terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Rui Pereira - O CANTO DA SEREIA LIBERAL E OS PUXADORES DE CARROÇA


Publicação de Rui Pereira


2025 12 01

Quando a 18 de novembro deste ano (2025) Miguel Maya, presidente do BPI, reivindicou maior liberdade para despedir, alegou que “há muita gente nas empresas que não puxa a carroça" [1]. Outros banqueiros disseram coisas parecidas, num seminário promovido pela sua imprensa, Jornal de Negócios, sob o título, “A Banca do Futuro”.

Pela mesma altura em que o banqueiro tratava os trabalhadores como bestas de carga, e igualmente embalado pelo extremismo da direitização da vida política do país, o candidato “liberal” a PR, João Cotrim de Figueiredo, em diálogo na CNN com os comentadores residentes da estação, Pedro Costa e Francisco Rodrigues dos Santos, defendeu, por exemplo e sem se rir, que uma maior liberdade de despedimentos produz uma melhoria do nível salarial.

Já em debate com o candidato comunista, António Filipe, o “liberal” Cotrim de Figueiredo meteu a viola no saco e, escandalizando os mais hardcore defensores da selvajaria neoliberal em Portugal, recuou em toda a sua linha habitual de argumentação “liberal”. Quem duvidar volte atrás, como eu fiz, e veja a emissão, incluída a reação de Miguel Pinheiro (ex- O Diabo e hoje diretor executivo do “Observador) que, sobressaltado de indignação, sublinhou como o Papa liberal “concordou com o PCP”, rematando com um eloquente “quero lá saber do Cotrim de Figueiredo”, entre outros mimos com que lhe atribuiu uma copiosa “derrota” no debate com Filipe.

Tem e não tem razão, Miguel Pinheiro. Tem razão, Miguel Pinheiro, do seu ponto de vista de propagandista cujo salário lhe é pago pelos seus patrões liberais, independentemente de “O Observador” dar lucro ou prejuízo, porque o seu negócio é outro. Não tem razão Miguel Pinheiro do ponto de vista de quem tem de, árdua e mentirosamente, ganhar os votos que asseguram eleitoralmente o sistema que permite aos patrões de Miguel Pinheiro pagarem-lhe o ordenado, como é o caso, entre outros, de João Cotrim de Figueiredo.

O motivo é simples. É que tanto nos nossos dias como historicamente, o liberalismo podia inspirar qualquer história do tipo “A Bela e o Monstro”, sendo a primeira a doutrina e o segundo a sua prática. Profundamente antidemocrático (ver de Benjamin Constant “A liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, de 1819, ou o Alexandre Herculano, que bem se proclamava “liberal dos quatro costados e antidemocrata" [2]), o liberalismo nunca passou de uma cobertura lírico-doutrinária para sustentar, ocultando-as, as novas e tremendas modalidades de exploração do trabalho pelo capital industrial primeiro e industrial-tecno-financeiro por fim.

Da “mão invisível” de Adam Smith, na Teoria dos Sentimentos Morais (de 1759) à regra de não intervenção estatal na fixação dos salários, de David Ricardo, passando pelo John Locke do Relatório para a Comissão do Comércio de 1699 em que prescrevia que “os vagabundos válidos de 14 a 50 anos apanhados a pedir deveriam ser condenados a servir três anos na Frota, para os que vivem nos condados junto ao mar, ou a trabalhar três anos na workhouse, para os restantes” e que “os pedintes com menos de 14 anos deviam ser chicoteados e colocados numa escola de trabalho” [3], todos estes dispensam o mal-amado liberal e melhor-esquecido reverendo Malthus, para quem “um homem que nasceu num mundo já partilhado, se não pode obter dos seus pais a subsistência que justamente lhes pode pedir, e se a sociedade não tem necessidade do seu trabalho, não tem nenhum direito de reclamar a mais pequena porção de alimento e, de facto, está a mais. No grande banquete da natureza não há lugar vago para ele. […] o rumor de que há alimentos para todos que chegarem enche a sala de numerosos reclamantes. A ordem e a harmonia da festa são perturbadas, a abundância que aí reinava transforma-se em escassez e a felicidade dos convivas é destruída pelo espectáculo da miséria e do embaraço que reinam em toda a sala”[4].

