise ambiental"
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«Eu fiz as
contas. No dia 12 de janeiro do próximo ano, a guerra na Ucrânia, a tal operação
especial, como dizem os russos, terá mesma duração da guerra da Alemanha com a
Rússia na Segunda Guerra Mundial. São 1.418 dias. De 22 de junho de 1941,
quando Hitler invade a União Soviética até 8 de maio de 1945." No dia 12
de janeiro de 2026, completam-se 1.418 de guerra da Ucrânia. "E não me
parece que neste momento a Rússia esteja esgotada", diz. "Tudo indica
que este esforço de guerra está a acontecer com economia de meios e com
economia de baixas", diz Soromenho Marques. Podemos estar numa escalada
que obrigue a Rússia ou a desistir ou então a passar para a fase seguinte, com
as armas nucleares, antecipa. "A verdade é que não temos nenhum exemplo de
uma guerra nuclear anterior entre potências nucleares. O meu receio é que ninguém
saiba controlar esta escalada».
Foi no passado
dia 12, numa noite de inverno, fria e chuvosa, que um grupo de
"corajosos", como lhe chamou Viriato Soromenho Marques, se juntou no
auditório da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva para o debate "Guerra
e paz: respostas, causas e soluções de hoje", o último dos três debates do
ciclo "Uma ideia de harmonia", comissariado pela jornalista Alexandra
Carita. Na mesa estava também Tatiana Moura, diretora da plataforma
masculinidades.pt e investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra. Mas foi o filósofo e professor da Universidade Nova de Lisboa que,
inegavelmente dominou a conversa.
Em 1983, em
plena Guerra Fria, Viriato Soromenho Marques era um jovem a fazer inter-rail e
passou algum tempo em casa de um amigo em Witten, na Alemanha. A estadia
coincidiu com muitas manifestações pela paz devido à crise dos "euromísseis".
"Nessa altura, a tensão entre o Pacto de Varsóvia e a NATO tinha crescido
de forma exponencial. Novos mísseis estavam a ser colocados, quer no lado do
lado soviético, quer do lado norte-americano e europeu", recorda o filósofo
que tem atualmente tem 68 anos. "Só que nessa altura existia uma literacia
sobre guerra nuclear que hoje está completamente ausente", diz, lembrando,
por exemplo, que a mãe do amigo, que era dona-de-casa, "saía da sua vida e
ia para a rua protestar"; ou ainda que havia uma canção "muito medíocre"
que nesse verão foi um sucesso na Alemanha, intitulada "Besuchen Sie
Europa (solange es noch steht)" - "Visita a Europa enquanto ela ainda
lá está", que falava precisamente dessa ideia de que "isto vai acabar
tudo em breve".
Terá sido esta
vivência que o despertou para o problema da guerra na Europa. Depois dessa
viagem, Viriato começou a pesquisar e a fazer entrevista e, em 1985, publicou o
livro "Europa, o risco do futuro: a incerteza estratégica dos anos
80". O livro foi publicado duas semanas antes de Gorbachev ter tomado
posse, iniciando o caminho para o fim da Guerra Fria.
"Isto que
está a acontecer agora [na Europa], para mim, tem 42 anos. Isto não começou no
dia 24 de fevereiro de 2022", diz, concluindo: "Para mim, isto é um
pesadelo, porque eu, nessa altura, já era ambientalista e olhava para estas
duas grandes ameaças. Por um lado, o ataque cardíaco. A guerra nuclear será um
ataque cardíaco. Por outro, a esclerose generalizada, que é um processo de
morte, mas mais lento, que é a crise ambiental", diz, introduzindo aqui um
tema que é essencial no seu pensamento. Mas já lá vamos. Para entender o que se
passa hoje na Europa o professor recua, precisamente, até à Guerra Fria e ao
modo como esta terminou. E talvez, até, recuar um pouco mais, e perceber porque
é que existem guerras.
AS GUERRAS SÃO
EVITÁVEIS?
"Em toda
guerra existe violência, mas nem toda violência é guerra. Isto é importante
porque a violência pode ser exercida pelo indivíduo, está relacionada,
individualmente, com a agressividade. Mas a condição fundamental para a guerra é
a existência de uma entidade artificial, que é o estado - uma estrutura que é
uma pessoa coletiva, uma estrutura sem paixão, que decide do uso da violência bélica",
explica Viriato Soromenho Marques.
É por isso que
para perceber as guerras é preciso entender o conceito de estado soberano.
"A guerra e a paz entre nações está também associada à teoria do contrato
social, que se parece um pouco com a física atómica", diz. "Temos os
indivíduos que são pequenos átomos e que depois se organizam em moléculas que são
sociedades." Na ordem política e na ordem legal, existe um poder de sanção.
Mas, neste aspeto, "a analogia com a sociedade das nações é imperfeita.
Porque na sociedade das nações não existe esse poder de sanção, é um direito
imperfeito. Isto é, podem existir tribunais internacionais. Há tratados. Há uma
Organização das Nações Unidas. Mas não existe um poder comum capaz de aplicar a
sanção. As grandes potências não são sancionáveis."
Thomas Hobbes,
pensador doa séculos XVI XVII, dizia que "os príncipes e os Estados estão
permanentemente em estado de natureza, ou seja, preparados para a guerra. E não
há nenhum tratado, não há nenhuma lei internacional que leve os príncipes a
dormir descansados. É por isso que têm exércitos permanentes. Porque há uma
desconfiança permanente".
