domingo, 21 de outubro de 2007

Arte de Furtar


Arte de Furtar

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Monumento da prosa barroca, a Arte de Furtar, hoje dominantemente atribuída ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667), é uma das obras emblemáticas do período da Restauração e o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI a XVIII. A sua redacção ocorreu, como se depreende do texto, em 1652, ou seja, ainda em vida de D. João IV, ao qual foi oferecida pelo autor, embora só quase um século depois tenha sido impressa
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Objecto da obra


O título da obra inscreve-se ironicamente numa linhagem de Artes de propósito didático publicadas em Portugal na primeira metade do século XVII, sob os Filipes ou já sob D. João IV, como a Arte de Navegar (1606), a Arte de Canto-chão (1618), a Arte de Orar (1630) e sobretudo, pela maior proximidade cronológica e temática, a Arte de Reinar de António Carvalho de Parada (1643). Mas não ensina a Arte de Furtar a roubar, antes inventaria as numerosas formas de roubo e desmascara as múltiplas espécies de ladrões, para que os leitores deles se acautelem e o rei lhes dê "o castigo que merecem". A roubalheira e a corrupção eram tão gerais, segundo o autor, que ele não aceitava que ninguém lhe arguisse a obra, à excepção do rei e do príncipe herdeiro (D. Teodósio, que morrerá em 1653 com 19 anos), já que todos os restantes lhe eram suspeitos. Assim, do clero à burguesia, passando pelos militares e pela nobreza, a todos vai o autor descobrindo as "unhas" e as "traças de ladrões", exceptuando convenientemente "os ministros que assistem a El-Rei" (ver excerto abaixo).
Na verdade, a Arte de Furtar fala de algo mais do que o seu título sugere. Fala de política, da qual o autor finge ter "poucos conhecimentos", mas de que traça uma genealogia diabólica (ver excerto). A crítica moralizante da "razão de Estado" denuncia o típico anti-maquiavelismo jesuíta na análise do fenómeno político. Decorria então a Guerra da Restauração, pelo que o assunto das relações de Portugal com Castela é igualmente tratado com todo o relevo. Ocupa-se ainda Manuel da Costa, pregador de ofício, da cobiça universal, da ganância desenfreada e insaciável que, segundo ele, começava nos indivíduos, que nunca se cansavam de perseguir riquezas, mercês, benesses e títulos, e acabava nas potências conquistadoras que, na ânsia de ouro e prata, por todo o mundo oprimiam, saqueavam e massacravam populações indefesas (visava Espanha, claramente, não tanto Portugal). É inevitável fazer o paralelo deste discurso moral com a verve do contemporâneo e confrade António Vieira, grande defensor dos índios e, como Manuel da Costa, opositor da escravatura e da pena de morte.

Publicação e autoria

Aquela que é considerada a "edição princeps" da obra apresenta o seguinte título: Arte de Furtar,/ Espelho de Enganos,/ Theatro de Verdades,/ Mostrador de Horas Minguadas,/ Gazua Geral/ Dos Reynos de Portugal./ Offerecida a Elrey/ Nosso Senhor/ D. João IV./ Para Que A Emende. Indica seguidamente ter sido «Composta pelo/ Padre António Vieira,/ Zeloso da Patria» e impressa em «Amsterdam,/ na Officina Elvizeriana 1652». Todavia, a autoria da obra, o local e o ano de impressão, bem como o impressor aí indicados são falsos (a oficina tipográfia é duplamente falsa, pois o seu nome deveria escrever-se "Elzeviriana"). De facto, o manuscrito, composto em 1652, manteve-se inédito durante mais de noventa anos, não sendo de excluir que durante esse período possam ter sido feitas algumas cópias. A obra teve, enfim, a sua primeira impressão em 1743 ou 1744, em Lisboa, pelo livreiro genovês João Baptista Lerzo, dono de uma tipografia no sítio do Loreto, actual Largo de Camões [1].

O facto de a Arte de Furtar ter aparecido sob os ditos disfarces e de ter sido, segundo um testemunho coevo, "subrepticiamente" impressa (isto é, ocultamente e sem as licenças necessárias), dá uma ideia do choque ainda causado pelo seu conteúdo um século depois de escrito, bem como dos obstáculos que o impressor teve que contornar para levar avante a sua publicação. Não que o conteúdo fosse ofensivo para D. João IV ou os seus sucessores (reinava D. João V quando a obra foi publicada). Os monarcas eram praticamente a única categoria de portugueses que o livro não acusava de roubo, antes os colocava nos píncaros. O tom da crítica e da denúncia era, porém, demasiado livre e ousado, arriscando-se a criar um precedente, se não mesmo a promover o género do libelo ou panfleto.