Em “A Grande Transformação”, Karl Polanyi descreveu esta guinada histórica como uma “mutação antropológica” em que a humanidade inscreveu pela primeira vez na sua história a (livre) hipótese da morte por inanição. Esse é o grande feito do capital que o liberalismo pretende ocultar, com a sua teologia genérica de uma "liberdade" em abstrato, que sempre que procura concretizar se vê tansformada num bem de consumo. E, para o conseguir, não pode investir com o seu argumentário de plástico contra a solidez de um candidato de origem comunista, bem preparado, como António Filipe. Sei que Cotrim lamenta, caro Miguel Pinheiro. “Mas, da próxima vá lá você ou peça a algum banqueiro para o fazer por si”, pensará o liberal Cotrim com os seus botões, entre muitas outras cogitações que decerto não deixará de fazer.

[1] Para as declarações de Maya: https://www.tsf.pt/.../banca-defende-reforma-da.../18021216

[2] Citado em Sottomayor Cardia (1998) Cinco Tipos de Democracia Institucional (p. 314). In Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 12, Lisboa, Edições Colibri (pp. 309-316)

[3] Beaud, Michel (1992], História do Capitalismo de 1500 aos nossos dias. Teorema p. 42

[4] Beaud, id. p. 105.

 https://www.facebook.com/ruiampereira/posts/ 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Presidenciais 2026 - Entrevista a André Ventura

Ventura assume que falhar segunda volta das eleições presidenciais "é mau e é uma derrota"

Líder do Chega assume que, para 18 de janeiro, objetivo é "ganhar" ou garantir passagem à segunda volta. "Não há como mascarar a realidade se isso [não passar à segunda volta] acontecer", assume.

* Agência Lusa, Texto

O candidato presidencial André Ventura admite que não passar a uma segunda volta das eleições de janeiro será uma derrota e que, se lá chegar, será uma batalha difícil, porque estarão “todos contra” si.

“Eu estou a levar esta eleição em duas etapas. Há uma meta que é o dia 18 [de janeiro], nessa meta nós queremos vencer ou passar à segunda volta das eleições. Portanto, isto significa ou primeiro ou segundo lugar, e acho que estamos bem encaminhados para isso”, afirmou.

Em entrevista à agência Lusa no âmbito das eleições presidenciais de 18 de janeiro, o candidato a Belém admitiu que, se não conseguir cumprir o objetivo de passar a uma eventual segunda volta, “é mau e é uma derrota”.

“Se não estiver [na segunda volta], é sinal de que o Chega e eu próprio não atingimos nesta eleição o objetivo. Não há como mascarar a realidade se isso acontecer, porque é praticamente impossível ter um valor próximo das legislativas e não ir à segunda volta”, disse, referindo que “não atingir um valor próximo significaria que houve um voto de não acompanhamento por parte do eleitorado”.

“É uma derrota, só em partidos estalinistas ou leninistas é que as derrotas se tornam vitórias. Há momentos que são de derrota e há momentos que são menos bons na vida política. Saber assumi-lo é também um ato de grandeza democrática”, sustentou André Ventura.

O candidato a Presidente da República e líder do Chega indicou que o partido “continuará o seu caminho” e ele próprio fará “a avaliação que tiver que fazer disso”.

“Saberei ler os sinais que o eleitorado transmitir, mas evidentemente que se não for à segunda volta não foi um resultado positivo. Mas estou mesmo convencido que isso não vai acontecer, estou mesmo convencido que vamos ter uma segunda volta e que eu estarei nessa segunda volta”, salientou.

Ventura considerou que essa será a “batalha mais difícil, talvez da [sua] vida toda”, porque acredita que “se vão juntar todos” contra si, que “o sistema todo vai se juntar contra a candidatura”.

“Eu acredito que seja possível ganhá-la, mas vai ser uma luta muito difícil para mim e para o país”, admitiu.

“Seja quem for o adversário, mesmo que o adversário fosse, ou venha a ser, António José Seguro, tenho praticamente a certeza de que o PSD vai recomendar o voto em António José Seguro, porque sabe que eu sou uma ameaça ao ‘statu quo’ e uma ameaça ao domínio das instituições por estes dois partidos”, disse, antecipando que pode acontecer o mesmo com Gouveia e Melo ou até António Filipe.