O professor
cita ainda o general prusso Carl von Clausewitz ("uma espécie de Newton da
guerra"), que no século XIX escreveu a obra "Vom Krieg - Da
Guerra", que é, nas suas palavras, "o grande livro contemporâneo
sobre a guerra": "A guerra é uma ação em que a violência é usada como
instrumento de objetivos políticos". Clausovitz diz mais: "A guerra é
a continuação da política por outros meios" - uma frase que já todos
ouviram. O que é que isto significa? "A guerra tem apenas uma gramática, a
política tem a lógica. E deve ser a política que comanda a guerra.
Evidentemente que para fazer a guerra é preciso tecnologia, é preciso treino,
etc. Mas isso é a gramática. E no limite, se fosse possível, atingir esses
objetivos sem a violência, não haveria guerra. Mas sem a violência não há coação.
Agora, o que pode acontecer é que, perante ameaça do uso da força militar, um
Estado pode recuar e conceder. Clausevitz considera que quando a diplomacia
falha é muito improvável que se consiga retomá-la sem o sucesso das
armas."
"Na guerra
existe uma lógica essencialmente de custo-benefício. O pensamento estratégico
militar é um pensamento de custo-benefício. É um pensamento instrumental. A
ideia de uma guerra com as luvas brancas não existe", afirma o filósofo. Não
existe guerra sem danos colaterais e sem crimes de guerra. O que os políticos
que tomam a decisão de iniciar ou entrar numa guerra fazem é tentar avaliar se
vale ou não a pena. Isto, dito assim, pode parecer cruel, mas não é novo.
"Os aliados, que venceram a Alemanha nazi, também cometeram imensos
crimes. Hamburgo foi destruída em julho de 1943 e 40 mil pessoas foram mortas
com bombas de fósforo. Antes das bombas atómicas, que foram crimes de guerra
também, porque visaram populações civis, tivemos 700 mil japoneses que foram vítimas
de bombardeamentos convencionais pela aviação americana. Isso são crimes de
guerra", sublinha.
UMA GUERRA
IRRACIONAL – EM QUE TODOS SAEM DERROTADOS
"Hoje em
dia, a guerra que podemos ter será uma guerra absolutamente irracional",
diz Viriato Soromenho Marques. Porquê? Segundo Clausevitz, a guerra é até 1945,
tinha violência, mas tinha racionalidade. "Ou seja, havia sofrimento, mas
havia a possibilidade da vitória. Os povos perdiam milhões de vidas, mas
atingiam o objetivo e havia vitória. Hoje, é uma das características da guerra
contemporânea, é a possibilidade de uma guerra em que todos saem
derrotados".
Durante os 40
anos da Guerra Fria, houve um consenso entre os dois lados, explica o
professor. A crise dos misseis de Cuba em outubro de 1962, em que o mundo
esteve à beira de uma guerra nuclear, "fez com que tanto Krushov como o
Kennedy percebessem o que seria a irracionalidade da guerra", diz
Soromenho Marques. "O que Kennedy fez a seguir a outubro de 62 foi
fundamentalmente um processo de construção da paz, em colaboração com a União
Soviética: a criação do telefone vermelho, a proibição de testes nucleares e
outras ideias que ele tinha para a frente, de cooperação alargada com a União
Soviética e com os países que estavam no Pacto de Varsóvia e que o assassinato
impediu. No discurso que fez em Washington em 10 de junho de 63, Kennedy dizia
o seguinte: 'Enquanto defendem os seus próprios interesses vitais, as potências
nucleares devem evitar os confrontos que levam o adversário a optar entre uma
retirada humilhante ou uma guerra nuclear. "Adotar esse tipo de atitude,
ou seja, querer insistir numa escalada em potências nucleares, na era nuclear,
seria apenas uma prova da falência da nossa política ou de um desejo coletivo
de morte'."
Ronald Reagan,
que foi presidente dos EUA durante a Guerra Fria, "acolheu positivamente,
com entusiasmo, Gorbachev", diz o professor, contando algo que percebeu ao
ler as memórias do presidente: "Em novembro de 1983, Reagan foi um dos
primeiros americanos a ver até o filme 'The Day After' [filme ficção científica
que imagina o que aconteceria após uma guerra nuclear]. E ele ficou
aterrorizado com o que viu. É interessante que em janeiro de 84 ele faz um
discurso que causou surpresa. Enquanto o discurso do ano anterior tinha sido o
discurso do "Guerra da Estrelas", vamos criar um sistema no espaço, o
discurso de janeiro de 84 dizia que temos de evitar a autodestruição".
O FIM DA UNIÃO
SOVIÉTICA: UMA OPORTUNIDADE DESPERDIÇADA
A Guerra Fria
prolongou-se, com esse jogo de contenção de forças, até à Perestroika. Viriato
Soromenho Marques considera que a transição democrática da União Soviética, com
a "dissolução pacifica do Pacto de Varsóvia", "é o único caso
que temos na História em que um sistema bipolar acaba porque o outro lado
desiste".
Inicialmente,
recorda o filósofo, "houve imensa vontade de estabelecer relações, de
apoiar economicamente a transição da Rússia. O que eles fizeram foi uma coisa
brutal". Mas logo se percebeu que os interesses económicos se iriam
sobrepor aos bem político. Passou-se "de uma economia planificada que não
funcionava, para uma economia de mercado que foi pilhada. O que aconteceu no
tempo do Ieltsin foi uma catástrofe para a Rússia. A Rússia perdeu cinco anos
de esperança de vida. O desemprego galopou. A mortalidade infantil aumentou
imenso. O alcoolismo explodiu. A criminalidade, as mortes violentas. Depois, a
formação dos oligarcas, a privatização com as grandes companhias americanas por
trás. No fundo, a Rússia era um cadáver gigantesco, 17 milhões de quilómetros
quadrados, que estava ali para ser devorado", diz Soromenho Marques.
