sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

João Lopes - Na solidão de Gene Hackman


Opinião

* João Lopes
 
28 Fev 2025, 00:46
 
Como nos lembramos de um ator? Ao saber da morte de Gene Hackman, contava 95 anos, pensei no seu papel, secundário, mas muito significativo, em Lilith (1964), obra-prima de Robert Rossen. O seu diálogo com Warren Beatty envolve as questões com que este supostamente se confronta no asilo de loucos em que trabalha como assistente, em particular na maneira de lidar com as mulheres aí recolhidas. Muito antes do simplismo moralista que o politicamente correto instilou nas nossas vidas, Hackman expõe uma monstruosidade especificamente masculina, sem nunca perder aquela bonomia bem-disposta que nos aproxima dele e, de algum modo, nos mobiliza - é tudo muito sereno e infinitamente perturbante.

Não haverá muitos que como ele tenham sabido expor, assim, com tal rigor e depuração, as contradições de que somos feitos - e a resistência a percebermos como somos feitos. Sem qualquer preocupação exaustiva, e para lá dos Óscares que ganhou - em Os Incorruptíveis contra a Droga (William Friedkin, 1971) e Imperdoável (Clint Eastwood, 1992), respetivamente como ator principal e secundário -, lembro o seu misto de transparência e mistério em filmes tão diversos como O Espantalho (Jerry Schatzberg, 1973), Um Lance no Escuro (Arthur Penn, 1975), Uma Outra Mulher (Woody Allen, 1988), Mississípi em Chamas (Alan Parker, 1988), A Firma (Sydney Pollack, 1993), O Golpe (David Mamet, 2001)... sem esquecer os seus invulgares dotes de comédia, por exemplo em Casa de Doidas (Mike Nichols, 1996).



'O Vigilante' (1974), ou a tragédia do poder. FOTO: D.R. / Arquivo

Há um filme algo esquecido de Francis Ford Coppola que pode simbolizar o prodigioso talento de Hackman. Chama-se no original The Conversation (1974), tendo sido lançado entre nós como O Vigilante. Inspirado em algumas personagens verídicas, o argumento, da autoria do próprio Coppola, dá-nos a conhecer Harry Caul, figura enigmática, fechada sobre si mesma, que trabalha numa equipa de sonoplastas que aceitam “encomendas” para efetuar escutas da vida privada de outras pessoas.

O filme não pode ser desligado de um contexto de acelerada transfiguração das vidas humanas pela evolução tecnológica, para mais contaminado por múltiplas formas de descrença política - e escusado será sublinhar que as suas inquietações não desapareceram neste nosso século XXI. Era o tempo em que os cartazes dos filmes não receavam usar frases relativamente longas e não resisto a lembrar a de O Vigilante: “Harry Caul é um invasor da privacidade. O melhor no negócio. Consegue gravar qualquer conversa entre duas pessoas em qualquer lugar. Até agora, morreram três pessoas por causa dele.”

A certa altura, há uma cena em que Caul monta a sua parafernália numa casa de banho. Para escutar melhor, enrosca-se, literalmente, por baixo de uma prateleira... e fica ali, com os seus auscultadores, a olhar para o vazio. É bem verdade que o filme tende a ser visto como a tragédia daqueles que são escutados - o que, aliás, de acordo com a frase promocional do cartaz, possui uma lógica irrefutável. Mas sinto sempre que essa visão “apaga” aquilo que temos ali mesmo, à nossa frente: a solidão irredutível do homem que escuta.

Dito de outro modo: O Vigilante é também um filme sobre a dispersão de uma personalidade no interior de um sistema de poder por ele servido, tanto quanto por ele desconhecido. Não que tal dispersão desresponsabilize Caul - longe disso. Acontece que ele serve um poder que, através do imponderável da tecnologia, tende a rasurar a própria noção de responsabilidade.

Hackman foi esse ator, capaz de encarnar personagens na fronteira da dimensão humana, à deriva no interior de um espaço social incapaz de os libertar de tão cruel solidão. Apesar de parco nas palavras, há um momento em que Caul discute com um dos colegas o valor da curiosidade na atividade dos humanos. Diz ele: “Se há uma regra segura que aprendi neste negócio é que não sei nada sobre a natureza humana. Não sei nada sobre a curiosidade, não tem nada a ver com aquilo que faço.”

Jornalista   
https://www.dn.pt/opiniao/na-solid%C3%A3o-de-gene-hackman

Alan Mcleod - A queda da USAID revela uma rede gigantesca de media financiados pelos EUA

– É preciso descaramento para chamar de "independentes" media financiados pela USAID  

Alan Mcleod [*]

A decisão da administração Trump de suspender o financiamento da USAID mergulhou centenas de meios de comunicação ditos “independentes” numa crise, expondo assim uma rede mundial de milhares de jornalistas, todos a trabalhar para promover os interesses dos EUA nos seus países de origem.

No final de janeiro, o Presidente Trump – juntamente com a ajuda do chefe do Departamento de Eficiência Governamental, Elon Musk – começou a implementar mudanças radicais na Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), partindo da premissa de que a promoção de causas liberais e progressistas por parte da organização era um gigantesco desperdício de dinheiro. O sítio web e a conta de Twitter do grupo desapareceram no meio de especulações generalizadas de que deixará de existir ou será integrado no Departamento de Estado de Marco Rubio.

A interrupção da ajuda provocou imediatamente ondas de choque em todo o planeta, nomeadamente nos meios de comunicação social internacionais, muitos dos quais, sem que os seus leitores o saibam, dependem totalmente do financiamento de Washington.

No total, a USAID gasta mais de um quarto de milhar de milhão de dólares por ano na formação e financiamento de uma vasta rede de mais de 6 200 repórteres em quase 1 000 agências noticiosas ou organizações jornalísticas, tudo sob o pretexto de promover “meios de comunicação independentes”.

Com a torneira do dinheiro inesperadamente fechada, os meios de comunicação social de todo o mundo estão a entrar em pânico, recorrendo aos seus leitores para obterem donativos e, assim, tornando-se frentes do poder dos EUA.

Os media a mendigar: O fim do fluxo de caixa atinge-os duramente

Talvez o país mais afetado por esta súbita mudança de política seja a Ucrânia. Ao criticar a decisão, Oksana Romanyuk, diretora do Instituto de Informação de Massa da Ucrânia, revelou que quase 90% dos meios de comunicação social do país são financiados pela USAID, incluindo muitos que não têm outra fonte de financiamento.

Olga Rudenko, editora-chefe do Kyiv Independent (um meio de comunicação que a MintPress revelou anteriormente que recebe fundos de Washington), também denunciou a decisão. No mês passado, escreveu que o congelamento da USAID é uma ameaça maior para o jornalismo ucraniano independente do que a pandemia da COVID-19 ou a invasão russa. O Kyiv Independent pediu entretanto aos seus leitores que apoiassem uma campanha de financiamento para manter vivos os meios de comunicação ucranianos pró-EUA. Outros grandes media ucranianos, como o Hromadske e o Bihus.Info, fizeram o mesmo.

Os meios de comunicação social cubanos anti-governamentais encontram-se numa situação semelhante. O CubaNet, com sede em Miami, publicou um editorial a pedir dinheiro aos leitores. “Estamos a enfrentar um desafio inesperado: a suspensão de um financiamento fundamental que sustentava parte do nosso trabalho”, escreveram; ‘Se valorizam o nosso trabalho e acreditam em manter a verdade viva, pedimos o vosso apoio’. No ano passado, o CubaNet recebeu 500 mil dólares de financiamento da USAID para envolver “jovens cubanos da ilha através de um jornalismo multimédia objetivo e sem censura”. Os cínicos, no entanto, podem visitar o site e ver pouco mais do que argumentos anticomunistas.

Diario de Cuba, com sede em Madrid, também está em apuros. No passado fim de semana, o diretor do jornal, Pablo Díaz Espí, referiu que “a ajuda ao jornalismo independente por parte do Governo dos Estados Unidos foi suspensa, o que dificulta o nosso trabalho”, antes de pedir aos telespectadores que subscrevessem. Desde a Revolução Cubana de 1959, os Estados Unidos gastaram quantias gigantescas de dinheiro a financiar redes de comunicação social, numa tentativa de derrubar o governo. Só entre 1985 e 2013, a Rádio e a TV Martí receberam mais de 500 milhões de dólares em dinheiro dos contribuintes.