O candidato mostrou-se também curioso sobre o que fará o PS caso venha a disputar uma segunda volta com Luís Marques Mendes: “Não que eu queira o apoio do PS, o mais distante disso possível, mas é curioso verificar se o PS vai entrar na segunda volta dizendo para se votar em Marques Mendes”.

André Ventura disse também não ter um adversário preferencial para a segunda volta, mas está convencido de que será Henrique Gouveia e Melo, e assumiu-se como “o adversário mais difícil na primeira volta”, mas “o mais fácil” de derrotar numa segunda.

Ventura dissolve Parlamento se houver “suspeita de corrupção grave” envolvendo primeiro-ministro

O candidato presidencial André Ventura dissolvia o parlamento e convocava eleições antecipadas perante um caso de “suspeita de corrupção grave” sem explicação convincente, envolvendo um primeiro-ministro, mesmo que o Governo fosse suportado por uma maioria absoluta.

“Para ser o mais claro e não estar aqui com reservas mentais, se um primeiro-ministro, por muita estabilidade que tivesse, inclusive se tivesse uma maioria absoluta, for suspeito de corrupção, não conseguir explicar essas suspeitas, e a informação que for dada ao Presidente da República é de que estas suspeitas são sérias, fundamentadas, fundadas e com indícios fortes, então eu acho que, nesse caso, com uma suspeita de corrupção grave, nós devemos dissolver a Assembleia da República e chamar o país a votos”, afirma o candidato a Belém em entrevista à agência Lusa.

Ventura admite que, perante novas eleições, o país poderia renovar a confiança no mesmo primeiro-ministro, criando “um drama institucional para um Presidente da República”.

“Eu tenho um perfil ativo, enérgico, e é assim que eu espero ser até ao final da minha vida. E, portanto, se tivesse que agir num caso de corrupção, agiria. Mas serei o mais ponderado possível para garantir que não lanço o país na instabilidade”, assegura.

O também líder do Chega refere-se a um cenário abstrato, apesar de o seu ponto de partida ser o caso da antiga empresa do primeiro-ministro, Luís Montenegro, que este passou aos filhos depois de uma polémica mediática que levou o Ministério Público a abrir um inquérito preliminar ainda sem resultado conhecido.

André Ventura considera que, no caso Spinumviva, acima de tudo “tem faltado a este primeiro-ministro” explicações.

“O caso Spinumviva tem características graves devido às suspeitas, não estou a dizer que elas são reais ou não, mas às suspeitas, enfim, de recebimento do indivíduo de dinheiro, etc. Isso é grave. Se eu fosse Presidente da República e o processo vier a desenvolver-se nos termos em que venha a desenvolver-se e o Ministério Público entender que deve avançar para um inquérito, o que significa que o primeiro-ministro será constituído arguido, acho que era importante, e é o que eu direi ao primeiro-ministro, que dê explicações não só em sede de justiça, mas também ao país”, precisou, acrescentando: “Eu avaliarei a sustentabilidade dessas declarações do ponto de vista da sua razoabilidade e da credibilidade que elas mereçam”.

“Não sou eu o juiz, evidentemente, mas é o Presidente da República, em funções naquele momento, que tem que dar uma palavra ou de confiança ou de entender que as instituições estão em causa e que não deve continuar”, sustenta.

“Eu tenho muitas críticas ao primeiro-ministro atual, mas consigo ter uma conversa com o primeiro-ministro. Acho que conseguiria dizer ao primeiro-ministro ‘isto são suspeitas graves, o que o primeiro-ministro tem que fazer é explicá-las e dar uma explicação sobre elas’ e exigir-lhe que fizesse isso”, acrescenta.

Ventura considera que “seria possível” levar o primeiro-ministro e evitar “um cenário de deterioração permanente”.

Caso se chegasse “a um ponto, enfim, que o primeiro-ministro fosse, tal como outros atores políticos, acusado, aí até há trâmites legais que são próprios, mas se as suspeitas fossem condensadas, evidentes e notórias, então eu acho que nem era preciso dizer ao primeiro-ministro para sair, eu acho que sairia pelo seu próprio pé”.