"Foi uma
tragédia. Não só económica, mas também política." A Europa poderia ter-se
tornado um aliado, um parceiro. "Era preciso criar uma relação de confiança
mútua, e isso não aconteceu. Até porque era preciso ter um inimigo, como é que
nós vendíamos a expansão da Nato se não tivéssemos um papão do lado lá?"
"O
analfabetismo e russofobia é também uma coisa que nos está a envenenar.
Envenena-nos a alma e corrói o pensamento", afirma Soromenho Marques.
QUANDO PUTIN
DEIXOU DE SER UM AMIGO – AS ORIGENS DA GUERRA DA UCRÂNIA
Soromenho
Marques diz que é preciso "admitir o fracasso de todas as políticas que
começaram em 1991, quando os Estados Unidos recusaram integrar a Rússia no
sistema internacional" e decidiram deixar a Rússia de foram da Nato.
"Esta guerra [na Ucrânia] começou porque a Rússia não tinha garantias de
segurança. Pediu primeiramente que a Nato não se alargasse, mas a Nato
alargou-se. Depois pediu para não se alargar para zonas que são estratégicas,
porque as grandes potências têm zonas de segurança, a que se chama zonas de
influência", e, mais uma vez, isso não acontece. Em 2008, em Bucareste, a
Nato ofereceu um convite à Ucrânia. "E Putin, que nessa altura era
convidado a ir às reuniões da Nato, fez um grande discurso a explicar porque é
que isso era uma coisa que não podia ser aceite pela Rússia. Então, Sarkozy e
Merkel falam com Bush e decidem arrastar isso para não arranjar problemas. As
coisas foram-se arrastando assim."
"O ponto
em que as coisas realmente se transformaram foi com a Praça Maidan. Foi aí que
as coisas se tornaram mesmo azedas", diz o filósofo. "Esta guerra
começou aí. A Operação Especial começou na Praça Maidan. O Viktor Yanukovych
foi eleito em eleições reconhecidas por todos os observadores, incluindo os
nossos, da União Europeia, que estiveram lá. A Victoria Nuland, que é a
vice-secretária de Estado, esteve pessoalmente a comandar as operações de
montagem da Praça Maidan. Inclusive ela, no inverno, em dezembro de 2013, faz
uma pequena intervenção, em que chega a dizer que até agora o nosso
investimento na Ucrânia foi de cinco milhões de dólares. Em 2024, o historiador
ucraniano Ivan Katchanovski publicou um livro notável a explicar a Praça
Maidan."
"A
Alemanha foi seduzida pela possibilidade de também tirar algum partido da Ucrânia.
E, além disso, ninguém acreditava que a Rússia tivesse capacidade para fazer
esta guerra. O Biden dizia, em 2017: os russos engolem tudo o que lhe pusermos
pela garganta abaixo", lembra Soromenho Marques. Em 2019, ainda Merkel
estava no poder, e a Ren Corporation, que é o principal think tank da política
externa americana, publica um livro que se chamava "Extending
Russia". Esses analistas diziam que se deviam "criar dificuldades em
muitos pontos à Rússia para que ela se parta. E um dos objetivos do Extending
Russia é impedir a ligação entre a Alemanha e a Rússia. Não só energética.
Avisadamente, eles percebiam que uma boa relação entre a Alemanha e a Rússia ia
causar problemas a quem queria continuar a ser o dono do mundo".
O FIM DO DOMÍNIO
AMERICANO E AS NOVAS RELAÇÕES DE PODER .
"Os
Estados Unidos estão, nesta fase, a passar de interveniente principal, para
algo diferente", afirma Soromenho Marques. "Reconhecem que já não têm
capacidade para aquele pesadelo que foi o unipolarismo. Biden foi o último
representante da ideia tonta de que era possível os Estados Unidos dominarem o
mundo e imporem, com recompensas e com violência e com sanções, o domínio. Hoje
estamos num mundo completamente diferente."
E explica:
"Do ponto de vista económico, os Estados Unidos são uma sombra do que
foram. No auge do poderio americano, no tempo do Truman, 50% do produto interno
bruto era americano. Hoje, os Estados Unidos têm uma percentagem muito menor,
estamos a falar de 20%, 21%. para ser otimista. Por outro lado, do ponto de
vista científico, a situação é absolutamente avassaladora. No ano passado, um
instituto australiano publicou um estudo que era uma análise de 20 anos de
inovação científica no mundo, em 64 tecnologias de ponta. E o contraste é
absolutamente esmagador. Em 2003, os Estados Unidos dominavam 61 das 64. E a
China dominava 3. Em 2023, a China domina 57 das 64. E os Estados Unidos
dominam as outras 7."
"Ou seja,
o que temos hoje é um novo sistema internacional. Estamos numa fase horrível
que é a transição. As transições são sempre terríveis, mesmo na vida dos indivíduos",
diz o professor. Mas há algo positivo nesta situação, que é o facto de os
Estados Unidos "já não considerarem a China como um inimigo com o qual
poderiam entrar em guerra em 15 anos, mas como um competidor. Há uma diferença
entre competidor e inimigo".
Já em relação à
Rússia, na Estratégia de Segurança Nacional (ESN) os EUA assumem o objetivo de
"estabilizar as relações com a Europa, nomeadamente com a Rússia. O que não
parece uma coisa idiota, parece uma coisa até bastante sensata. Não sei como é
que é possível alguém que conheça um pouco da situação atual e da situação histórica
pensar que é possível excluir a Rússia do sistema internacional e do sistema
europeu, para mim é uma ideia completamente absurda", afirma.