Em todo o mundo, o congelamento do financiamento colocou os meios de comunicação em risco imediato de encerrar as suas actividades. As organizações birmanesas já começaram a despedir pessoal. Pensa-se que cerca de 200 jornalistas são pagos diretamente pela USAID. “Estamos a lutar para sobreviver”, disse à Voz da América Wunna Khwar Nyo, chefe de redação do Western News. “Não consigo imaginar [como é que as pessoas se vão desenrascar] sem um salário para pagar a renda”, preocupa-se Toe Zaw Latt, do Conselho de Imprensa Independente de Myanmar.

Um inquérito recente a 20 dos principais meios de comunicação social bielorrussos revelou que 60% dos seus orçamentos provêm de Washington. A propósito da pausa no financiamento da USAID, Natalia Belikova, do Press Club Belarus, avisou:   “Estão em risco de se desvanecerem e desaparecerem gradualmente”.

No Irão, os meios de comunicação social apoiados pelos EUA já tiveram de despedir trabalhadores. Uma reportagem da BBC persa afirmou que mais de 30 grupos iranianos realizaram uma reunião de crise para discutir a forma de responder aos cortes na ajuda.

Tal como no Irão, os meios de comunicação social anti-governamentais da Nicarágua estão altamente dependentes dos subsídios de Washington. O Nicaragua Investiga, apoiado pelos EUA, condenou a decisão de Trump como um “golpe sério” contra uma mídia que “depende em grande parte do apoio financeiro e técnico fornecido por agências como a USAID”.

Outro país inundado de dinheiro das ONG ocidentais é a Geórgia. Em 30 de janeiro, o Georgia Today declarou que o financiamento da USAID tem sido uma “pedra angular” do país desde a sua independência. O jornal alertava para o facto de muitas organizações fecharem de imediato as portas para sempre sem o fluxo constante de dinheiro.

Relatórios semelhantes surgiram na Sérvia, na Moldávia e em toda a América Latina. Entretanto, os utilizadores das redes sociais notaram que muitas das vozes anti-China mais proeminentes nas suas respectivas plataformas ficaram estranhamente silenciosas desde o encerramento.

Os media “independentes”, trazidos até si pelo Governo dos EUA

Os cortes na USAID, portanto, evidenciaram que os Estados Unidos criaram conscientemente uma vasta matriz que engloba milhares de jornalistas em todo o mundo, todos produzindo conteúdo pró-EUA.

No entanto, ao discutir os cortes da USAID, os media corporativos insistiram em descrever estes meios de comunicação como “independentes”. “Os meios de comunicação independentes na [antiga] União Soviética estão prestes a ser afectados pelo encerramento temporário da principal agência dos EUA”, escreveu o Financial Times. “Da Ucrânia ao Afeganistão, os meios de comunicação independentes de todo o mundo estão a ser forçados a despedir pessoal ou a encerrar as suas actividades depois de perderem o financiamento da USAID”, disse The Guardian aos seus leitores. Entretanto, The Washington Post escreveu:   “Os media independentes na Rússia e na Ucrânia perdem o seu financiamento com o congelamento da USAID”. Talvez o mais notável seja o facto de organizações como a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) terem feito o mesmo. Clayton Weimers, diretor executivo da RSF U.S., comentou:   “As redacções sem fins lucrativos e as organizações de comunicação social já tiveram de cessar as operações e despedir pessoal. O cenário mais provável é que, após o congelamento de 90 dias, elas desapareçam para sempre”.

Já existe um problema sério no discurso moderno com o termo “meios de comunicação independentes”, uma frase geralmente definida como qualquer meio de comunicação, independentemente da dimensão do império, que não seja propriedade ou financiado pelo Estado (como se essa fosse a única forma de dependência ou controlo a que os meios de comunicação estão sujeitos). Mas mesmo com esta fasquia extremamente baixa, todos estes meios falham. De facto, o aviso de Weimers sublinha o facto de nenhum deles ser independente de forma significativa. São, de facto, completamente dependentes da USAID para a sua própria existência.

Não só isso, mas alguns jornalistas apoiados pela USAID admitem abertamente que o seu financiamento dita a sua produção e as histórias que cobrem ou não. Leila Bicakcic, diretora executiva do Center for Investigative Reporting (uma organização bósnia apoiada pela USAID ), admitiu, perante as câmaras, que “se formos financiados pelo governo dos EUA, há certos tópicos que simplesmente não abordamos, porque o governo dos EUA tem os seus interesses que estão acima de todos os outros”.

Embora a USAID vise especificamente audiências estrangeiras, grande parte das suas mensagens regressa aos Estados Unidos, uma vez que esses meios de comunicação estrangeiros são utilizados como fontes credíveis, independentes e fiáveis para serem citados pelos jornais ou pelas redes de notícias por cabo. Assim, o financiamento de meios de comunicação estrangeiros acaba por inundar as audiências nacionais com mensagens pró-EUA também.

Embora a imprensa possa estar a lamentar o fim dos meios de comunicação apoiados pela USAID, muitos chefes de Estado não estão. “Levem o vosso dinheiro convosco”, disse o presidente colombiano Gustavo Petro, ‘é veneno’.

Nayib Bukele, presidente de El Salvador, partilhou um raro momento de concordância com Petro. “A maioria dos governos não quer que os fundos da USAID entrem nos seus países porque sabem onde é que grande parte desse dinheiro vai parar”, escreveu, explicando que:

"Embora comercializados como apoio ao desenvolvimento, à democracia e aos direitos humanos, a maioria desses fundos é canalizada para grupos da oposição, ONGs com agendas políticas e movimentos desestabilizadores. Na melhor das hipóteses, talvez 10% do dinheiro chegue a projectos reais que ajudam pessoas necessitadas (há casos assim), mas o resto é usado para alimentar a dissidência, financiar protestos e minar administrações que se recusam a alinhar com a agenda globalista".

Controlando a narrativa

A USAID influencia os media globais e os meios de comunicação de formas muito mais profundas do que o simples patrocínio de agências noticiosas. Em março passado, um documento de 97 páginas da USAID foi obtido ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação.

O documento revelava uma vasta operação de censura e supressão de vastas áreas da Internet, incluindo Twitch, Reddit, 4Chan, Facebook, Twitter, Discord e sítios Web de meios de comunicação alternativos. Aí, lamentou a USAID, os utilizadores podiam construir comunidades para criar “conhecimentos populistas” e desenvolver opiniões e pontos de vista que desafiavam as narrativas oficiais do governo dos EUA.

Embora a sua justificação interna fosse travar o fluxo de desinformação, parecia estar particularmente preocupada com a “desinformação” – um conceito que define como discurso que é factualmente correto mas “enganador” (ou seja, verdades incómodas que o governo dos EUA preferiria que o público não soubesse).

O principal método delineado pela USAID para suprimir os meios de comunicação independentes é o que designa por “contacto com os anunciantes” – na realidade, ameaçar os anunciantes para que cortem os laços com os sítios Web mais pequenos para os estrangular financeiramente.

O relatório deixa claro que a sua principal preocupação não é a China ou a Rússia, mas a sua população interna:

"Os debates sobre a desinformação e a desinformação giram frequentemente em torno de suposições de que são os actores estatais que conduzem a questão. No entanto, a informação problemática tem origem mais regularmente em redes de sites alternativos e indivíduos anónimos que criaram os seus próprios espaços online 'alt media'”.

A USAID sugere que se oriente o público para fontes de informação corporativas e tradicionais e que se “inocule psicologicamente” o público contra factos inconvenientes que ponham em causa o poder dos EUA, “desmascarando” a informação antes de as pessoas a verem. O prebunking inclui “desacreditar a marca, a credibilidade e a reputação dos que fazem alegações falsas” – por outras palavras, um ataque dirigido pelo Estado contra os meios de comunicação alternativos e os críticos do governo dos EUA. O relatório completo – e uma investigação da MintPress News sobre o assunto – podem ser lidos aqui.

