sábado, 31 de outubro de 2015

os gatos - 4 poemas e uma foto


foto victor nogueira - porto - o gato da minha tia teresa, 


1 -. – Vinicius de Moraes – O gato
 
Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
Se num novelo
Fica enroscado
Ouriça o pêlo, mal-humorado
Um preguiçoso é o que ele é
E gosta muito de cafuné

2.- Fernando Pessoa – Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa, 1-1931

3. – Alexandre ´Neill -  Gato

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

4. – José Jorge Letria - Ode ao Gato

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.


José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"

Mário Cesariny - Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos

«Coitado do Álvaro de Campos!»
«Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!»
«Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!»
«Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,»
«Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita
«Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
«Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes profissão.»
«Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!»
«Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!»
«E, sim, coitado dele!»
«Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam.»
«Que são pedintes e pedem,»
«Porque a alma humana é um abismo.»
«Eu é que sei. Coitado dele!»
*
«Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,»
«Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto)»
«Depois, ponto vago no horizonte (ó minha angústia!»
«Ponto cada vez mais vago no horizonte.»
Fernando Pessoa, Obra Poética
Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
E agora, neste momentoque horas são?
a telefonista guarda o baton na mala pousa os auscul-
tadores liga electricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou
qualquer coisa
para começar o dia
o banqueiro sentou
se, puxou de um charuto havano,
pensou um bocado na família
e começou o dia
a varina infectou a perna esquerda nos lixos da
Ribeira
e começou o dia
o desempregado ergueu-
-se, viu chuva na vidraça,
e imaginou-
-se banqueiro
para começar o dia e o presidiário, ouvindo a sineta das nove,
começou o seu dia sem dar inicio a coisa alguma.
Agora fumo, trepidação,
correias volantes de um a outro extremo da fábrica
isolada,
cigarros meio fumados em cinzeiros de prata,
bater de portas pás! em muitas repartições,
uma velha a morrer silenciosamente em plena rua
e um detido a apanhar porrada embora acreditem
nele.
Agora pranto e pranto
na bata da manicure apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão, milhões de anos para trás,
patas em vez de mãos, beiços em vez de lábios,
crocodilos a rir em corredores bancários
apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto e nada disto
em plena e indecorosa licenciosidade comercial
pregando partidas, coçando, arruinando, retorcendo
o facto atrás dos vidros
um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre às
ordens!
(a velha já morreu e no seu leito de morte
está agora um automóvel verdadeiramente aerodi-
nâmico
e a tocar telefonia: and you, and you my darlyng?)
Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!
E eu?
Eu, nada. Eu, eu, é claro…
Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bas-
tante alto
Penso que a questão é esta: a gente, certa gente
sai para a rua,
cansa-
-se, morre todas as manhãs sem proveito nem
glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante
altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou
inteiramente o gato
mas de gato para cimanem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira
me o estô-
mago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo
cosida. tão ininte-
ligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.
E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente
que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite
foi comprar para o cinema
porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por
amor de Deus, ah, não! não! isso não!, não
se atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que, vê o logro? A quem é que isto
cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige
três quartas de cinema
e sim três quartas partes pretas de lã carneira?
Porque é que a pianista compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas e no peito do louro
galã yankee?
E porque raio despede o senhor Director três humí-
limos empregados
quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda
não viu um que lhe enchesse as medidas?
Com certa espécie de solidariedade
1embro-me de ti, Mário de Sá
Carneiro,
Poeta gato
branco à janela de muitos prédios altos
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se
todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber,
mas isso é já outra história…)
E com uma solidariedade muito mais viva
lembro-me de ti, meu vizinho de baixo,
sapateiro
branco mas no rés-do-chão, desta
vez
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã à noite
com uma casa de seis andares em encima de ti.
Também tu foste empurrado, também te disseram:
Fora, gato!
Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando em ti todas as tuas grandes
qualidades
vais vivendo um pouco à margem, um pouco no
quinto andar
Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo
e decido-me a andar mas para quê ? Mas para
onde ?
As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa
tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário vê-se logo
mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico
me atraem
quanto mais estes! E aqui é que começa o em-
bróglio…
O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim ? Ou assim ?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa escura que te deram.
Eu
estudei música, como toda a gente
(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)
Não. Por aqui não nos entenderemos.
Estudemos outro papel. Outro fim. Outras músicas.
Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo
fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)
Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante natu-
ralidade
e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?)
Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado quem é que disse que pode?
Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao cais
com um certo ar simpático de proletário dos mares
e apinhado de gente tanta espécie dela!
Depois a meio do rio, destacado e nítido,
depois um ponto vago no horizonte (ó minha an-
gústia ! )
ponto cada vez mais vago no horizonte
e de repente, ao virar uma esquina, já depois de
outra esquina,
vejo uma nova espécie de enforcado
um homem novo em cima de um escadote
a colar afixar cartazes deste género:
VOTA POR SALAZAR
Páro. Páro de novo. Pararei sempre enquanto
afixarem cartazes deste género.
Curioso, curiosíssimo este género.
Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.
Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que
importa.
Um chefe é grande ,pelas suas obras, pelo amor que
inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome calcula essa coisa qualquer que qual-
quer fulano tem!
Vota por Salazar ora pois ó meu povo
vota por sete letras muito bem arrumadas em três
sí-la-bas.
Deito a cabeça para trás para deixar sair a gar-
galhada
e aproximo-me do homem em cima do escadote
aproximo-me tanto que ele nota
alguém que se aproxima
e o braço cai-lhe, grosso, pingando água num balde
(…)
Mário Cesariny de Vasconcelos
versão publicada em Nobilíssima Visão
https://viumhomem.wordpress.com/2009/03/21/louvor-e-simplificacao-de-alvaro-de-campos/