“Se eu for Presidente da República, espero que nunca aconteça e também não vejo nenhum motivo para isso, e houvesse uma acusação contra mim de corrupção, de desvio de dinheiro público, de enriquecimento ilícito, eu próprio, chegando ao momento de ver que havia coisas fundadas e reais, não tinha outra forma senão ir-me embora e sair”, conclui André Ventura.

Durante a entrevista, o candidato questionou a forma de nomeações para as instituições do Estado e empresas públicas, que considerou deverem ser repensadas, inclusivamente o caso do procurador-geral da República, apesar da consideração que disse ter para com o atual titular, Amadeu Guerra.

“Mas quando temos um sistema que nomeia o procurador-geral da República e é este procurador-geral da República, depois, que vai investigar quem o nomeou, é sempre um sistema frágil e é sempre um sistema que gera dúvidas de independência e de imparcialidade”, sustenta, alegando que o mesmo se passa com os titulares dos tribunais superiores e do Tribunal Constitucional.

“Faz sentido que o tribunal que controla os partidos políticos, e eu agora estou à vontade porque até somos o segundo maior partido, podíamos ter interesse em manter isto como está, derive destes próprios partidos políticos. Não seria de pensar isto como um todo, do ponto de vista de garantir a independência e a imparcialidade destas pessoas? Poderia ser o Presidente?”, questiona, concluindo: “Acho que temos que repensar um sistema que dê garantias de menor interferência política.

Ventura quer revisão constitucional para tornar Presidente um “ator político decisivo”

André Ventura defende uma revisão constitucional que reforce os poderes do Presidente da República, transformando-o num “ator político decisivo”, e promete “conduzir o país politicamente” a partir do Palácio Belém, designadamente com propostas concretas para a Justiça.

“A Constituição tem que consagrar um presidente que tem que ser mais do que um moderador. O presidente tem que ser um ator político decisivo, porque tem uma legitimidade política decisiva” que lhe advém de ser eleito diretamente com mais de 50% dos votos, justifica André Ventura, em entrevista à agência Lusa no âmbito da campanha para as eleições de 18 de janeiro.

O também líder do Chega considera que, no sistema atual, o “poder real” do Presidente da República “é o poder de veto, o poder de promulgar ou não promulgar, e esse poder, se não for utilizado, ou se não tiver capacidade e extensão de ser utilizado, nos casos mais dramáticos da vida nacional, acaba por ter pouca expressão”, tornando o chefe de Estado numa “espécie só de reduto de influência”.

“Se queremos levar a sério o cargo de presidente e justificar o salário que lhe pagamos, e o que gastamos com a presidência da República, então o presidente também tem que ter poderes concretos e reais”, sustenta.

Ventura entende que o presidente “não deve estar a ser um bloqueio, nem uma marioneta, nem uma muleta do Governo”, mas “deve ter os poderes mais especificados do ponto de vista do controlo, do escrutínio, da fiscalização” para que se saiba claramente “em que águas se move”, alegando que “isso hoje não é absolutamente claro”.

A partir de Belém, o também líder do Chega admite que não pode fazer propostas de revisão da lei fundamental, mas pode influenciá-lo.

“Se for Presidente da República, não terei o poder de fazer leis no parlamento, isso é uma evidência. Mas estou convencido de que não há nenhuma outra figura com tanta legitimidade e capacidade de influenciar o parlamento, até num processo de revisão constitucional, como o Presidente da República”, advogou.

Entre críticas a Marques Mendes e a “conversas de chacha” de Marcelo Rebelo de Sousa, André Ventura defende que seria importante eleger, pela primeira vez, um chefe de Estado “fora deste sistema partidário PS-PSD”, que nos 50 anos de vida democrática tem feito pactos na Saúde, Finanças, banca, “em tudo o que é setor público ou com influência pública”. Seria “uma garantia de independência e de luta contra o sistema”.

Mais do que romper com o sistema, o deputado e líder do Chega considera que “talvez a independência aqui até seja mais relevante”, aproveitando para atacar o seu adversário e ex-líder do PSD, Luís Marques Mendes, por “estar sempre a falar de independência”, mas ser “a linha direta, o apoio de Luís Montenegro, que é primeiro-ministro”.

“Ora, os portugueses gostam e querem um presidente que fiscalize a ação do governo, não um presidente que seja ou um pau-mandado, ou alguém condicionado pelo governo”, argumenta, acrescentando: “se é um presidente que tem conluio com o governo, isso não é bom para a democracia, é mau. E por isso eu percebo esta ansiedade [de Marques Mendes], automaticamente, em tentar desligar-se do Governo agora”.