A USAID, no entanto, está longe de ser a única instituição governamental a tentar controlar as narrativas globais. O National Endowment for Democracy (confirmadamente também na mira de Musk e do DOGE) também patrocina meios de comunicação em todo o mundo.

O Departamento de Defesa, por sua vez, coloca em campo um gigantesco exército clandestino de pelo menos 60,000 pessoas cujo trabalho é influenciar a opinião pública, a maioria fazendo isso a partir de seus teclados. Uma exposição de 2021 da Newsweek descreveu a operação como “a maior força secreta que o mundo alguma vez conheceu” e avisou que este exército de trolls estava provavelmente a violar a lei nacional e internacional.

Os Arquivos do Twitter expuseram ainda mais as ações sombrias do Departamento de Defesa. Mostraram como o DoD trabalhou com o Twitter para levar a cabo um projeto de influência dirigido por Washington em todo o Médio Oriente, mesmo quando a aplicação afirmava estar a trabalhar para acabar com operações de desinformação apoiadas por estrangeiros. E as investigações da MintPress News revelaram como os mais altos escalões das principais aplicações de redes sociais, como o Facebook, Twitter, Google, TikTok e Reddit, estão cheios de antigos funcionários da CIA, USAID e outras agências de segurança nacional.

Para além disso, grupos sediados nos EUA com ligações estreitas ao governo, como a Fundação Ford, a Fundação Open Society e a Fundação Bill e Melinda Gates, concedem grandes subsídios a jornalistas e a meios de comunicação social estrangeiros.

Uma organização sombria

Alguns poderão perguntar qual é o problema de receber dinheiro da USAID. Os apoiantes da organização dizem que esta faz muito bem em todo o mundo, ajudando a vacinar crianças ou fornecendo água potável. Olhando para o sítio Web da organização (agora extinta), poder-se-ia supor que se trata de um grupo de caridade que promove valores progressistas. De facto, muitos membros da direita conservadora parecem ter tomado este verniz de “woke” pelo seu valor facial. Ao explicar a sua decisão de encerrar a organização, Musk descreveu-a como um “ninho de víboras de marxistas radicais de esquerda [sic!] que odeiam a América”.

Isto, no entanto, não podia estar mais longe da verdade. Na realidade, a USAID, desde o seu início, tem como alvo consistente governos de esquerda e não alinhados, particularmente na América Latina, África e Ásia.

Em 2021, a USAID foi um ator-chave por detrás de uma Revolução Colorida falhada (uma insurreição pró-EUA) em Cuba. A instituição gastou milhões de dólares financiando e treinando músicos e ativistas na ilha, organizando-os em uma força revolucionária e anticomunista. A USAID ofereceu até 2 milhões de dólares por subvenção aos candidatos, observando que “artistas e músicos saíram às ruas para protestar contra a repressão do governo, produzindo hinos como ‘Patria y Vida’, que não só trouxe uma maior consciência global para a situação do povo cubano, mas também serviu como um grito de guerra para a mudança na ilha”.

A USAID também criou uma série de aplicações secretas com o objetivo de mudar o regime. A mais conhecida foi a Zunzuneo, muitas vezes descrita como o Twitter de Cuba. A ideia era criar uma aplicação bem sucedida de mensagens e notícias para dominar o mercado cubano e, depois, alimentar lentamente a população com propaganda antigovernamental e direccioná-la para protestos e “smart mobs” com o objetivo de desencadear uma revolução colorida.

Num esforço para ocultar a sua participação no projeto, o governo dos EUA teve uma reunião secreta com o fundador do Twitter, Jack Dorsey, para o convencer a investir no projeto. Não se sabe até que ponto Dorsey ajudou, se é que ajudou, pois ele se recusou a falar sobre o assunto.

Em 2014, o programa cubano da USAID foi novamente exposto. Desta vez, a organização estava a organizar falsos workshops de prevenção do VIH como disfarce para recolher informações e recrutar uma rede de agentes na ilha.

Também na Venezuela, a USAID tem servido como uma força de mudança de regime. Esteve intimamente envolvida no golpe falhado de 2002 contra o Presidente Hugo Chavez, financiando e treinando os principais líderes do golpe no período que antecedeu a insurreição. Desde então, tem tentado sistematicamente subverter a democracia venezuelana, nomeadamente financiando o autodeclarado presidente Juan Guaidó. Esteve mesmo no centro de um desastroso golpe de 2019 em que figuras apoiadas pelos EUA tentaram conduzir camiões cheios de “ajuda” patrocinada pela USAID para o país, apenas para incendiarem eles próprios a carga e culparem o governo.

Numa tentativa de erradicar a ameaça do socialismo, os agentes da USAID também são conhecidos por terem ensinado técnicas de tortura às ditaduras de direita da América Latina. No Uruguai, Dan Mitrione, da USAID, ensinou à polícia como utilizar eletricidade em diferentes áreas sensíveis do corpo, o uso de drogas para induzir o vómito e técnicas avançadas de tortura psicológica. Mitrione queria fazer demonstrações em objectos vivos, por isso raptava mendigos das ruas e torturava-os até à morte.

A célebre polícia guatemalteca, cúmplice do genocídio da população maia, também dependia fortemente da USAID para receber formação. Em 1970, pelo menos 30.000 agentes da polícia tinham recebido formação em contra-insurreição, organizada e paga pela USAID.

A USAID esteve ainda mais fortemente implicada no genocídio no Peru, na década de 1990. Entre 1996 e 2000, o ditador peruano Alberto Fujimori ordenou a esterilização forçada em massa de 300 mil mulheres, maioritariamente indígenas. A USAID doou cerca de 35 milhões de dólares para o programa, agora amplamente considerado como um genocídio. Nenhum funcionário americano enfrentou quaisquer repercussões legais.

Os primórdios da USAID remontam a 1961, uma época em que os movimentos de libertação nacional na América Latina, África e Ásia lutavam – e ganhavam – a independência. As revoluções progressistas, como a de Cuba, estavam a inspirar o mundo e os Estados comunistas, como a URSS, estavam a desenvolver-se rapidamente, desafiando o domínio dos Estados Unidos.

A USAID foi criada como contrapeso a tudo isto, uma tentativa de apoiar os governos conservadores e pró-EUA e minar ou reorientar os mais radicais. Desde a sua criação, tem trabalhado lado a lado com a Agência Central de Inteligência.

Em 1973, o senador Ted Kennedy escreveu uma carta à CIA, perguntando diretamente se estavam a utilizar a USAID para levar a cabo operações no Sudeste Asiático. O próprio Secretário de Estado Henry Kissinger respondeu afirmativamente. Por essa razão, o antigo oficial da CIA John Kiriakou classificou a USAID como pouco mais do que um “adjunto de propaganda da agência”.

Surpreendentemente, The New York Times publicou uma avaliação semelhante. Em 1978, o seu correspondente, A. J. Langguth, escreveu que as “duas principais funções” do programa de formação policial global da USAID eram permitir à CIA “plantar homens na polícia local em locais sensíveis de todo o mundo” e trazer para os Estados Unidos “candidatos de primeira linha para serem recrutados como funcionários da CIA”.

Atualmente, a instituição apresenta-se como estando a tentar capacitar a sociedade civil para assumir a liderança na promoção da democracia. Mas, como escreveu o fundador da WikiLeaks, Julian Assange, os últimos cinquenta anos foram de autêntico esvaziamento dos actores da sociedade civil, como as igrejas e os sindicatos, deixando apenas grupos de reflexão e ONGs, “cujo objetivo, por detrás de todo o palavreado, é executar agendas políticas por procuração”.

No pânico que envolveu o seu encerramento, muitas personalidades da USAID revelaram o que se passava e fizeram-no diretamente. “Não se trata de um projeto de generosidade”, disse um funcionário à Fox News, acrescentando: ‘Trata-se de uma agência de segurança nacional e de um esforço no seu âmago’.

Nossos media não livres

Em última análise, o que esta história revela é que os nossos meios de comunicação social não são livres; são dominados por interesses poderosos. O mais poderoso deles é o governo dos EUA. Para Washington, controlar o discurso público é tão importante como controlar os mares ou os céus. É por isso que investem milhares de milhões de dólares para o fazer.