E A EUROPA NO
MEIO DE ISTO TUDO?
"Estamos a
viver um desastre do projeto europeu", diz Viriato Soromenho Marques,
lembrando que em 2014 publicou livro sobre a crise do euro que se chamava
"Portugal na queda da Europa". "A tese era que a crise de 2008 não
foi uma crise das dívidas soberanas, como se dizia, foi uma crise do euro. O
euro foi construído sem qualquer mecanismo que o tornasse uma moeda funcional,
não era uma moeda federal. O euro foi criado sem sequer um sistema de prevenção
das crises bancárias, por exemplo. Nada. E os países endividaram-se nessa
altura para socorrer o sistema financeiro, os bancos, que estavam lá soltos. Os
bancos nessa fase inicial faziam o que queriam. Falhámos. O Euro podia ser a
primeira etapa do federalismo europeu, e nós falhámos. Em 2014, a minha
perspetiva era que estávamos a entrar num processo de decadência europeia, de
queda".
"Só que
agora já estamos dentro da queda", admite, dando como exemplo máximo a
forma como a Europa está a conduzir esta guerra na Ucrânia. "Primeiro: não
temos nenhuma providência, nenhum artigo que conceda os poderes que a senhora
von der Leyen se arrogou para funcionar como se fosse a comandante suprema de
uma coisa que não existe, que são as Forças Armadas Europeias. Segundo: existe
uma confusão total entre a União Europeia e a NATO. Chegámos a este ponto.
Confundimos totalmente. Terceiro: o uso de procedimentos, e dia 18 de dezembro
vamos ver se isto vai acontecer ou não, procedimentos que vão conduzir a uma
situação dramática".
Depois de na
passada sexta-feira a União ter aprovado, por maioria e com os votos contra da
Hungria e Eslováquia, uma decisão para manter os ativos russos imobilizados
indefinidamente no espaço comunitário, o tema volta a ser debatido esta semana
pelos ministros europeus dos Negócios Estrangeiros que vão decidir se esse
dinheiro pode ser usado para o empréstimo de reparações à Ucrânia. "Se
isso for roubado à Rússia e entregue à Ucrânia, eu acho que somos nós, os
europeus, que não depositamos mais o nosso dinheiro aqui, são também os
estrangeiros que cá têm dinheiro que vão para outro sítio", antecipa o filósofo.
"A gente do mundo árabe, a gente da África, a gente da América Latina, os
magnatas, etc., vão para outro sítio. E também os portugueses. Vão transformar
esses euros em ienes e vão pô-los na China, ou transformam-nos dólares e põem
nos Estados Unidos."
A ESCALADA
ACTUAL: "NÃO PODEMOS. COMO CIDADÃOS, ACEITAR ESTE DISCURSO DA
INEVITABILIDADE DA GUERRA”
Chegamos,
assim, aos dias de incerteza em que vivemos. Viriato Soromenho Marques
"colecionou" uma série de frases proferidas nos últimos dias por
"altos responsáveis políticos e militares da nossa Europa" e que
mostram bem o estado do mundo:
• 3 de
Novembro: Boris Pistorius, ministro da defesa da Alemanha, falando sobre o
plano de reconstrução armamentista da Alemanha, que está outra vez na corrida
dos armamentos, está a preparar um sistema que permita a rápida passagem para
leste, ou seja, em direção à Rússia de 800 mil soldados da NATO, disse: "Há
quem fale que a guerra vai ser em 2029. Há outros que dizem que vai ser em
2028. Mas há alguns que dizem mesmo que gozámos em 2025 o último verão em
paz".
• 16 de
novembro: o general Fabien Mandon, que era conselheiro do presidente Macron, da
França, diz que "temos de aceitar perder os nossos filhos, sofrer
economicamente".
• 3 de
Dezembro: o almirante Giuseppe Cavo Dragone, chefe do Comité Militar da Nato,
disse ao Financial Times que a NATO deveria considerar a possibilidade de uma ação
preventiva contra a Rússia.
• 11 de
Dezembro: Mark Rutte, secretário-general da NATO, diz que "depois da Ucrânia
nós somos o próximo alvo da revolução. E nós precisamos estar prontos. Devemos
estar preparados para uma guerra da escala dos nossos avós e dos nossos bisavós.
Preparados para a possibilidade de milhões de mortos" e dizendo que, por
isso, nós precisamos gastar 5% do PIB na corrida ao armamento.
• Entretanto,
Vladimir Putin, interrogado numa conferência de imprensa, a seguir às declarações
de Dragone, diz: "Se a Europa começar subitamente, o tal ataque
preventivo, uma guerra contra nós, eu penso que essa guerra acabará
rapidamente. Isso não será a Ucrânia. Com a Ucrânia nós estamos a atuar com
precisão cirúrgica, cuidadosamente, isto não é uma guerra no sentido direto,
moderno da palavra. Se a Europa começar uma guerra contra a Rússia, em breve,
Moscovo não terá ninguém com quem negociar."
•
Perante isto,
Soromenho Marques questiona-se até que ponto é que aquela ideia de Kennedy, que
é fruto do conceito da "destruição mútua assegurada", ainda estará
atualizada. "Na altura de Kennedy existiam 70 mil armas militares. Hoje
existem à volta de 13 mil. Mas 13 mil são suficientes para dar cabo de tudo. E
eu pergunto-vos, será que estas pessoas partilham desta preocupação?",
pergunta.
E ainda, mais
incisivo: "A questão que me parece prioritária é não aceitarmos, como
cidadãos, este discurso da inevitabilidade da guerra", diz.