Foi tal o êxito da obra que pouco depois se seguiriam, ostentando já a data verdadeira de 1744, várias novas edições "emendadas de muitos erros", alegadamente impressas em Amsterdão, mas, na verdade, provenientes da mesma oficina lisboeta do genovês Lerzo[2]. A autoria do Padre Manuel da Costa só em meados do século XX foi documentalmente estabelecida, embora continuassem a surgir, ocasionalmente, reticências a seu respeito.



Pouco tempo decorrido sobre a primeira edição da Arte de Furtar, foram publicados vários escritos, ora recusando a autoria de António Vieira, como a Carta apologética de Cândido Lusitano, pseudónimo do Padre Francisco José Freire (1744), ora reafirmando-a, como a Dissertação apologética e dialogística atribuída a Francisco Xavier dos Serafins Pitarra (1746). Ao segundo autor replicou ainda Francisco José Freire com Vieira defendido (1746). Refira-se como curiosidade que a Arte de Furtar foi proibida em Espanha por édito da Inquisição de Janeiro de 1755, onde se declara ser falsamente atribuída ao padre António Vieira, aliás morto há meio século quando o livro entrou em circulação. «Passou depois para o corpo dos Índices Expurgatórios do mesmo Tribunal» [3]. A denúncia das "unhas" castelhanas teve certamente a ver com essa proibição. Não há notícia de que a Arte de Furtar tenha sido condenada pela Inquisição em Portugal, o que é muito significativo.

Admitia-se já no século XVIII poder ser Tomé Pinheiro da Veiga o autor de Arte de Furtar, embora o impressor Lerzo não tenha aparentemente hesitado em publicá-la como sendo do Padre António Vieira. Instalou-se depois a polémica, com sucessivas atribuições e contestações, mas continuou até ao século XX a prevalecer o nome de António Vieira, o mais susceptível de garantir o êxito editorial. Além dos citados, foram sugeridos como possíveis autores João Pinto Ribeiro, Duarte Ribeiro de Macedo, António da Silva e Sousa, António de Sousa de Macedo e D. Francisco Manuel de Melo.

Finalmente, em 1940, foi avançado o nome, até então desconhecido no mundo das letras, do jesuíta Padre Manuel da Costa, natural do Alentejo. O autor da descoberta foi o investigador jesuíta Francisco Rodrigues, que em Julho de 1940 apresentou uma memória ao Congresso do Mundo Português, dada à estampa sob o título O Autor da Arte de Furtar. Resolução de um antigo problema (1941). Francisco Rodrigues encontrara em Roma, no arquivo central da Companhia de Jesus, uma informação enviada de Lisboa, coeva da feitura da Arte de Furtar (então ainda em manuscrito, mas já alegadamente "célebre"), em que a autoria do jesuíta Manuel da Costa era expressamente desvendada: «Compôs o P. Manuel da Costa uma Arte de Furtar, que deu a el-rei e foi coisa célebre neste reino...» Essa informação, só parcialmente transcrita por Francisco Rodrigues em 1941, encerrava outras informações pessoais sobre o pouco ortodoxo Padre Manuel da Costa, cujo comportamento era denunciado pelo informador jesuíta de Lisboa ao jesuíta destinatário de Roma. Segundo o remetente, o Padre Manuel da Costa beneficiava de uma grande condescendência, tanto na Companhia como fora dela, por força de influentes relações e da aceitação de que usufruía junto do próprio D. João IV. Veja-se o estudo de J. Pereira Gomes (1965), que revelou os trechos inéditos do mesmo documento.

Não pararam na década de 1940 as especulações sobre a autoria da Arte de Furtar, devido à inicial má recepção do nome do Padre Manuel da Costa pelos estudiosos da questão. A revelação incompleta do documento de Roma por Francisco Rodrigues (1941), bem como a impossibilidade de outros investigadores a ele acederem, explica em parte essa má aceitação.[4] Por outro lado, autores como o português Joaquim Ferreira (1942, 1945) e o brasileiro Afonso Pena Júnior (1944) não reconheciam ao obscuro jesuíta alentejano a qualidade literária, a veia polémica e satírica, bem como os conhecimentos necessários (militares, administrativos, económicos, jurídicos, etc) para escrever obra crítica de tão grande vulto, preferindo-lhe as autorias de, respectivamente, Francisco Manuel de Melo e António de Sousa de Macedo. Estas autorias, porém, não eram sustentadas por nenhum documento coevo ou fidedigno e deixavam sem solução mais questões do que as que pareciam resolver. Em compensação, as provas apresentadas pelo historiador Francisco Rodrigues foram consideradas credíveis, compatíveis e praticamente inatacáveis, sobretudo depois de completadas e reforçadas por J. Pereira Gomes (1965). As referências do autor da Arte de Furtar a factos por ele presenciados em Espanha, em Évora, no Algarve e na Madeira ficaram cabalmente explicadas com a atribuição da obra a Manuel da Costa, que comprovadamente residiu nesses locais nas datas indicadas no livro [5].