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Paul Vaillant-Couturier - Jeunesse



Jeunesse (Arranged By Louis Durey)


JEUNESSE
Paroles de Paul Vaillant-Couturier
Musique d'Arthur Honegger - 1937
Nous sommes la jeunesse ardente
Qui vient escalader le ciel
Dans un cortège fraternel
Unissons nos mains frémissantes
Sachons protéger notre pain
Nous bâtirons un lendemain qui chante
(REFRAIN)

Comme un torrent qui se déploie
Courons, dansons, rions, luttons
Avec tous ceux que nous gagnons
Brisons la chaîne qui nous broie
Vivent la paix, la liberté !
Notre printemps veut un été de joie
(REFRAIN)

Un ciel rayonnant nous convie
A la conquête du bonheur
Avec nos vingt ans d'un seul cœur
Le monde entier se lève et crie
Place, place au travail vainqueur
Chantons, amis, chantons en chœur
(REFRAIN)

Allons les filles, plus de larmes
Nous construirons notre foyer
Pour la lutte il faut vous lier
A de braves compagnons d'armes
Par nos efforts, les temps nouveaux
Nous donneront sur les berceaux
Leurs charmes !
(REFRAIN)

Nous les fils de quatre-vingt-treize
De la Commune aux noirs charniers
Et des héros de février
Pour que la haine enfin s'apaise
Sur nos champs
Et sur nos cités
Nous vous apportons l'unité
Française !
(REFRAIN)


REFRAIN : En avant ! Jeunesse de France !
Faisons se lever le jour,
La victoire avec nous s'avance.
Fils et filles de l'espérance
Nous ferons se lever le jour
A nous la joie.
A nous l'amour

« Nous bâtirons un lendemain qui chante » : thème repris par le militant communiste Gabriel Péri dans sa dernière lettre, avant d'être fusillé comme otage au Mont Valérien en décembre 1941 (« je meurs pour des lendemains qui chantent ».
La dernière strophe est une allusion au mot d'ordre communiste du « Front Français » (élargissement du Front Populaire aux catholiques et aux anciens Croix de Feu). La dernière strophe est une allusion au mot d'ordre communiste du « Front Français »
Paul Vaillant-Couturier (1892-1937), journaliste, écrivain, député communiste et rédacteur en chef de l'Humanité. Arthur Honegger (1892-1955), compositeur suisse, fondateur du « groupe des six » avec Darius Milhaud (1918, réunion de jeunes musiciens)