Do mesmo modo, pretende combater a ideia de que o presidente é “uma espécie de senador reformado”.

“Eu não vou ser o Presidente da união fácil, de palavra certa e barata, confortável em todos os momentos. Nós não podemos tapar as clivagens, a polarização, os problemas com conversa de atleta”, disse.

Ventura promete travar uma batalha para convencer a opinião pública de que não é “nem uma jarra de enfeitar”, nem que irá estar “a dizer aquelas coisas banais, politicamente corretas”.

“Se votarem em mim no dia 18 de janeiro, vai haver uma mudança no estilo de Presidente da República”, assegura.

A partir de Belém, terá como prioridades a Justiça, as comunidades e os jovens, não se limitando a alertar que são precisas reformas, mas indicando ele próprio um caminho.

“Quero dar um sinal à reforma da justiça que ela tem que ser feita. E tem que ser feita em que sentido? Temos que garantir o fim destas penas suspensas que existem para muitos crimes, garantindo que as pessoas ficam presas em casos de abusos sexuais de menores, violência doméstica, que é um flagelo que temos em Portugal, o chamado crime contra o património, considerado às vezes pequeno crime, mas que é esse pequeno crime que vai gerando a insegurança nas pessoas”, aponta.

Segundo o candidato, todos os presidentes defendem reformas da Justiça, mas nunca dizem qual. “Eu ao menos digo qual é. É limitar recursos, porque nós temos recursos que nunca mais acabam, e temos que garantir que a pessoa tem direitos e que têm direito a uma justiça que funcione, imparcial, mas não pode ter direito a fazer mil recursos garantindo que as decisões nunca são efetivadas”, concretiza, numa alusão implícita ao processo Marquês.

“Acho que é preciso uma reforma da justiça e o presidente tem que ser o principal protagonista dela do ponto de vista político”, sublinha.

Segundo André Ventura, isso “não é governar, é conduzir o país politicamente”. “Eu estaria a ser um mau presidente e defraudaria completamente as expectativas das pessoas se lhes desse uma entrevista um dia ou dois depois de ser eleito Presidente da República e a minha conversa passasse a ser que temos que agregar vontades, temos que nos juntar todos, pensar a justiça a médio prazo e a longo prazo”, argumenta.

No decorrer da entrevista, quando abordava questões relacionadas com o processo Marquês, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, Ventura reitera críticas à imprensa portuguesa, sem apontar casos concretos, sobretudo ao que chamou o ativismo de muitos jornalistas.

“E acho que também os jornalistas, em grande parte, não são bons. E acho que temos um ativismo muito grande no jornalismo, é a minha opinião. Mas eu seria o último a condicionar a liberdade da imprensa. Mais, digo-lhe outra coisa. Podia ser o órgão de comunicação, não é o caso da Lusa, mas podia ser o órgão de comunicação que eu menos gostasse, eu tudo faria para garantir que ele não é nem censurado, nem silenciado, nem ameaçado com questões económicas ou de natureza societária”, disse.

https://observador.pt/2025/11/30/ventura-assume-que-falhar-segunda-volta-das-eleicoes-presidenciais-e-mau-e-e-uma-derrota/

Prabhat Patnaik - A propósito da "civilização ocidental"


Prabhat Patnaik [*]

De acordo com uma reportagem publicada no Times of India (23 de novembro), os Estados Unidos pediram aos países europeus que restringissem a imigração a fim de preservar a "civilização ocidental". Muitos no Terceiro Mundo considerariam o termo "civilização ocidental" ridículo, especialmente se for usado no sentido de denotar algo precioso e que vale a pena preservar. As atrocidades cometidas pelos países imperialistas ocidentais contra povos de todo o mundo ao longo dos últimos séculos foram tão horrendas que usar o termo "civilização" para encobrir tal comportamento parece grotesco. Desde o colonialismo britânico, que provocou fomes na Índia que mataram milhões na sua tentativa voraz de extrair receitas de camponeses infelizes, até à brutalidade indescritível do rei Leopoldo da Bélgica contra o povo do que antes se chamava Congo, passando pelos campos de extermínio alemães na Namíbia que liquidaram tribos inteiras, é uma história de crueldade horrível infligida a pessoas inocentes sem outra razão senão a pura ganância. Não é surpreendente, neste contexto, que Gandhi, quando questionado por um jornalista sobre o que achava da "civilização ocidental", tenha respondido ironicamente:   "seria uma ideia muito boa".