Apreciações da Arte de Furtar

Obra "valiosíssima da literatura portuguesa, de cunho original, de estilo ameno e desenfastiado, instrutiva, clássica" — assim a qualificou o historiador jesuíta Francisco Rodrigues, que descobriu a sua verdadeira autoria. E acrescentava: "O autor, na sua veia satírica, umas vezes jocosa, outras acerada e cáustica, enquanto parece que expõe e ensina os processos e arte de furtar, informa elegante e adequadamente o leitor sobre a maneira de atalhar furtos e desarmar ladrões" [6]. Rodrigues não duvida de colocar o Padre Manuel da Costa, autor desta "obra patriótica", em lugar de honra entre os escritores da Restauração de Portugal [7].

Na sua História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Óscar Lopes destacam na Arte de Furtar a "graça literária" e o alto "valor informativo", de que, segundo eles, só a Fastigímia de Tomé Pinheiro da Veiga se aproximaria no século XVII. A obra de Manuel da Costa, cuja autoria aceitam e corroboram, é para Saraiva e Lopes um depoimento literário muito completo da realidade social do tempo de D. João IV, em que "se espelham ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais" (idem). Destacam, ao lado da dimensão panfletária e crítica da obra, o "aspecto apologético, de claro apoio ao rei". Segundo eles, o livro conteria capítulos que "são autênticas súmulas para uso régio" (idem). Ao nível da descrição dos factos isolados e dos comportamentos sociais típicos, Saraiva e Lopes acham que o realismo da Arte de Furtar é imbatível, superando de muito o melhor dos Apólogos Dialogais (de Francisco Manuel de Melo), e acrescentam: "Possívelmente, nenhum panfleto da nossa literatura o iguala" (idem).



Excertos da obra


.........SOBRE A HONRADEZ DOS MINISTROS DE D. JOÃO IV:


    «Grande louvor merecem [...] todos os ministros que assistem El-Rei nosso Senhor, porque vemos que tudo o que possuem, com não ser muito, é mais para o servirem, que para o lograrem. Nem se pode dizer de Sua Magestade, que Deus guarde, que tem validos mais que dois, que se chamam Verdade e Merecimento.» [8]


.........SOBRE A POLÍTICA:


«Todos falam na política, muitos compõem livros dela, e no cabo nenhum a viu, nem sabe de que cor é. E atrevo-me a afirmar isto assim, porque, com eu ter poucos conhecimento dela, sei que é uma má peça, e que a estimam e aplaudem, como se fora boa; o que não fariam bons entendimentos, se a conheceram de pais e avós, tais, que quem lhos souber, mal poderá ter por bom o fruto que nasceu de tão más plantas. E para que não nos detenhamos em coisa trilhada, é de saber que no tempo em que Herodes matou os inocentes, deu um catarro tão grande no Diabo, que o fez vomitar peçonha; e desta se gerou um monstro, assim como nascem ratos ex materia putridi, ao qual chamaram os críticos Razão de Estado. E esta senhora saiu tão presumida, que tratou de casar, e seu pai a desposou com um mancebo robusto e de más manhas, que havia por nome Amor Próprio, filho bastardo da primeira desobediência. De ambos nasceu uma filha a que chamaram Dona Política. Dotaram-na de sagacidade hereditária e modéstia postiça. Criou-se nas cortes de grandes príncipes, embrulhou-os a todos. Teve por aios o Maquiavelo, Pelágio, Calvino, Lutero e outros doutores desta qualidade, com cuja doutrina se fez tão viciosa, que dela nasceram todas as seitas e heresias que hoje abrasam o mundo. E eis aqui quem é a senhora Dona Política». [9]


Notas



  1. Ver a "Introdução" da Arte de Furtar na edição crítica de Roger Bismut, de 1991.

  2. Vd. Roger Bismut, 1991.

  3. Inocêncio, t. I, p. 307

  4. Mais recentemente, o documento foi novamente publicado na íntegra por Maria Luisa Cusati (1996).

  5. Ver também Roger Bismut, op. cit., "Introdução".

  6. F. Rodrigues, 1941.

  7. Idem.

  8. Arte de Furtar. Edição crítica..., Lisboa, 1991, p. 327.

  9. Idem, pp 331-332.



Bibliografia



  • Arte de Furtar. Edição crítica, com introdução e notas de Roger Bismut, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1991 (Bismut apoia a autoria do Padre Manuel da Costa.)