Na sua
perspetiva, "uma guerra em que fossem usadas armas nucleares representaria
o fim da história". "Mas vamos pensar que haverá ainda alguma sombra
de cuidado com o futuro, e alguma inteligência também, e que não vamos entrar
por aí", diz, recorrendo ao que resta do seu otimismo.
"QUAL A
POSSIBILIDADE QUE TEMOS DE SOBREVIVER A ISTO? (E «ISTO» NÃO É SÓ A GUERRA NA
UCRÂNIA)”
"Este
conflito [na Ucrânia] é o centro do vulcão. Claro que temos conflitos noutros
lugares no mundo, mas a Europa é, mais uma vez, o centro do vulcão e é onde, de
facto, a situação pode ficar completamente fora de controlo. Mas eu pergunto:
será apenas na guerra que estamos fora do controlo? Não me parece."
Viriato Soromenho Marques tem um olhar mais abrangente. "Nós, europeus,
temos muito orgulho na maturidade, com todo o contributo para a ciência e para
a tecnologia moderna, mas realmente os grandes desígnios da modernidade, que
eram a emancipação humana, que era, como no tempo do grefos, vencer um destino,
uma moira, a que estávamos condenados pelos deuses, ou, como dizia depois
Descartes, vencer a vida curta, prolongar a vida humana, impedir as tragédias,
o sofrimento - será que conseguimos isso? A verdade é que nós construímos um
aparato gigantesco para combater esse destino natural, mas temos uma crise
existencial na área do ambiente. Portanto, eu colocaria o nosso debate sobre a
guerra e a paz no quadro de uma interrogação ainda mais penetrante: qual é a
possibilidade que temos de sobreviver a isto? Onde é que erramos? E teremos a
coragem para primeiro identificar as causas fundamentais e depois agir em
consequência? Ou seja, sermos capazes de fazer a renúncia a tanta coisa a que
nos acostumamos a considerar fundamentais?"
A verdade, diz,
"é que estamos numa situação em que, perante os desafios existenciais que
temos, nomeadamente o facto de estarmos a viver num planeta que estamos a
destruir, que estamos a devorar", deveríamos estar preocupados com outros
problemas. "Quando começou a guerra na Ucrânia, surgiu um artigo chamado
'Uma guerra no convés do Titanic'. Nós temos que que fazer o possível para que
ele não afunde. E neste momento não vemos muita gente que esteja preocupada com
isto", lamenta.
Na sua opinião,
seria necessária "uma visão integrada". Em primeiro lugar, deveríamos
"tomar consciência da gravidade da situação. Já não é evitar, não, é de
fazer uma adaptação que permita a continuação da história humana e que permita
uma visão de reconstrução do modo como as nossas instituições, nomeadamente a
nossa economia, que é uma economia primitiva. Nós precisamos de uma economia
ecológica, ou seja, de uma economia que considere que é um subsistema da
ecologia e não o contrário".
Cícero dizia
que «a salvação do povo seja a suprema lei».
«Quando a gente
fala em salvação do povo, está a falar fundamentalmente da vida das pessoas e
da fazenda das pessoas, do que as pessoas têm. A minha preocupação é com a
nossa vida. Porque acho que a fazenda já está perdida».
Wyndham Lewis, «The Waste Land», sobre o poema de T.S. Eliot
https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/nao-podemos-aceitar-este-discurso-da-inevitabilidade-da-guerra-a-europa-esta-a-beira-de-uma-guerra-irracional-mas-seremos-capazes-de-a-impedir/20251215/693fe7afd34e3caad84c62ea
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
João Gomes - Marias Cachuchas sem sorte
Paulo Baldaia - É mesmo por uma questão política que a greve geral faz sentido
Opinião
* Paulo Baldaia
(Expresso 2025 12 08)
A revisão da
Lei do Trabalho insere-se numa questão ideológica mais profunda em que o
executivo dá uma exagerada protecção a quem detém o capital e os meios de
produção, enquanto engana com umas migalhas de IRS a classe média trabalhadora,
deixando os trabalhadores mais pobres entregues ao seu próprio destinob
Épreciso
começar por dar razão a Luís Montenegro sobre as motivações dos sindicalistas
para convocar uma greve geral - esta greve é mesmo política e as razões
para o protesto são graves. Contra a legislação proposta pelo
governo há, aliás, políticos de todos os partidos, inclusive dos partidos
que se preparam para a aprovar no Parlamento e até uma vice-presidente da
direcção do PSD, deixando que Montenegro fique na frágil posição de quem,
como chefe do governo, atira a pedra e, como líder do partido, esconde a mão. A
“gana” é tanta porque a ministra do Trabalho considera que a legislação actual
é desequilibrada a favor dos trabalhadores e um banqueiro assina por baixo, e
vai mais longe em relação aos malandros dos trabalhadores, afirmando que “a lei
protege quem não quer fazer nada”. É o supremo desplante!
A vontade de
legislar contra os interesses dos trabalhadores, assumida por Rosário Palma Ramalho, não cai do
céu aos trambolhões mas não foi anunciada no programa eleitoral, como agora
pretende dizer o governo. Bem pelo contrário, há coisas que são ditas
nesse programa que são o oposto da proposta governamental. Já lá vamos.
LUTA DE
CLASSES
Por agora, faço
um desvio de rota para explicar porque entendo que esta revisão da Lei do
Trabalho - que privilegia quem detém os meios de produção face à força de
trabalho - se insere numa questão ideológica mais profunda. Vejamos
um exemplo flagrante de exagerada protecção a quem detém o capital,
enquanto se dão umas migalhas de IRS à classe média trabalhadora, deixando os
trabalhadores mais pobres entregues ao seu próprio destino: o conceito
de renda moderada e o que ele implica no rendimento disponível de inquilinos e
arrendatários.