http://centenaire.parti-socialiste.fr/article.php3%3Fid_article=329.html

Manuel Cruz - coitus interruptus


* Manuel Cruz

Nem nos meus tempos de ganapo, em que "ía ao peixe" com a minha mãe ao Poço dos Negros, assisti a tanta peixeirada junta. A direita, esta direita porque há outra que anda queda e muda, perdeu a cabeça e as estribeiras com a possibilidade das forças "estalinistas" tomarem o poder através de um PS que terá, nas exaltadas palavras das regateiras de serviço, abdicado da sua identidade e jorrado para o monturo 40 anos de cedências e compromissos tantas vezes molestos para Portugal e para o seu encornado povo. Agora, graças a António Costa, que quer "agarrar o poder a todo o custo", os comunistas voltaram a ter alguma, o mais certo muito pouca, influência nos destinos do País. E a direita, esta direita à direita da direita, não perdoa. Planeou, nos seus quartéis-generais, em gabinetes de guerra, a melhor forma de defrontar Costa e a besta comunista. E mais não conseguiu do que arregimentar uma dúzia de peixeirinhas de luxo que saltam de canal para canal, em horário nobre, a execrar a esquerda, a anunciar o apocalipse, a interromper o interlocutor, qualquer que ele seja, aos gritos, aos ais, aos ataques destemperados, de uma alarvidade e de um primarismo sem igual em tempos de democracia. Mas, neste festim de regateiras, não estão sós. Veja-se a triste figura que fazem os entrevistadores, cuja inclinação para a direita quase os faz cair da cadeira, interrogando sem querer saber a resposta, atacando, tentando abrir fissuras nesta "aliança" entre as esquerdas. Veja-se o papel dos comentadores, sempre os mesmos com os mesmos argumentos, a mesma verrina, o mesmo primitivismo antidemocrático. São dignos do presidente que admiram, do líder que seguem, dos Dias Loureiros e dos Duarte Limas que os precederam. São a nata da Nação. São as vendedeiras e vendilhões de mentiras, de falsas promessas, de ameaças de cataclismos iminentes se os comunistas, os social-fascistas em linguagem agora ressuscitada por uma certa "esquerda", conseguirem fazer de Portugal a Sibéria do Sul, um gigantesco gulag, um inferno na Terra. Por mim, se fosse a eles, já tinha chamado a NATO para uma invasão das nossas praias. Já tinha apelado ao Carlucci para se encontrar com Cavaco. Já tinha desenterrado as mocas de Rio Maior. Já tinha incendiado uns quantos centros de trabalho do PCP e do BE. Já tinha enchido a Alameda numa Marcha de Caçarolas perfumada a Chanel nº 5. Já tinha mandado, para um qualquer Tarrafal, Costa, Martins e Sousa. Já tinha abarrotado o Estádio Nacional de comunas, esquerdalhos e socialistas atrevidos. Já tinha ressuscitado Pinochet. Já tinha chamado, à minha divina presença, António de Oliveira Salazar. Já tinha recuado até aos anos gloriosos do Estado Novo. Mas, por enquanto, fiquemo-nos pelas regateiras. Em bacanal de arranhões, num doloroso coito finalmente interrompido. Agora sim, parece que sim, que vão sair de cima.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Ricardo Araújo Pereira - Esta casa tem regras


clicar na imagem para ler

http://entreostextosdamemoria.blogspot.pt/2015/10/visao-29102015-p122.html

Portugal. A CRIATURA


quinta-feira, 29 de outubro de 2015




Que não está cá para matemáticas. O governo é coisa séria. Não há cá esquerdices para ninguém. Um milhão de votos? Brinquem no parlamento. No governo só maiorias amigas. Era o que mais faltava.

Alice Brito – Esquerda, opinião

Quando a criatura fala a mediocridade delira. A criatura é um homem cinzento. Da cor do cimento. Às vezes parece mansa. Sonsa. Lassa. De uma lentidão de azeite. Mas não é. A criatura, quando é chamada a decidir, esganiça-se, sobe o tom e a velocidade. Discursa. Mal, mas discursa. Só fel.

A criatura absolve e branqueia crimes cometidos pelos seus oficiais. Trava combates a descair para a peçonha.

A criatura é míope de alma. É um homem sem visão. Pior que isso, é um homem sem olhar. Há por ali uns orifícios que contêm olhos. Só isso. Nem expressão, nem qualquer evidência de que ali haja outra coisa que denote um mínimo de vida interior.

O que terá lido a criatura ao longo da vida? Com sorte o Pato Donald. Aposto que nunca leu o Asterix. Asterix? Demasiado ousado, eventualmente subversivo.