Isso também explica a reação sempre que os actores desafiam o ecossistema mediático dominado pelos EUA. Na década de 2000, os militares americanos bombardearam deliberadamente edifícios da Al-Jazeera depois de a rede ter desafiado a narrativa de Washington sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão. Depois que a RT começou a ganhar espaço na década de 2010, a rede foi demonizada e cancelada. O TikTok está prestes a ser banido nos EUA e os meios de comunicação independentes são constantemente banidos, desmonetizados, difamados e deplorados.

Gostamos de pensar que somos livres-pensadores. No entanto, a revelação de que a USAID financia uma vasta rede de jornalistas em todo o mundo, moldando narrativas favoráveis aos interesses dos EUA, deveria realçar o facto de estarmos a nadar num oceano de propaganda – e a maioria de nós nem sequer se apercebe disso. Os EUA gastam milhares de milhões para promover os seus interesses e demonizar a China, a Rússia, Cuba, a Venezuela e os seus outros inimigos, tudo numa tentativa de curar as nossas realidades.

Embora a USAID, como organização, pareça estar formalmente desaparecida e integrada no Departamento de Estado, o secretário de Estado Rubio disse que muitas das suas funções continuarão, desde que estejam alinhadas com “o interesse nacional” e não com a “caridade”. Como tal, é provável que não demore muito até que a torneira do dinheiro volte a ser aberta para estas organizações pró-EUA. No entanto, pelo menos a morte da USAID fez uma coisa boa:   expôs vastas faixas dos meios de comunicação globais por aquilo que são: projectos de propaganda imperial dos Estados Unidos.

18/Fevereiro/2025

Carlos Coutinho - NAQUELE glorioso dia ...

 

* Carlos Coutinho

NAQUELE glorioso dia em que, há 1823 anos, o camponês rebelde de meia idade chamado Liu Bang foi entronizado como Imperador da China, teve início a dinastia Han.

Neste mesmo dia, faz também 500 anos que o conquistador espanhol Hernán Cortés executou o último rei asteca, Cuauhtémoc, provocando uma peste planetária que ainda mata que se farta no México e no resto do mundo, agora por conta dos norte-americanos, os conhecidos vizinhos de todas as pestes desde que existem e, claro, os grandes herdeiros da Europa das pestes, agora muito ocupados na Ucrânia.

O sismo que há uma semana ocorreu ao largo da famosa primeira praia do nudismo, em Portugal, o Meco, não causou mortos por cá, mas dá para lembrar o de 1969 que, também num aziago dia 28 de fevereiro, pouco antes das 4 horas da madrugada, abanou brutalmente quase todo o nosso Portugal ibérico, grande parte da Espanha e o Norte de Marrocos, sendo considerado o mais mortífero do século XX. O seu epicentro situou-se no Atlântico, a sudoeste do Cabo de S. Vicente e teve a magnitude de 8 na escala Richter. 

Este evento é interpretado como resultante da compressão entre placas (a africana e a euroasiática) que ocorre na região oceânica a sudoeste da Península Ibérica. Provocou alarme e pânico entre as populações, cortes nas telecomunicações e no fornecimento de energia elétrica. Em Espanha houve 7 mortes indiretas, por enfarte, e em Marrocos 11 mortos também diretos. Registaram-se, no entanto, 13 vítimas mortais em Portugal Continental, 2 como consequência direta do sismo, e 11 indiretas. 

Podia ter sido muito pior, porque o IPMA esteve 29 minutos sem funcionar e, escondendo este pormenor de somenos, quando veio falar, falou de uma magnitude em 4,7 graus na escala de Richer. Toda a gente acreditou, mas não demorou muito a tomar conhecimento de que havia outras avaliações relativas a Montalegre, Costa da Caparica, Sesimbra e Mértola e até chegava da Europa uma que falava de 8,2 graus em alguns pontos do Algarve.

Felizmente, não tivemos mortos e até nos livrámos do pânico que às vezes também mata. Pior do que isto foi, todavia, o sismo que, fustigou os dois lados do Mediterrâneo em 1997. Lembro-me que deixou um saldo de cerca de 1 100 pessoas mortas, 2 600 feridas, 36 000 sem casa onde morar. 

Com uma magnitude de 6,1 na escala de Richter e uma intensidade máxima de VIII na de Mercalli, o terremoto teve o seu epicentro perto da cidade de Ardabil, no desgraçado Norte iraniano que ainda hoje não dorme em paz, com abanões telúricos frequentes e aiatolas que não poupam ninguém.

Foi assim que o meu Tiroliro e a minha Tolentina, naquela tremenda tremente segunda-feira desataram a correr pela casa toda, em pânico, sem o mais leve miado, escondendo-se debaixo da minha cama, por já não terem confiança em ninguém, quando às 13h24 o chão tremeu durante mais de um minuto e, neste caso, o motivo não foi o medo. 

Foram as ondas de um sismo de mais de 5 graus na escala de Richter que ocorreu ao largo da primeira praia portuguesa de nudismo, a do Meco, que hoje é menos frequentada por causa da concorrência dos descascados que não para de aumentar, de norte a sul.

Nas televisões só havia o funeral interminável do Pinto da Costa, mas, pelo menos em Almada e no Seixal, tanto quanto me disseram há minutos, houve quem tivesse entrado em pânico e o caso não é para menos, porque a Caparica sempre foi atreita a maus augúrios.

No Algarve, desde a Vila do Bispo a Vila Real de Santo António, ainda foi pior, porque os móveis e os candeeiros de pé alto balouçaram como pêndulos invertidos e, nas esplanadas e nos bares, os copos de cerveja entornaram-se quase todos. 

Imagine-se agora que voltávamos 1755 ou, ainda mais atrás, a 26 de janeiro de 1531, quando um terramoto na região de Lisboa matou mais de 30 mil pessoas derrubou um terço das edificações desta cidade, onde tirou mais de mil vidas só no choque inicial. A catástrofe apenas terminou cinco dias depois. 

Dos mais antigos, igualmente catastróficos, não consegui encontrar números para os de 1033, 1321, 1337, 1344, 1347, 1356, 1512 e 1528, mas todos ficaram memórias e lendas que é melhor não contar. 

Adeus fevereiro. Assim, não vamos sair-nos bem 

2025 02 28

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Cátia Barros - Em terra de Silvas e Santos, quais os apelidos portugueses mais comuns (e os mais raros)?

 

Silva é o apelido mais comum em Portugal, seguido de Santos, Ferreira e Pereira. Através dos apelidos podemos descobrir muito sobre nós e sobre os nossos antepassados, uma vez que “Portugal tem uma tradição muito rica e complexa”

Cátia Barros, Jornalista

Carlos Esteves, Jornalista infográfi 

Cristiano Salgado, Ilustrador

Écerto que há nomes mais comuns do que outros, mas nenhum chega perto do apelido Silva. Em Portugal, segundo os dados fornecidos ao Expresso pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), há 805.446 pessoas com esse apelido. O número de pessoas que se chamam Silva consegue ser ainda mais impressionante, principalmente se considerarmos que o segundo apelido mais popular em Portugal é o sobrenome de quase metade dos Silvas. Há 498.856 Santos. Um número muito semelhante ao número de pessoas que se chamam Ferreira (407.947) e ao daqueles que se chamam Pereira (403.139).

Ainda dentro dos apelidos mais comuns, encontra-se o Costa, com mais de 326 mil registos. E há uma curiosidade a considerar relativamente a este sobrenome. Além de ser um apelido que “estatisticamente é muito comum em Portugal”, destaca-se “pela geografia”. “Se procurássemos o apelido Costa no país todo, iríamos encontrar uma geografia um pouco diferenciada, ou seja, Costa é mais comum no norte do país do que no sul”, explica ao Expresso o investigador, consultor e formador Francisco Queiroz.

10 apelidos mais comuns em Portugal

A verdade é que todos temos características físicas que nos definem e pelas quais obtemos o nosso sentido de identidade. Em todo o caso, estes são aspetos que se podem alterar ao longo da nossa vida ou do contexto em que nos inserimos. Ser alto, em Portugal, não é o mesmo que ser alto nos Países Baixos. Já o nosso nome, que nasce connosco, raramente se altera ao longo da vida. É por ele que nos identificamos e que nos identificam.