Salta à vista
de todos que o acréscimo de rendimento dos trabalhadores inquilinos, fruto da
descida do IRS, foi largamente comido pela subida dos custos com a habitação,
enquanto que o rendimento dos senhorios acompanhou a subida exponencial das
rendas. Apliquemos a regras de três simples:
1 -
se, para a prestação ou renda de casa, os especialistas colocam nos 30% do
rendimento líquido de uma família o limite a partir do qual começa a haver uma
sobrecarga habitacional.
2 -
se o governo considera o limite de 2300 euros para uma renda moderada e isso
significa que, para evitar a sobrecarga habitacional, o rendimento familiar
líquido deve rondar os sete mil euros.
3 -
Se uma família de trabalhadores, para aquele rendimento paga cerca de 30% de
IRS e um senhorio que obtenha o mesmo rendimento bruto paga apenas 10%.
Qual é o
resultado desta equação? O governo aposta forte na luta de classes e
os donos do capital reforçam a sua vantagem, pagando três vezes menos impostos
que a classe trabalhadora.
A talhe de
foice também se pode dizer que, com esta política fiscal na habitação, o
governo está a dizer aos potenciais investidores que compensa desviar o capital
das fábricas, da novas tecnologias, da energia, da agricultura e de outros
sectores produtivos que carecem de investimento, mas que pagam mais impostos. O
que se consegue com isto é alimentar a bolha imobiliária, criando
condições para entrarem novos investidores que garantem sucesso aos que já lá
estão - muito parecido com outros esquemas piramidais. Este esquema
acabará num de dois dias: no dia em que só estrangeiros possam comprar ou
arrendar ou no dia em que os preços de venda ou arrendamento passem a ter em
conta o verdadeiro rendimento líquido de uma família da classe média em
Portugal. Até lá, o sistema gera desequilíbrios evidentes entre quem
tem capital para investir e quem tem necessidade de arrendar. É um sistema
que se aguenta, porque até políticos de esquerda alinham, investindo em
imobiliário para negociar nas vantajosas condições do mercado, que devem ser
iguais para todos - esta é a forma como procuram justificar a sua ganância,
pecado capital com milénios de existência.
COM PAPAS E
BOLOS SE ENGANAM OS TOLOS
Num
trabalho feito pelo jornal "Público", ficou claro que o
programa eleitoral da AD não permitia antecipar o que agora está em causa. Para
além de umas generalidades, há questões concretas que apontavam no
sentido oposto do que agora se pretende. Exemplo flagrante é a conciliação
entre a vida profissional e a vida familiar:
O prometido: programa
eleitoral utilizou quase uma centena de vezes a palavra família e os seus
dirigentes, em campanha, asseguraram “continuar a apostar na família como a
célula base da sociedade e em políticas de apoio à família, de valorização da
maternidade e da paternidade, enfrentando a grave crise da natalidade e
incentivando as famílias a crescer”.
O
proposto: diminuição nos direitos de parentalidade, conciliação e
proteção social relativa à família.
A proposta do
governo, nas suas traves mestras, também provoca mais precariedade (contratos a
termo certo com duração inicial de um ano, em vez dos seis meses atuais, e com
possibilidade de duas renovações, até um limite de três anos); vai facilitar o
despedimento, desprotegendo o trabalhador contra despedimento injustificado;
promove uma maior desregulação dos horários e a precarização das condições de
trabalho, enfraquece a contratação colectiva, a acção sindical e o direito à
greve.
É legitimo
propor este caminho, acreditando que é o caminho certo para aumentar a
produtividade nas empresas, fazer crescer a economia e criar novos empregos.
Mas entra no domínio da aldrabice política querer convencer alguém que tudo
isto não é feito com perda de direitos para os trabalhadores.
António Galopim de Carvalho - O Estado Novo d Salazar, na memória de quem o viveu
sábado, 6 de dezembro de 2025
Jaime Nogueira Pinto - Outra História
* Jaime Nogueira Pinto
Colunista do Observador
A História
oficial, sobretudo quando não prima pela verdade, tende a ser efémera. E pode
sempre rever-se e refazer-se.
06 dez. 2025,
Não há quem não
saiba que a História é feita pelos vencedores. Aqui e em todo o lado. Mas
sabe-se também que a História oficial, sobretudo quando não prima pela verdade,
tende a ser efémera. E pode sempre rever-se e refazer-se.
Sobre o 25 de
Novembro, cuja celebração parece causar grande consternação à esquerda e na
Esquerda e motivar jogos florais, já escrevi o que tinha a escrever – mais
recentemente, num livro organizado por Jerónimo Fernandes, que reúne um
tenebroso conjunto de 32 autores de “extrema-direita”, digamos que uma Hidra de
32 cabeças onde, entre “passistas” e outros perigosos fascistas e extremistas,
até cabeças (!) do Chega serpenteiam.
Apesar de terem
sido os Comandos de Jaime Neves – entre os quais os Convocados, ou seja, os que
tinham servido no Ultramar e voltaram às fileiras para parar a Esquerda radical
– a fazer o 25 de Novembro, o que resultou do dia foram 50 anos de Centrão, isto
é, de poder repartido entre o PS (mais à esquerda e por mais tempo) e o PSD
(menos à esquerda e por menos tempo). Ficaram também como eternos cronistas da
República historiadores e intelectuais de esquerda, nas suas várias
sensibilidades e modalidades, assistindo-se ainda à súbita conversão à
democracia eleitoral e à respeitabilidade democrática do Partido Comunista
Português.