Por isso dá erros. Fala em “cidadões” porque realmente o que ele domina é a gramática dos interesses. Tem, aliás, razão para isso. Bem lucrou com ela!

A criatura gostaria de ter à sua frente uma esquerda letárgica, num ensimesmado torpor sonolento. Uma esquerda pianinha, conformada, coisa menor e recatada.

Saiu-lhe ao caminho uma esquerda lampeira e a criatura passou-se.

Quando há tempos soou o grito helénico a criatura avisou. Cuidado.

Os avisos são aliás a sua especialidade. Ele avisa que o sol vai nascer, que o inverno vai ser mais frio que o Verão, e que os mercados estão indispostos. A semana passada pediu-lhes que vomitassem.

No dia em que a criatura saltou do ecrã e entrou descaradamente em casa das pessoas disparou mais um discurso: Pensei em tudo. Nos cenários, na música, coreografia e actores e texto.

E tão honesto, tão dado à disciplina e ao rigor, tão vertical nos seus compromissos, roncou um grito de guerra convocando alguns deputados para o exercício da facada. Não votem com o vosso partido. Votem com o meu.

O discurso fez ricochete e o tipo lixou-se. Os destinatários da encomenda da traição fizeram-lhe um grandessíssimo manguito. Podou dúvidas e fez crescer certezas. O homem é, de facto, um traste.

Até os apaniguados do costume abanaram a cabecinha.

Entretanto, a lei constitucional contorce-se na aflição do incumprimento.

Cá fora, neste Outono inseguro, longe dos cenários e decisões e dislates, a passividade treinada ao longo de décadas sucessivas deu de si enquanto, por outro lado, se anuncia uma coisa parecida com um governo. Uma coisa volátil como éter, efémera como uma guinada de abcesso. Mesmo assim, notável na dimensão do descaramento. É a continuidade a que acresce o piorzinho da utensilagem laranja.

Ainda não tomou posse e já ali se pressente a penugem do bolor.

Vamos ver o que a criatura fará, quando cair sem história nem glória o pano sobre a farsa.

Vamos ver até onde nos levará o narcisismo cavaquista. Continuaremos a empobrecer em duodécimos? Continuaremos com esta tribo a governar-nos?

Esta gente não presta. É gente filha do séc. XXI e de mais qualquer coisa.

Alice Brito - Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Que tal é o novo Astérix?



Que tal é o novo Astérix? Há 30 anos que não era tão bom

"O Papiro de César" é o melhor livro de Astérix desde os anos 80. Ele não está à altura das grandes obras de Goscinny e Uderzo, mas após tantas décadas de fome sempre dá para consolar a barriga.

João Miguel Tavares

Título: O Papiro de César

Autor: Jean-Yves Ferri (texto) e Didier Conrad (desenho)
Editor: Asa
Páginas: 48
Preço: 12,90 €

Há uma maneira simpática e uma maneira antipática de analisar o novo livro de Astérix. A maneira antipática é dizer que ele não chega aos calcanhares dos melhores livros assinados por Goscinny e Uderzo – o que é verdade. A maneira simpática é dizer que este é o melhor livro de Astérix em 30 anos – o que também é verdade.

Tudo somado, e tendo em conta que três décadas de orfandade gaulesa conferem o direito a um certo consolo crítico e noticioso, mais vale começar pelos elogios e valorizar o facto de a dupla que tomou conta da série em 2013 – Jean-Yves Ferri (texto) e Didier Conrad (desenho) – ter resgatado Astérix do enorme buraco onde Albert Uderzo o tinha enfiado.

Estamos, claro está, a falar da qualidade artística da obra: em termos financeiros, e com a chegada da série ao cinema de imagem real em 1999, a máquina de produzir sestércios nunca deixou de carburar (os quatro filmes realizados desde então alcançaram quase 50 milhões de espectadores, só em França), e mesmo os últimos (e péssimos) livros assinados por Uderzo atingiram sempre tiragens de três milhões de exemplares.

Só que a certa altura, sobretudo com o inenarrável O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça (2005), onde entravam extraterrestres, super-homens, naves inspiradas na BD japonesa, um mau da fita que parecia o Duende Verde do Homem-Aranha e um bom da fita que tinha roubado as luvas ao rato Mickey, o caso atingiu níveis de inimputabilidade. Aquilo fazia tanto sentido num álbum de Astérix como marisco num cozido à portuguesa.