Alguns de nós respondemos a um só nome, outros têm alcunhas e outros reconhecem-se pelo apelido. Apesar de o modo como nos apresentamos e somos tratados também se alterar consoante o contexto — certamente não somos reconhecidos da mesma forma na nossa terra natal, no nosso grupo de amigos ou no trabalho —, o nome com que nos apresentamos permanece. E pode dizer algumas coisas sobre nós.

Contudo, há uma diferença entre o nosso primeiro nome e o apelido. O nome próprio é escolhido, pelo menos à nascença, pelos nossos pais. Não passa disso: uma escolha. Os batismos mais populares vão sofrendo alterações com o desenrolar do tempo, variando com nomes em voga e sofrendo a influência de séries e universos que encheram o imaginário dos pais.

As regras dos apelidos

Por outro lado, os nossos apelidos dizem-nos de onde vimos e obedecem a regras definidas (mesmo que tenham sofrido alterações ao longo dos anos). “Os apelidos estabelecem a ligação à família a que a criança pertence”, lê-se no site do IRN. No total, há nove regras para escolher os apelidos. “São escolhidos de entre os apelidos de ambos os pais, mas podem ser de apenas de um.” Cada pessoa não pode ter mais de quatro apelidos. No caso de os pais terem “apelidos iguais”, os mesmos podem “ser repetidos de forma seguida ou intercalada”

Além dos apelidos dos pais, “podem ser escolhidos apelidos que pertencem aos antepassados (avós, bisavós)”. Mas para tal acontecer, e no caso de não fazerem parte dos apelidos dos pais, é necessário “fazer prova”. Já no que toca à ordem, não existe nenhuma regra específica e “podem ser adicionados ou eliminados elementos de ligação (de, da, do, e)”. No caso de uma criança estrangeira, “a escolha dos apelidos obedece à lei da sua nacionalidade”. No entanto, “se a criança tiver outra nacionalidade, além da nacionalidade portuguesa, prevalece a lei portuguesa”.

Antigamente as pessoas eram conhecidas pelo nome individual e por um patronímico, que indicava de quem é que eram filhos. Por exemplo, um João Rodrigues: sabíamos logo que era filho de um Rodrigo”, diz Francisco Queiroz

Nem sempre foi assim. “Portugal tem uma tradição em termos de apelidos muito rica e complexa. E o problema maior, quando nós associamos o apelido à descoberta das raízes, é que quando nós começamos a recuar, chegamos a uma época — mais ou menos ao século XVI, há 500 anos — em que os apelidos estão em formação, ou seja, a lógica que nós temos hoje dos apelidos, antes do século XVI em Portugal não existia”, explica Francisco Queiroz.

E é por esse motivo que alguns patronímicos chegam ao top 10 de apelidos mais usados, como é o caso de Rodrigues e Fernandes. “Na altura existiam nomes próprios, que tal como hoje identificam um indivíduo, e depois havia os patronímicos”, explica Queiroz. “As pessoas eram conhecidas pelo nome individual e depois por um patronímico que indicava de quem é que eram filhos. Por exemplo: um João Rodrigues, sabíamos automaticamente que era filho de um Rodrigo.”

Mas a falta de regras leva a que surjam diversos tipos de apelidos. Se alguma vez se perguntou porque se chama Lindo ou Feio, é porque algum antepassado se destacou por essa característica. “Há outro tipo de apelidos que também se vão fixar e que vêm de uma raiz diferente: em vez de serem patronímicos, vêm do lado das alcunhas. Há uma série de apelidos que correspondem a características físicas de alguém e que depois foram usados pelos descendentes”, afirma Queiroz.

10 apelidos menos comuns

Muitos desses apelidos mantêm-se até hoje “por uma opção de prestígio”. A título de exemplo, Francisco Queiroz diz que alguém querer ser conhecido como o “o feio” poderia estar relacionado com o facto de se ser “realmente feio, mas rico e poderoso”. “Há muitos casos de apelidos portugueses atuais que têm origem em episódios de caráter bélico. São situações hilariantes, histórias que aconteceram com determinado indivíduo e que ficaram registadas nesses livros porque eles passaram a pertencer a um estado social da nobreza. Por isso, os descendentes passam a usar essas alcunhas como apelidos para se identificarem como descendentes daquela pessoa, que foi importante. Mesmo que o apelido seja insólito, usam-no”, continua.

“Há apelidos portugueses que respondem a nomes de cidades”, como Lisboa, Porto, Braga, Chaves, Guimarães ou Barcelos. “Geralmente, os apelidos de cidade surgem quando as pessoas fazem algum tipo de migração.” No caso de terem um nome próprio comum, passam a ser conhecidos pelo nome da cidade em que moraram. É por esse motivo que, tal como Costa, estes apelidos podem ter regionalismos especiais. “Nos Açores, por exemplo, há muitos apelidos ligados a cidades. Na Terceira muitas pessoas têm o apelido Barcelos, que não é muito comum em Portugal Continental.” Já nos casos de Braga e Guimarães, trata-se de nomes que surgem no Porto. “Houve muita imigração do Minho para o Porto, sobretudo no século XIX.”

A verdade é que não há só apelidos comuns na lista do IRN. No total há 75.132 apelidos que só surgem uma vez. Entre esses apelidos raros encontram-se nomes como Alparqueiro, Bonsembiante, Gracaribeiro, Marruso, Picalho, Ricaldes, Sardoeiro, Tripinhas, Vernamonte e Zidorinho. Segundo o IRN, estas singularidades encontram-se porque a lista “inclui também apelidos estrangeiros” e porque “ao longo da vida o apelido pode ser alterado”.  

https://expresso.pt/revista/fisga/2025-02-26

hélder moura - (528) Perceções induzidas

hélder moura

26.02.25

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.

Aqueles para quem a socialização se acredita dever ser genética, opõem-se a essa socialização.

O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta.

 

Se perguntarmos à grande maioria dos nossos conhecidos qual é a percentagem atual de afroamericanos (pretos) na população dos EUA, o número mais citado será à volta de 40%, o que de certa maneira é o reflexo que está de acordo com as componentes culturais mais apregoadas, desde a fala coloquial generalizada – com os “bros”(manos) e outros que tais – aos vários apertos de mão – os distintos “take five” em cima e em baixo –o andar bamboleante, os ténis desapertados, os enormes capuchos (hoodies), as canções e danças, aos atletas e desportistas mais nomeados, etc.

Acontece que, segundo o censo de 2022 da ACS (American Community Survey) a população americana rondava os 330 milhões, dos quais os brancos ainda constituíam a maioria com 60%, seguidos pelo grupo dos hispânicos (que não incluem espanhóis) com 19%, só depois vindo o grupo dos afroamericanos (pretos) com 12%, asiáticos com 6%, e nativos americanos índios e do Pacífico com 1%.

Segundo as projeções (a manterem-se as condições atuais), a população branca deixa de ser maioritária dentro de cinco anos, a hispânica crescerá bastante, a africana manter-se-á ou decrescerá, a asiática crescerá ligeiramente.

 

Alguém gosta de perder a maioria? Que fazer para a manter?

 

 

Uma das surpresas que os Democratas tiveram nestas últimas eleições presidenciais, foi o voto dos hispânicos ser fortemente favorável a Trump. Constituído essencialmente por imigrantes, com baixos rendimentos, sujeitos à retórica anti-imigração por parte dos Republicanos, o “normal” para os Democratas seria que votassem por eles.

Não previram que para esses imigrantes paupérrimos o seu Sol era o país capitalista por excelência: os EUA.O eldorado para onde imigravam. E uma vez lá chegados, por mais miseráveis que venham a estar, não querem que mais nenhum dos imigrantes venha. Tal como os trabalhadores das fábricas de armamento (e outros) não querem que as guerras acabem, não querem que as “suas” fábricas fechem, porque isso lhes garante o emprego. Qualquer resquício de bondade social é inexistente: o indivíduo (eles) acima de tudo.

Aliás, o mesmo se passa nesta Europa cume dos valores sociais: os trabalhadores servem-se de todos os argumentos devidamente explicados e propagandeados pelos seus donos para se oporem à vinda de imigrantes, não lhes vá faltar o emprego, a cultura que tanto os distingue, a segurança, alterar a cor da pele que qual estrela de David os distingue, etc.  Aqueles para quem a socialização se acredita devia ser genética, opõem-se a essa socialização, o que democraticamente tem de ser respeitado. Evidentemente, enquanto for necessário. Para esta perceção, jogadores de futebol e outros artistas não contam (o espetáculo fica fora, “o circo” sempre esteve aparte).