Sem o 25 de
Novembro, sem os Comandos, sem os Convocados e a Força Aérea que, no terreno,
evitaram a vitória da Esquerda radical, não teríamos em Portugal democracia
liberal. Teríamos um regime comunista com alguns esquerdistas festivos no
poder, bons rapazes, simpatizantes de Trotsky e dos maoistas, como os que
torturaram presos políticos no RALIS e na Polícia Militar e se dedicaram a
fuzilamentos simulados em vários aquartelamentos. Tudo boa gente. De qualquer
forma, com Ialta em vigor, com o “povo do Norte” em alvoroço e uma coligação
negativa, da extrema-direita o Grupo dos Nove e ao PS, a festa nunca iria durar
muito. Mas os estragos e o prejuízo seriam consideráveis.
Não digo que o
Centrão e militares como Vasco Lourenço ou outros do Grupo dos Nove alinhassem
nas veleidades, barbaridades e festividades da esquerda radical, mas se não
fossem, no terreno, os Comandos de Neves, os oficiais da Força Aérea e os
paraquedistas do brigadeiro Almendra chegados de Angola, não sei bem quem
tiraria do poder os revolucionários. Costa Gomes e os “moderados”? Duvido.
O Dr. Soares,
quando percebeu que o PREC e a Extrema-Esquerda não queriam fazer a festa só
contra os “fascistas” e os “reaccionários”, também teve um papel na
resistência. A política é assim: o Inimigo nem sempre faz o Amigo, mas faz
muitas vezes o aliado útil e objectivo.
fEsquerdas
e direitas radicais
Estou à vontade
quanto ao Estado Novo, onde não tive cargos ou responsabilidades. Nem eu, nem
os meus companheiros do Jovem Portugal e depois da Política, nem
tão pouco os nossos amigos do Grupo de Coimbra fomos alguma vez salazaristas. O
nosso empenho era a defesa do então Ultramar, talvez porque gostávamos de ser
cidadãos de uma nação grande, independente, plurirracial, com uma identidade
forte. Uma nação que, na Europa e em África, crescia economicamente, apesar da
guerra. Havia polícia política e censura prévia, mas nós não gostávamos nem
precisávamos delas. Porém, havia uma guerra, em África, e não tinham as
democracias na 2ª Guerra Mundial censura? Não tinham também neutralizado os
suspeitos de colaboração com o inimigo, e sem sequer lhes perguntarem de que
lado estavam (fizeram-no os americanos com os nipo-americanos e os ingleses com
os militantes da British Union of Fascists de Oswald Mosley)?
Depois, que
autoridade moral têm os militantes da esquerda radical, que admiravam Mao
Tsé-Tung ou até Pol Pot e os desviacionistas trotskistas, para criticar, os
que, aos vinte anos, queríamos transformar o império português numa grande
nação euro-africana, com igualdade, e integração racial, desenvolvida
economicamente? Talvez tivéssemos então, nas referências históricas, os nossos
excessos, mas não éramos nós que fazíamos das faculdades um Estado autoritário,
censório e policiado, onde era obrigatório ser “alinhado”.
E convém também
lembrar que o Estado Novo não foi só a PIDE, a Censura e a mortalidade
infantil. Foi também um tempo em que, pela primeira vez em Portugal houve mais
gente a saber ler e escrever que os que não sabiam; um tempo em que se executou
o maior rol de obras públicas depois do fontismo e se fez a segunda revolução
industrial. Foi ainda nos últimos anos do regime que Portugal se aproximou em
números de capitação e renda dos países economicamente mais desenvolvidos da
Europa. Pela primeira e última vez.
Ao longo de
quase 50 anos de poder, entre a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo
(1933- 1974), houve abusos, saneamentos, prisões, gente a morrer nas cadeias?
Houve casos de corrupção e de favoritismo? Com certeza que houve. Mas tinham
acontecido piores abusos contra os católicos, os monárquicos e os sindicalistas
na Primeira República, e repetiram-se contra a direita patriota e
ultramarinista depois de Abril, no 28 de Setembro e no 11 de Março. Depois do
25 de Abril, quando andaram a investigar a corrupção na “longa noite fascista”,
ainda conseguiram descortinar uns gastos fora da caixa de um ex-presidente da
RTP, mas foi um Nuremberg bastante modesto, convenhamos.
Há muitos anos,
quando discutia com o Dr. Cunhal estes desmandos numa entrevista na Rádio
Renascença, e lhe disse que eles, comunistas, tinham feito como o Estado Novo e
a PIDE quando puderam, perguntou-me se eu queria comparar umas centenas de
fascistas e reaccionários uns meses na cadeia com os muitos anos dos comunistas
nas prisões do fascismo. Respondi-lhe, com todo o respeito que me merecia um
velho e coerente lutador como ele, que a única razão pela qual só tinham sido
meses fora o 25 de Novembro. Senão, teriam sido muitos anos e muitos mortos,
torturados ou liquidados, a avaliar pelo modus operandi dos
comunistas quanto a reais ou supostos inimigos em todos os países onde o
comunismo se tinha instalado. Com uma agravante: enquanto os regimes
autoritários e até as ditaduras da direita permitiam igrejas, comunidades
religiosas e propriedade privada, o comunismo perseguia e proibia as religiões
e a propriedade privada, acabando com a sociedade civil.
O 25 de
Novembro e a Liberdade
E se não fosse
o 25 de Novembro, também não haveria liberdade em Portugal. Não era o slogan dos
“abrilinos” mais ortodoxos “não há liberdade para os inimigos da liberdade”
(sabendo nós – e eles – perfeitamente quem definiria os “inimigos da
liberdade”)?