  • Manuel da Costa, Arte de Furtar, Clássicos de Bolso, Ed. Estampa, Lisboa, 2001

  • Francisco Rodrigues SJ, O Autor da Arte de Furtar. Resolução de um Antigo Problema, Liv.ª Apostolado da Imprensa, Porto, 1941.

  • J. Pereira Gomes SJ, "Manuel da Costa, autor da Arte de Furtar", revista Colóquio, n.º 34, Junho de 1965, pp. 42-45.

  • Francisco José Freire (pseud. Cândido Lusitano), Carta apologetica, em que se mostra, que não he author do livro, intitulado Arte de Furtar o insigne P. António Vieira da Companhia de Jesus, escrita por hum zeloso da illustre memoria deste grande escritor, Régia Officina Sylviana, Lisboa, 1744.

  • Francisco José Freire (atrib.), Vieira defendido: diálogo apologético em que se mostra, que não he o verdadeiro author do livro intitulado Arte de Furtar o Padre António Vieira da Companhia de Jesus, Régia Officina Sylviana, Lisboa, 1746.

  • Francisco Xavier dos Serafins Pitarra (atrib.), Dissertação apologetica, e dialogistica, que mostra ser o author do livro Arte de Furtar digno disvelo do engenho illustre do padre Antonio Vieyra, em resposta de huma carta, escrita por hum ignorado zeloso da memoria do dito Padre, Régia Officina Sylviana, Lisboa, 1746.

  • Joaquim Ferreira, Dom Francisco Manuel Escreveu a Arte de Furtar, sep. do Instituto, Coimbra Ed., Coimbra, 1942.

  • Joaquim Ferreira, Dom Francisco Manuel de Melo Escreveu a Arte de Furtar, Domingos Barreira, Porto, 1945.

  • Afonso Pena Júnior, A Arte de Furtar e o seu Autor, Livr. José Olympio, São Paulo, 1946.

  • António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.ª edição, Porto Editora, Porto, 1996.

  • Inocêncio F. da Silva (e Brito Aranha), Dicionário Bibliográfico, Lisboa, 1858-1923.

  • Maria Luisa Cusati, "Introduzione bibliografica all'Arte de Furtar", AION-SR (Annali Istituto Universitario Orientale, Napoli, Sezione Romanza), 1983-1, pp. 215-251.

  • Maria Luisa Cusati, "O apógrafo eborense da Arte de Furtar", AION-SR, XXV, 2, (1983), pp. 605-634.

  • Maria Luisa Cusati, "A propósito da Arte de Furtar e da sua primeira tradução", in Actas do I Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Poitiers, 1988, pp. 275-283.

  • Maria Luisa Cusati, "Un problema di bibliografia testuale: l'Arte de Furtar e l'ultima volontà dell'Autore", Studi in memoria di Erilde Melillo Reali Napoli, IUO, 1989, pp. 63-75.

  • Maria Luisa Cusati, "L'edizione di un testo anonimo portoghese del XVII secolo: tra 'bibliografia e materiale' e informatica", in I moderni ausili all'ecdotica, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1994, pp. 371-383.

  • Maria Luisa Cusati, "Padre Manuel da Costa in 'Historia et Acta' (Lus. 55): a proposito dell'Arte de Furtar", AION-SR, XXXVIII, 1, (1996), pp. 89-105.

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Obtido em " Arte_de_Furtar - Wikipedia

Afrodite: Arte de Furtar, Anónimo do Séc. XVII

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Extractos

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Arte de Furtar- Espelho de Enganos, Teatro de Verdades, Mostrador de Horas Minguadas, Gazua Geral dos Reinos de Portugal, Oferecida a El-Rei Nosso Senhor D. João IV Para Que a Emende.