 

Perdidas que foram as eleições para Trump, não tendo por enterro político para quem se voltar, os Democratas e seus apoiantes olham agora com saudade para o reinado Obama. Moralmente exemplar. Um novo velho Messias. “Barack Obama never did anything bad”.

E, no entanto, “Obama cometeu todo o tipo de atrocidades enquanto presidente que seriam consideradas escandalosas se vivêssemos num mundo que fosse remotamente são. Destruiu a Líbia e deixou-a num desastre humanitário. Destruiu a Síria com a guerra suja que envolveu o lançamento de armas para os braços dos afiliados da Al-Qaeda. Iniciou a incineração do Iémen. Acendeu o pavio para a ruína da Ucrânia com a operação de mudança de regime apoiada pelos EUA em 2014. O seu notório programa de drones. A lista continua.”

 

Mas nada disto importa para o democrata médio. Só estão interessados nos sentimentos que Barack Obama lhes fez sentir em relação à sua fação política favorita. É apenas nisso que foram treinados para se concentrarem.

O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta. A propaganda é algo que só acontece com pessoas de outros países ou com pessoas com ideologias políticas diferentes. Os escândalos são quaisquer controvérsias que os meios de comunicação imperiais decidam focar e inflamar. As coisas reais que estão a acontecer no nosso mundo não são registadas.

 

Como diz C. Johnstone, “Isto acontece porque vivemos numa distopia controlada pela mente, onde o pensamento, a fala e o comportamento públicos são agressivamente manipulados por operações psicológicas em grande escala ao serviço dos poderosos. A notícia é propaganda. Os algoritmos de pesquisa são extremamente encaminhados. As plataformas de redes sociais arrebanham-nos em câmaras de eco ideológicas isoladas. Ninguém que desafie significativamente os interesses informativos dos poderosos pode ascender à fama e à influência. Hollywood é apenas uma máquina de relações públicas para o império (veja aqui os 410 filmes feitos debaixo da supervisão do Pentágono).”

 

A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.

 

 

Amplamente noticiado, Trump disse que Zelenski era um “ditador”! E por aí ficamos, ditador não, ditador sim, está ao serviço de Putin, etc. Dos grandes meios de comunicação, nenhum procurou investigar ou enquadrar o acontecido. E era importante.

A pequena história:

Zelenski rejeitou o que considerou ser uma “oferta” de chantagem de Trump para obter 50% de todos os rendimentos futuros da Ucrânia a partir dos seus recursos. (Relembremos que oferecer aos EUA acesso aos recursos ucranianos constava do “plano de vitória” de Zelenski). Assumiu também uma posição hostil em relação às conversações com a Rússia e disse que não aceitaria os seus resultados.

E fez mais: imediatamente antes das negociações EUA-Rússia, os militares ucranianos atacaram interesses dos EUA na Rússia, a saber, um complexo petrolífero (Kropotinskaya Pumping Station, em Kuban) pertencente a empresas americanas. Tal só podia ter sido feito com autorização de Zelenski.

Acreditando-se Trump como máximo defensor dos interesses americanos, não tardou a responder à que efetivamente fora uma provocação, e na conferência de imprensa seguinte não se coibiu de dizer que Zelenski era “um ditador sem eleições” que tinha falhado ao evitar uma guerra que “não podia ser ganha” e que agora recusava conversações para a paz.

Se quiserem uma resposta mais diplomática, podem encontrá-la na conferência de imprensa do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov.

Tão mal que se dão. Tão pouco elegantes. Mas acabaremos por os ver a todos sorridentemente sentados à mesma mesa, elogiando-se mutuamente. A nós cabe-nos enviar os nossos filhos para a guerra. “Os que vão morrer te saúdam!”

Parafraseando Henry Miller (The Times of the Assassins), os monstros estão soltos, vagueando pelo mundo, fugiram do laboratório, estão ás ordens de quem quer que tenha a coragem de os contratar.

Notas:

É no blog de 10 de maio de 2017, “A ordem natural do negócio”, que refiro que quando foi do Katrina (Nova Orleães), “todas as informações, relatórios, imagens de televisão que descreveram a violência que se instalou, deram origem a histórias que circularam e chegaram a todos os lares. Subjacente a todas elas, muito embora fossem verdadeiras, encontrava-se sempre um elemento patológico e racista, para que no fim se pudesse dizer: “Veem? Os pretos são assim!”.

 Como diz Zizek, trata-se de “mentir a coberto da verdade”. Ou seja, ainda que o que se diga seja verdadeiro, os motivos porque o faço são falsos.”

Mais à frente, pergunto: “Será que os seres humanos são de si racistas, xenófobos, antissemitas, ou será que temos sido conduzidos perante um processo de ‘domesticação’ (dir-se-á hoje ‘formatação’) social?”

Exemplifico com a tomada do poder pelos nazis em 1933, em que grande parte dos intelectuais e professores universitários se manifestaram, agradecendo a Hitler por ter livrado a Alemanha da tripla ameaça da revolução russa, da decadência cultural e do declínio económico […] Heidegger diz:

  “Não são proposições e conceitos que garantem as leis do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”.

 https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/ 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Prabhat Patnaik - O ataque mundial aos trabalhadores




Proposição da “supply-side economics”:   “Os ricos trabalham melhor se lhes pagarem mais, enquanto os pobres trabalham melhor se lhes pagarem menos”.

*  Prabhat Patnaik [*]


Sob o capitalismo tardio, há um ataque ao povo trabalhador que faz lembrar o capitalismo inicial e este ataque é mundial, não só no terceiro mundo como também nos países capitalistas avançados. O ataque ocorre a três níveis:   económico, político e ideológico.

O assalto a nível económico tem sido muito falado e é o resultado tanto do aumento da inflação como do grande aumento do desemprego que atualmente afligem o mundo capitalista. A inflação mais elevada foi iniciada por um aumento espontâneo das margens de lucro administrado pelo grande capital, em particular nos Estados Unidos, que depois se espalhou por todo o mundo capitalista (o mecanismo desta propagação não será discutido aqui, mas num artigo posterior); e o aumento do desemprego é o resultado conjunto tanto da crise capitalista mundial como das tentativas oficiais de conter a inflação em todo o lado à custa da classe trabalhadora, reduzindo deliberadamente o emprego. A esperança oficial é que a força negocial dos trabalhadores seja suficientemente reduzida pelo aumento do desemprego, de modo a que não possam negociar salários monetários mais elevados para compensar a subida dos preços, o que acabaria por fazer com que a inflação se atenuasse.

O capitalismo nos primeiros anos da Revolução Industrial na Grã-Bretanha, já salientado por historiadores como Eric Hobsbawm, caracterizou-se por um aumento da pobreza; do mesmo modo, o capitalismo tardio também está a assistir hoje a um aumento do nível de privação absoluta para os trabalhadores. Joseph Stiglitz argumentou que o salário médio real de um trabalhador americano do sexo masculino em 2011 era ligeiramente inferior ao de 1968; com a atual inflação, os salários reais de hoje seriam ainda mais baixos do que em 2011 e, portanto, também em comparação com 1968. Se acrescentarmos a isto o maior desemprego atual nos EUA em comparação com 1968 (a taxa de desemprego oficial camufla este facto, uma vez que não tem em conta a redução da taxa de participação dos trabalhadores devido ao “efeito do trabalhador desencorajado” que funciona num período de desemprego elevado), não restam muitas dúvidas quanto ao aumento do empobrecimento entre os trabalhadores americanos. O mesmo se pode dizer dos trabalhadores de outros países capitalistas avançados. Em países como a Índia e o resto do Terceiro Mundo, há provas claras de um declínio do nível nutricional da população, medido pelo declínio da absorção per capita de cereais alimentares (considerando a soma dos cereais diretamente consumidos, utilizados como alimento para produtos animais e transformados em produtos alimentares) no período desde a década de 1980. Daqui se pode inferir um aumento inequívoco do nível absoluto de pobreza entre os trabalhadores. Por conseguinte, não se pode duvidar do ataque económico aos trabalhadores do mundo capitalista, sobretudo aos trabalhadores pobres.