Na história do
25 de Novembro há um ponto importante e interessante que discuti há dias com a
Irene Flunser Pimentel na Radio Comercial: a envolvente internacional. É uma
envolvente que explica a neutralidade do PCP, que não pôs o seu peso militar e
civil na balança no 25 de Novembro. A URSS não queria quebrar as regras de
Ialta de partilha da Europa com os Estados Unidos (confirmados no Verão de 1975
em Helsínquia) e o Dr. Cunhal e a cúpula do PCP eram disciplinados.
Também estou
convencido que se houvesse uma guerra civil, embora pudesse hipoteticamente
constituir-se uma Comuna de Lisboa (talvez sem o fuzilamento de bispos e padres
da Comuna de Paris), os comunistas e a esquerda radical acabavam vencidos. E em
risco de serem outra vez proibidos.
Rectificações
históricas
A acabar, duas
explicações e rectificações: a história da bandeira a meia-haste, na morte de
Hitler, ouvi-a contar e explicar por Franco Nogueira, um “patriota da Rotunda”
convertido ao Estado Novo pelo lado do patriotismo ultramarino. Em 3 de Maio de
1945, no terceiro dia depois do suicídio de Hitler em Berlim, a bandeira
nacional apareceu a meia-haste nos edifícios públicos: Portugal era neutral no
conflito, por isso, e uma vez que morrera um chefe de Estado, o
Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luís Teixeira de
Sampaio, dera instruções nesse sentido, de acordo com o Protocolo. Depois,
perante algum barulho dos Aliados e das oposições, Teixeira de Sampaio quis
demitir-se, arcando com as responsabilidades de um erro político, na consequência
da observação cega do Protocolo. A meia-haste não tinha, assim, nada de
ideológico – Salazar fora crítico do nazismo, bem antes da sua derrota.
Teixeira de Sampaio estava contrito perante os clamores que causara e disposto
a ser o bode expiatório. Mas Salazar, ministro dos Estrangeiros desde 1936,
conteve-lhe o gesto, e mandou-lhe um dos seus habituais bilhetinhos – “De hora
a hora, Deus melhora”…
Quanto à morte
do general Humberto Delgado, assassinado em Espanha pelo agente da PIDE
Casimiro Monteiro, no que apareceu como uma dupla armadilha – o general Delgado
pensava que se ia encontrar com oposicionistas, os agentes da PIDE pensavam que
Delgado se vinha entregar ou estavam ali para o deter – há várias teses. Mas
não creio que Salazar tivesse alguma coisa que ver com o crime. Alberto Franco
Nogueira, ministro dos Estrangeiros ao tempo, contava-me, anos depois, que
nunca tinha visto ninguém tão aflito como o director da PIDE, major Silva Pais,
quando lhe pediu conselho sobre como havia de comunicar a Salazar o
assassinato. Salazar não mandava assassinar opositores.
De resto, o
general Delgado, como demonstram os livros publicados sobre os emigrados em
Argel, era um factor de divisão entre os oposicionistas residentes –
republicanos do Reviralho, soaristas e comunistas; era, acima de tudo, um
elemento de divisão das várias famílias da oposição. Só depois de morto se
tornou um símbolo unitário.
A propósito, na
nota biográfica de Humberto Delgado, no suplemento ao Dicionário de
História de Portugal, coordenado por António Barreto e Maria Filomena
Mónica, escreve David Lander Raby, sobre os últimos tempos de Humberto Delgado:
“De volta do
Brasil, acabou por aceitar a colaboração que permitiu a formação em Dezembro de
1962 da Frente Patriótica de Libertação Portuguesa, e finalmente chegou a Argel
(onde a Frente tinha o apoio do Presidente Ben Bella) em Junho de 1964. Mas em
menos de dois meses estava praticamente de relações cortadas com a maioria dos
membros da Junta e acabou por separar-se completamente da FPLN em Outubro,
criando a sua própria “Frente Portuguesa de Libertação Nacional”, que nunca
chegou a ter uma existência real. O rompimento com a FPLN foi o princípio do
fim para HD; não era possível reconciliar a sua vontade de acção armada a curto
prazo e a perspectiva cautelosa da maioria da oposição. Cada vez mais
abandonado, HD caiu na armadilha montada pela PIDE, entrando em Espanha com a
sua secretária brasileira, Arajaryr de Campos, acreditando que ia encontrar-se
na fronteira com oficiais do exército português dispostos a levantarem-se
contra o regime.”
A partir daqui,
surgem narrativas fantasiosas ou, pelo menos, pouco verosímeis, que avançam com
uma cumplicidade ou mesmo com um complot entre o “bando de
Argel” e a PIDE para liquidar o “general sem medo”.
Do julgamento
do caso em Portugal, e mesmo das narrativas hostis, infere-se sempre o
desconhecimento de Salazar da “operação Outono”. A versão que sempre ouvi de
quem sabia alguma coisa por ter conversado com elementos envolvidos no crime,
foi que Delgado, convencido que se ia encontrar com militares oposicionistas,
quis reagir, quando se deu conta que caíra na armadilha da PIDE. Ia armado e
puxou da pistola ou do revólver, mas Casimiro Monteiro foi mais rápido e
matou-o. Também no filme realizado por Bruno de Almeida e Frederico Delgado
Rosa, Operação Outono, há uma implícita absolvição de Salazar
quando, numa discussão de responsáveis da PIDE, surge a pergunta: “E como vamos
dizer ao Doutor Salazar?” – “Dizemos-lhe que foram os comunistas!”
Não foram,
embora talvez não tivessem ficado particularmente consternados. Mas isso é
outra história.