Mas vamos ignorar toda essa crueldade e concentrar-nos apenas no avanço material alcançado pelo Ocidente. Este progresso material foi alcançado com base numa relação de exploração que os países imperialistas ocidentais desenvolveram em relação ao Terceiro Mundo, uma relação que deixou este último num estado tal que os seus habitantes hoje estão desesperados para dele escapar. A prosperidade ocidental não é um estado separado e independente alcançado apenas através da diligência ocidental; foi alcançada através de um processo de dizimação das economias dos países de onde os imigrantes estão a fugir. O que é ainda mais impressionante é que o imperialismo ocidental não quer apenas impedir o afluxo de imigrantes; quer impedir, mesmo através de intervenção armada, qualquer mudança na estrutura social dos países de origem dos imigrantes que possa levar a um desenvolvimento que impeça esse afluxo de imigrantes.

O meu argumento pode, naturalmente, ser descartado como exagero. Afinal, as economias ocidentais têm sido caracterizadas pela introdução de inovações notáveis que aumentaram drasticamente a produtividade do trabalho, o que, por sua vez, possibilitou um aumento dos salários reais e dos rendimentos reais das populações ocidentais. É essa capacidade de inovação que distingue o Ocidente e que falta ao Terceiro Mundo; ela constitui a differentia specifica entre as duas partes do mundo, a causa fundamental dos seus desempenhos económicos divergentes, devido aos quais os migrantes procuram mudar-se de uma parte para outra.

No entanto, há duas coisas a serem observadas sobre as inovações. Primeiro, as inovações são normalmente introduzidas quando se espera que o mercado para o produto que resultaria da inovação se expanda, razão pela qual as inovações não são introduzidas durante as depressões. Segundo, as inovações por si só não aumentam os salários reais; elas só o fazem quando há uma escassez no mercado de trabalho que surge por razões independentes. Durante um longo período da história, a expectativa de expansão do mercado para os produtos ocidentais foi gerada pela conquista dos mercados do Terceiro Mundo. A Revolução Industrial na Grã-Bretanha, que deu início à era do capitalismo industrial, não poderia ter sido sustentada se não houvesse mercados coloniais onde a produção artesanal local pudesse ser substituída pelos novos produtos fabricados por máquinas. O outro lado da inovação ocidental foi, portanto, a desindustrialização das economias coloniais, que criou enormes reservas de mão-de-obra nessas regiões.

Mesmo nos países onde foram introduzidas inovações, também foram criadas reservas de mão-de-obra devido ao progresso tecnológico, mas essas reservas foram reduzidas devido à migração em grande escala de mão-de-obra para regiões temperadas de colonização no estrangeiro, como o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e a África do Sul, onde massacraram e deslocaram as tribos locais das terras que ocupavam e cultivavam. Dentro dos países inovadores, portanto, a escassez foi introduzida no mercado de trabalho por meio dessa emigração em grande escala, devido à qual os salários reais puderam aumentar juntamente com as inovações que aumentaram a produtividade do trabalho. As reservas de mão-de-obra criadas nas colónias e semicolónias, no entanto, não puderam migrar para as regiões temperadas; elas foram mantidas confinadas às regiões tropicais e subtropicais, presas num síndrome de baixos salários, por meio de leis de imigração restritivas que perduram até hoje. Se o capital da metrópole pudesse ter fluído a fim de aproveitar os seus baixos salários para produzir bens para o mercado mundial com as novas tecnologias, então a diferença salarial poderia ter desaparecido. Mas isso não aconteceu. Apesar dos seus baixos salários, o capital das regiões temperadas não entrou nessas economias, exceto nos setores produtores de commodities primárias; e os bens manufaturados produzidos por produtores locais, utilizando essa mão-de-obra mal remunerada e adotando as novas tecnologias, não puderam entrar nos mercados das regiões temperadas devido às altas tarifas. Em suma, a inovação ocidental produziu prosperidade material na metrópole, porque foi complementada por uma estrutura segmentada da economia mundial.