Contudo, este ataque económico é impossível de sustentar sem restringir os direitos políticos do povo trabalhador; ou seja, sem um ataque político simultâneo contra eles. E esse ataque político tomou a forma do neofascismo que emergiu em grande escala por todo o mundo capitalista. Líderes neofascistas encabeçam regimes em muitos países agora, de Milei na Argentina, a Meloni na Itália, a Trump nos EUA, a Modi na Índia, a Orban na Hungria, a Erdogan na Turquia, para não mencionar Netanyahu em Israel, embora ele esteja em uma categoria própria; e em muitos outros países formações neofascistas estão na expectativa de tomar o poder, como o AfD na Alemanha e o partido de Marine Le Pen na França (neste último caso, frustrado até agora por uma Esquerda Unida).

O ataque político contra o povo trabalhador desencadeado por estas formações neofascistas combina a repressão direta dos trabalhadores e dos sindicalistas e a redução legal dos direitos dos trabalhadores com uma mudança de discurso, de ódio ao "outro", a alguma minoria infeliz e criando aversão entre ela e a maioria. Uma tal mudança de discurso não só relega para segundo plano as questões da vida material quotidiana dos trabalhadores, como também os divide em função de linhas religiosas ou étnicas (com repúdio ao "outro"escolhido), de modo a que não consigam montar uma resistência unida contra a privação económica que lhes foi infligida.

No entanto, para além deste ataque económico e político contra os trabalhadores, o que se torna agora particularmente notório é o ataque ideológico. Este também não se limita a comentários ocasionais feitos por esta ou aquela pessoa. Esses comentários contra os trabalhadores estão a ser feitos em todo o mundo, o que sugere o surgimento de uma conjuntura de ataque ideológico contra os trabalhadores.

Na Índia, face a esta carência económica, várias formações políticas, tentando adquirir poder político num regime económico incapaz de produzir mais emprego, têm oferecido transferências às populações. Estas transferências, demasiado pequenas para anular o empobrecimento económico do povo trabalhador (caso contrário, não teríamos assistido à privação nutricional mencionada anteriormente), foram, no entanto, atacadas pelos neofascistas no poder e pelo Primeiro-Ministro Modi como sendo “borlas” ("freebies"). Embora o próprio partido no poder tenha sido forçado, por compulsões eleitorais, a oferecer tais transferências à população, este ataque às transferências foi agora retomado por outros. O empresário que tinha pedido recentemente uma semana de 90 horas para os trabalhadores (pretendendo, de facto, criar um ambiente do tipo Auschwitz nas fábricas indianas), interveio, alegando que tais transferências, ou “brindes”, como ele também optou por lhes chamar, induzem as pessoas a não trabalhar. E agora também um juiz do Supremo Tribunal aderiu a este coro, sugerindo que as transferências impedem as pessoas de trabalhar, uma vez que podem ficar em casa, sem fazer nada e continuar a receber a sua “borla”. Se este juiz do Supremo Tribunal tivesse tornado obrigatório que o governo oferecesse empregos decentes às pessoas em vez de transferências, então a questão teria sido diferente; mas as suas observações foram feitas apenas contra as transferências, não a favor da oferta de emprego decente.

É claro que essas pessoas argumentariam que os empregos existem, mas são escassos; mas não só não apresentam provas para tal afirmação, como também não apresentam provas sobre o nível dos salários que estão a ser oferecidos para esses empregos que dizem estar a faltar. A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) constatou que na Índia existe uma grave falta de oportunidades de emprego digno. Os dados do governo sobre o emprego são gravemente errados, porque mostram que o trabalho não remunerado das mulheres em empresas familiares está a crescer, e este crescimento é contado como crescimento do emprego; mas este crescimento reflete a falta de emprego remunerado noutros locais e, por conseguinte, constitui aquilo a que os economistas geralmente chamam “desemprego disfarçado”.

Exatamente o mesmo ataque ideológico contra os trabalhadores está a ocorrer também nos EUA. Elon Musk, que dirige o “Department of Government Efficiency” (DOGE) criado por Donald Trump, é propenso, pelas suas observações, a efetuar cortes nos benefícios do Medicaid, Medicare e Segurança Social para os pobres, uma apreensão expressa pelo Senador Bernie Sanders recentemente (MR online, 13/Fevereiro). E este ataque às transferências para os pobres está a ser levado a cabo, segundo Sanders, a fim de que o dinheiro possa ser desviado para a concessão de reduções fiscais aos ricos, entre os quais se encontram pessoas como o próprio Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.

Trata-se de uma ofensiva ideológica de grande envergadura, que se enquadra nos princípios da chamada “supply-side economics”. John Kenneth Galbraith, o economista liberal, disse que a essência da “economia do lado da oferta” era a proposição de que “os ricos trabalham melhor se lhes pagarem mais, enquanto os pobres trabalham melhor se lhes pagarem menos”. Isto está a ser propagado agora por pessoas como Trump e Musk.

No entanto, há aqui uma ironia. A prossecução desta ideologia, que procura justificar que se tire dinheiro aos pobres para o dar aos ricos, só vai agravar ainda mais a crise capitalista. Uma vez que os pobres consomem mais por cada dólar que recebem, em comparação com os ricos, essa redistribuição apenas significará uma maior contração da procura de consumo agregado; e uma vez que o investimento dos capitalistas depende do crescimento esperado do mercado que, por sua vez, depende da experiência real de crescimento do mercado, simplesmente dar-lhes benefícios fiscais não aumentará o seu investimento nem um bocadinho. O resultado líquido será uma redução da procura agregada (considerando o consumo e o investimento em conjunto), o que só irá agravar a crise.

John Maynard Keynes, nos anos 30, que era um defensor do capitalismo e receava que algo como a Revolução Bolchevique pudesse ultrapassá-lo no Ocidente, havia sugerido que, para salvar o sistema capitalista, era necessário aumentar a procura agregada através do esforço governamental; aquilo a que estamos a assistir no capitalismo contemporâneo é exatamente o oposto disto, o que terá sem dúvida implicações políticas de grande alcance.

23/Fevereiro/2025  
Cartoon, autor desconhecido.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2025/0223_pd/worldwide-assault-working-people

https://resistir.info/patnaik/patnaik_23fev25.html

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

António Gil - Os russos estão a usar o secretismo como arma

* António Gil 

E isso é injusto porque os especialistas ocidentais não são capazes de calar a matraca.


Entende-se que os Ucranianos e seus Chefes ocidentais andem arreliados: o ano passado todas as semanas eles anunciavam publicamente o que iam fazer: atacar na direcção da Crimeia para cortar as tropas russas em duas fatias, recuperar Artemvisk (Bakhmut), ocupar a margem do Dniepr do outro lado da cidade de Kherson.


Eram informações honestas, não armadilhas, eles tentaram mesmo fazer tudo o que diziam. Os russos bem podiam retribuir, pensam eles, tendo a amabilidade de os informar de suas intenções. 


Mas não, eles são maus, mantêm a boca fechada. Até parece que a Guerra é um negócio secreto. Ah esperem, esperem, as guerras, antes da originalidade ucraniana, sempre foi um negócio secreto.


Já no passado, eles não avisaram os exércitos de Napoleão de que planeavam incendiar a Moscovo: deixaram-nos avançar para a grande cidade sem sequer um alerta amarelo. O alerta laranja e vermelho só piscaram quando Napoleão e seus guerreiros estavam tão pertinho da cidade que se podiam aquecer nas chamas.


Mais tarde, não avisaram o alto comando alemão que não abandonariam Leninegrado nem Estalinegrado.  Em consequência, a máquina propagandística de Goebbels ,anunciou várias vezes a captura das duas cidades enquanto os combates prosseguiam no miolo urbano das duas grandes povoações.

Tudo para zangar Goebbels, claro. E fazê-lo dizer: ‘foi desta, desta é que foi’’ para logo a seguir reconhecer: ‘ainda há escaramuças mas bom, nalgum ponto eles vão desistir’. Não desistiram, porém. Eles são teimosos e no fim foram os alemães que tiveram de retirar ou render-se.