“Não perde a arte seu ser por fazer mal, quando faz bem e a propósito esse mesmo mal que professa, para tirar dele para outrem algum bem, ainda que seja ilícito.” (Do capítulo I, COMO PARA FURTAR HÁ ARTE, QUE É CIÊNCIA VERDADEIRA)

“Se há reis ladrões é questão muito arriscada. Certo é que os há e que não furtam ninharias. Quando empolgam são como as águias reais, que só em coisas vivas e grandes fazem presa. Milhafres há que se contentam com sevandijas, mas a rainha das aves com coisas maiores tem sua ralé.”
(Do capítulo XIV, DOS QUE FURTAM COM UNHAS REAIS)

“Toda a unha que arranha é aguda, e toda a unha que furta arranha até o vivo – logo todas as unhas que furtam são agudas. (...) E destas há milhares que na fazenda de el-rei fazem grandes estragos, com alvitres e conselhos que despontam de agudos e levam a mira em encherem as bolsas (...) E destes há alguns tão destros que provêm todos os ofícios em seus criados, para lhes pagarem serviços próprios com salários alheios: e são os piores; porque com as costas quentes em seus amos, procedem afoitos nas rapinas”.
(Do capítulo XXXIII, DOS QUE FURTAM COM UNHAS AGUDAS)

“Unhas dobradas são as que se armam de vários modos e invenções para furtar, com tal arte, que nunca lhes escapa a presa. Há na dialética um argumento, que chamamos dilema, porque joga com duas proposições, como com pau de dois bicos, que necessariamente vos haveis de espetar em um deles. Tais são os ladrões que chamo de unhas dobradas, porque as aguçam de sorte que, por uma via ou outra, lhes haveis de cair nelas.” (
Do capítulo XXXV, DOS QUE FURTAM COM UNHAS DOBRADAS)

“Vê-los-ei andar no Paço, fazendo mesuras a cada passo e tirando a gorra à légua – chapéu, queria dizer, que já não se usam gorras. Não lhes taxo a cortesia, que é virtude muito própria da corte; mas noto a intenção e as palavrinhas com que a acompanham, as quais, examinadas na pedra de toque da experiência são unhas de aço que não só arranham créditos alheios, mas empolgam para si, que é o principal intento, em tudo o precioso, que cuidam se poderá dar aos outros.” (Do capítulo XXXVI, COMO HÁ LADRÕES QUE TÊM AS UNHAS NA LÍNGUA)

“Ladrões há dos quais podemos dizer que têm mais mãos que o gigante Briareu, porque lhes não escapa conjunção, lugar, nem tempo. Como se tiveram mil mãos, à dextris e à sinistris, não erram lanço. E isso vem a ser furtar com mãos próprias, que não é muito; mas furtar até com mãos alheias é destreza própria desta arte, que vence na malícia e sutileza de todas as artes.”
(Do capítulo XXXVII, DOS QUE FURTAM COM A MÃO DO GATO)

“Assim como há unhas fartas, também as há mimosas, que são suas filhas e por isso piores, por mal disciplinadas porque, para regalarem a seus donos, furtam mais do necessário. Furtar o necessário, quando a necessidade é extrema, dizem os teólogos que não é pecado porque, então, tudo é comum e não há nem meu nem teu, quando se trata da conservação das vidas, que perecem por falta do que hão mister para se sustentarem; mas furtar o supérfluo, para animar o corpo e regalar a alma, é caso digno de repreensão e ainda mal que sucede muitas vezes.”
(Do capítulo XLIII, DOS QUE FURTAM COM UNHAS MIMOSAS)

“Dos áspides escrevem os naturais que mordem e matam com tanta suavidade que não se sente (...) Tais são as unhas insensíveis. Tiram a vida aos remos mais robustos e esgotam a alma aos tesouros mais opulentos com tanta suavidade que não se sente o dano senão quanto tudo está morto. Estas são as unhas dos estadistas, alvitristas, áspides do inferno que persuadem aos reis, com razões suaves e sofisticadas, que lancem fintas, que ponham tributos, que peçam donativos aos povos, sem mais necessidade que a de sua cobiça. Digo que são suaves as razões que dão, porque não há coisa mais suave que o recolher dinheiro, e digo que são sofísticas, porque as vestem de aparências do zelo do bem comum – e na realidade são cutelos que degolam as repúblicas” (Do capítulo LI, DOS QUE FURTAM COM UNHAS INSENSÍVEIS)

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in blog de adriano: Pérolas aos poucos / XXIII / Arte de Furtar

1 comentário:

Belisa disse...

OLá

Aqui está uma obra que desconhecia até agora " A arte de furtar", pelos vistos não só ensina como previne esse acto.
Está para mim explicado e sentido de "anda meio mundo a roubar outro meio" quer dizer que pelo menos meio mundo já leu o livro?
Agora vou eu deduzir:-Para comprá-lo entre outros requisitos é preciso dinheiro extra! resumindo andam os ricos a roubar os pobres!
mas quem serão os ricos os cultos...bem vou parar por aqui pois daqui a pouco já estou com outras ideias e a "escambar"...ou será "furtar"?

Beijos estrelados