Isso não é tudo. A difusão do capitalismo verificou-se dentro dessa estrutura segmentada:   juntamente com a mão-de-obra da Europa que migrou para as regiões temperadas, como a América do Norte, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, o capital da Europa também começou a ser investido nessas novas terras como complemento à migração de mão-de-obra. No entanto, este capital foi extraído das colónias e semicolónias tropicais e subtropicais através da apreensão gratuita das suas receitas cambiais proveniente do resto do mundo, que constituíam grande parte do seu excedente económico, um processo que ficou conhecido como a "drenagem" do excedente.

A difusão do capitalismo durante o "longo século XIX" da Grã-Bretanha para a Europa Continental, Canadá e Estados Unidos assumiu a forma de manutenção de mercados britânicos abertos para os bens dessas regiões e de, em simultâneo, exportações de capital para elas; ou seja, a Grã-Bretanha tinha tanto um défice na conta corrente como na conta de capital em relação a essas regiões. O défice total, somando as contas correntes e de capital, da Grã-Bretanha em relação a essas três regiões mais proeminentes em 1910 era de 120 milhões de libras. Metade desse montante, de acordo com as estimativas do historiador económico S.B.Saul, foi liquidado às custas da Índia, através da apropriação pela Grã-Bretanha de todo o excedente de exportação da Índia em relação ao resto do mundo, e também do pagamento pela Índia das importações desindustrializantes da Grã-Bretanha que excediam as commodities primárias que vendia à Grã-Bretanha. Se considerarmos apenas a Europa Continental e os EUA, o défice total da Grã-Bretanha era de 95 milhões de libras, dos quais quase dois terços foram liquidados desta maneira às custas da Índia.

Assim, todo o desenvolvimento do capitalismo ocorreu historicamente através da criação de um mundo segmentado. A inovação que supostamente está na base da prosperidade material do Ocidente também ocorreu através dessa segmentação. Portanto, não é a inovação que explica por que o Ocidente se tornou próspero enquanto o Terceiro Mundo estagnou e entrou em declínio, mas sim esse facto da segmentação. Afinal, mesmo teorias como a de Joseph Schumpeter, que enfatizam as inovações como a causa da prosperidade material, mostram que todos os trabalhadores se beneficiam das inovações. Mas se apenas alguns trabalhadores são os beneficiários (além dos capitalistas, é claro), enquanto outros pertencentes a uma região diferente são excluídos desses benefícios, então a causa dessa divergência deve estar em outro lugar, não no fato de a inovação estar confinada a apenas uma região. A essência dessa segmentação era a exclusão deliberada de uma região do processo de desenvolvimento material, através da imposição de barreiras tarifárias contra os seus produtos, da proibição de impor barreiras tarifárias próprias contra os produtos da região metropolitana e da aquisição gratuita por parte desta última de uma parte do excedente económico produzido.

Os dias do colonialismo acabaram; além disso, o capital da metrópole agora está disposto a fluir para o Terceiro Mundo para produzir bens para o mercado mundial usando mão-de-obra local mal remunerada e novas tecnologias. Por que, então, a pobreza do Terceiro Mundo continua a permanecer nesta nova situação? Voltamos aqui à proposição de que as inovações, como tais, não aumentam os salários reais; teorias como a de Schumpeter, que afirmam o contrário, assumindo uma tendência espontânea do capitalismo para esgotar as reservas de mão-de-obra e avançar para o pleno emprego, estão simplesmente erradas. O progresso tecnológico no Terceiro Mundo através da disseminação de inovações, seja sob a égide do capital metropolitano ou do capital local, que tende tipicamente a economizar mão-de-obra, não reduz, portanto, o tamanho relativo de suas reservas de mão-de-obra e, consequentemente, a magnitude relativa da pobreza. A mão-de-obra do Terceiro Mundo não tem como migrar para as regiões temperadas.

Dois fatores irão agravar esta situação nos próximos tempos:   um são as tarifas de Trump que procuram exportar o desemprego dos EUA para o resto do mundo, especialmente para o Terceiro Mundo; e o outro é a introdução da Inteligência Artificial no quadro do capitalismo.

30/Novembro/2025

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2025/1130_pd/apropos-“western-civilisation”