Já deste lado, desde a 2ª guerra mundial, os chefes militares gostam de explicar nas TVs o que vão fazer. Não que isso seja mistério: eles usam sempre a táctica Obélix: Vamos lá (normalmente às capitais e grandes cidades dos países agredidos) e partimos aquela m*rda toda.

Uma legião de especialistas secunda-os, com mapas, modelos de aviões mísseis  e descrições abundantes de detalhes técnicos como a autonomia de voo, a velocidade, a capacidade explosiva de cada ogiva e por aí fora.

Os russos não fazem nada disso: são um país atrasado, diz-se. Eles não entendem que anunciar algo e fazê-lo mostra poder. Ainda estão naquela fase adolescente das festas-surpresa. 

Então, os militares, jornalistas, comentadores têm de tentar adivinhar: vai haver uma ofensiva a sério, daquelas com centenas de tanques e centenas de milhar de soldados? onde e quando? e de que estão eles à espera?

Que diabo: eles já têm tantos soldados fazendo pic-nics em terras que já pertenceram à Ucrânia! isto é uma guerra ou uma festa, para eles? por que não atacaram em força ainda? só para chatear, claro. Os russos são assim, adoram irritar seus inimigos, como se tivessem algo contra eles!

Esta espera está a matar os nossos especialistas todos, especialmente os que se movem a cocaína. Talvez eles devessem trocar um pó branco pelo outro: os opiáceos -diz-se - são também péssimos para a saúde mas pelo menos acalmam. 

mar 31, 2024

https://antoniojfgil.substack.com/p/russians-are-using-secrecy-as-a-weapon

Tiago Franco - MOMENTOS DE EMBARAÇO A DAR COM UM PAU |

* Tiago Franco 

A conferência de Munique, pelo furacão que lá passou, fez-me ligar a televisão. 

O resumo do que me pareceu ouvir, e que me fez corar de vergonha, está aqui:

- JD Vance, numa conferência sobre segurança, falou do clima, de firewalls e de imigração. Desprezou totalmente a questão ucraniana. 

- Mark Rutte (o novo bibelot da Nato) disse que as negociações de paz não incluem a adesão mas que no futuro, numa galáxia distante, quem sabe?

- Keith Kellogg, o enviado especial de Trump para as questões da Ucrânia, disse que a Europa não estaria na mesa das negociações e, que a própria Ucrânia, estaria numa fase mais adiantada (basicamente para lhes comunicarem a decisão)

- Trump aceita metade dos minérios raros do território ucraniano e, em troca, faz o acordo de capitulação da Ucrânia (é apenas isso que está a acontecer, nada mais). 

- Von Der Leyen diz que não há negociações de paz sem a Ucrânia (tal como não havia mísseis sem chips das máquinas de lavar)

- Costa diz que juntos somos mais fortes e pergunta se é cheia para todos ou se há quem prefira italiana.

- Zelensky acena com a hipótese de um exército europeu, partindo do ucraniano (que é neste momento o maior). Questiona também como é que é possível haver negociações sem a Ucrânia e alguém lhe fala no plano de paz/vitória que ele apresentou à Europa e à EUA (do Biden) sem mandar uma cópia ao Putin.

- Macron, vendo a bandalheira em que se tornou a conferência e o enxovalho que os americanos, totalmente alinhados com a Rússia, foram fazer a Munique, convoca os países europeus para uma reunião de emergência. Ali haverá muito brainstorming e medição de pilas. Portugal não foi convidado para o sonho molhado francês o que é uma pena. Ninguém mede como nós.

Feita a cronologia, resta-me dizer o seguinte. Quando Von Der Leyen e demais inúteis líderes europeus, andaram a fazer de capachos dos interesses americanos, quem os criticou foi apelidado de putinista. Lembram-se desses tempos?

Quando Von Der Leyen, sem exército ou armas, prometia apoiar a Ucrânia "for as long as it takes", fartaram-se de meter bandeirinhas e jurar "slavas" aos filhos dos outros que iam morrendo.

Quando a população europeia foi empobrecendo para pagar esta merda, vendo o óbvio lucro a ir para o outro lado do Atlântico, passámos a primários anti-americanos, nossos eternos aliados, que por acaso eram os beneficiários das sanções à energia russa e do fornecimento de armas.

Quando nos buzinaram, durante 3 anos, que mais uma remessa de armas X e a Ucrânia, venceria, não se podia dizer que, desde Maio de 2022, as posições russas estavam estabilizadas.

A Europa andou 3 anos a servir os interesses dos EUA e do seu braço armado, graças a uma casta de líderes do mais incompetente e desprovidos de tomates que alguma vez me lembro de ter visto. A custo de uma geração absolutamente arrasada na Ucrânia, que fez frente aos segundo maior exército do mundo, enquanto idiotas com responsabilidades nas políticas europeias nos juravam que os russos estavam a dias do colapso. Tudo isto foi dito, escrito, repetido. Nada do que está a acontecer hoje pode ser uma surpresa de tão óbvio que era (com ou sem Trump, já agora).

3 anos depois a Europa está cheia de regimes amigos de Putin (a próxima deverá ser a Alemanha) e os próprios EUA viraram para uma autocracia, onde apenas a lei do comércio importa. 

Dá dó ver Zelensky a ser entalado por quem lhe disse para avançar. Sinto vergonha com a impotência do discurso europeu que tenta mostrar uma posição de força sem ter como derramar sangue. Chegamos ao ponto de ver o velho continente a ser relegado para segundo plano, enquanto os impérios decidem as divisões que se seguem. E para piorar, ainda temos que aturar figuras patéticas como o Macron na liderança do grito do Ipiranga.

Em 2022 escrevi, não me recordo das palavras ao certo, que em 100 anos de história, só me lembrava de uma ou duas vezes (Afeganistão por exemplo) em que os russos, uma vez num conflito, voltassem de lá com as mãos a abanar. Mas não...a Ursula disse que com sanções, F16s e chuva de dinheiro, a coisa ia lá. O problema é que estava a falar com as calças do pai vestidas e ele, agora, resolveu pedi-las de volta.
Acabo como já acabei N textos sobre a Ucrânia. Estávamos exactamente neste ponto há 3 anos, no que a território dizia respeito. Tínhamos era mais um milhão de rapazes vivos, coisa que importa rigorosamente nada a quem decidiu este conflito, da Casa Branca ao Kremlin, passando por Londres e Bruxelas.

Num mundo ideal e com governantes dignos desse nome, esta era o momento em que a Europa começava a subir a escada da independência e da libertação deste papel de fantoche menor.

Com as actuais lideranças e a subida da facharia um pouco por todo o lado, temo que nada disso aconteça. 

O futuro na europa, com todos estes sinais, parece estar destinado a ser algo que nunca vivi mas que todo o livro de História, em especial do séc.XX, se encarrega de explicar.

https://www.facebook.com/tiago.franco.735
***
Antonio Gil
Algumas observações que não vão bulir nada com o tom geral deste texto:

Se a afirmação que a Ucrânia enfrentou o 2º exército mais poderoso do mundo tem em mente os EUA como o 1º não podia estar mais equivocada. Se nela está implícito que a China é o 1º mesmo assim é matéria para discussão (que não farei aqui).

Não estávamos exactamente neste ponto há 3 anos, no que diz respeito a território ganho pelos russos, nem de perto nem de longe. Isso é o que os média nos querem fazer acreditar quando falam de impasse. É observar como os russos avançaram desde o fim da chamada 'contra-ofensiva' ucraniana até aos dias de hoje e em aceleração constante, de lá para cá.

Tudo o resto subscrevo.

 Tiago Franco
Antonio Gil o primeiro é obviamente o exército chinês.

Antonio Gil
Tiago Franco : sob muitas métricas sim. Não todas porém.
 
Filipe Dourado
Eu que muitas vezes em campanha ando a falar com as pessoas já foi apelidado de Putinista 1000 vezes e os contra argumentos, quando tento explicar a posição política , são do nível pré-histórico com palito na boca . Alguns ainda dizem que foram camaradas mas que agora deixaram de ser pela posição que o Pcp tem sobre a guerra na Ucrânia . Ter razão tem consequências , pelos vistos negativas.