Perante isso, a família de Albert Uderzo lá terá arranjado finalmente coragem para convencer o senhor a parar de torturar os pobres gauleses, que apesar de resistirem ainda e sempre ao invasor estavam com manifestas dificuldades em resistir ao seu criador.

A verdadeira razão para isso já foi repetida inúmeras vezes: René Goscinny, o genial argumentista de Astérix, Lucky Luke ou Iznogoud, era a grande alma da série, e ela nunca recuperou da sua morte, no já distante ano de 1977.



Eram os seus notáveis argumentos que faziam toda a diferença,com a Gália do ano 50 a.C. transformada num engenhoso espelho onde se refletiam as preocupações da França contemporânea. Através de notáveis anacronismos e jogos de linguagem só acessíveis a leitores mais sofisticados, Goscinny mantinha ao mesmo tempo uma pulsão aventureira capaz de agradar aos mais jovens, e foi essa mistura de níveis de compreensão que impulsionou a série para o sucesso.

Para quem quiser saber mais sobre Goscinny, aqui fica um pequeno e divertido vídeo:




E aqui fica um longo documentário, René Goscinny: Profession Humoriste (1998), de Michel Viotte:




Astérix não é caso único de orfandade – Lucky Luke padeceu do mesmo mal. Após a morte de Goscinny, Morris continuou a desenhar Lucky Luke com péssimos resultados, e ele só voltou a ter alguma gracinha recentemente, quando Achdé e Laurent Guerra pegaram na série.

Uderzo, nesse aspecto, foi mais inteligente, porque publicou muito menos e geriu muito melhor o legado de Astérix. Além disso, justiça lhe seja feita: Goscinny sempre foi excelentemente servido pelo magnífico traço de Uderzo, um argumentista medíocre mas um extraordinário desenhador.

Aliás, se o atual trabalho de Didier Conrad não deixa de impressionar pela sua fidelidade a Uderzo, há sempre ali qualquer coisa que fica aquém, tal como o falsificador de quadros tem grandes dificuldades em captar a verdadeira alma do artista. O traço é competentíssimo, sem dúvida, mas nunca atinge a elegância e a harmonia dos melhores momentos de Uderzo.

Só que o argumento de Jean-Yves Ferri, mesmo não chegando também ele perto do virtuosismo de livros como A Volta à Gália,Astérix na Córsega ou O Domínio dos Deuses, é muito mais consistente do que qualquer coisa que Uderzo tenha escrito. Ele parte de uma boa ideia inicial – a publicação da obra (autêntica)Guerras da Gália, de Júlio César – para a partir daí iniciar uma reflexão sobre as fugas de informação e o papel dos media no mundo actual. À boa maneira goscinnyana, existe um protagonista decalcado de Julian Assange (Gerapolémix), que tenta divulgar publicamente um capítulo eliminado de Guerras da Gália e é perseguido pelos romanos por causa disso, refugiando-se na inevitável aldeia gaulesa. 



Nesse sentido, O Papiro de César é bem mais conseguido e ambicioso do que o primeiro livro assinado pela dupla Ferri/Conrad em 2013, Astérix entre os Pictos, que se limitava a ser uma aventura mais ou menos convencional passada na Escócia. Ainda assim, o sucesso desse livro permitiu a Jean-Yves Ferri e a Didier Conrad largarem tudo o que faziam para se dedicarem em exclusivo a Astérix – e os resultados desse esforço são agora bem visíveis. Os novos pais do irredutível gaulês parecem estar definitivamente encontrados.

Não vale muito a pena continuar a chorar pelo Astérix das décadas de 60 e 70, porque, na verdade, não é só Goscinny que não volta – é também a nossa juventude e um mundo onde a banda desenhada era a porta de entrada de todos os miúdos no mundo das letras. Esse tempo acabou, levado por muitas das tecnologias que são agora parodiadas em O Papiro de César, pelo que mais vale conformarmo-nos com o que há. E o que há é isto: um novo Astérix que não envergonha o seu passado. Já não é mau.

http://observador.pt/2015/10/23/que-tal-e-o-novo-asterix-ha-30-anos-que-nao-era-tao-bom/

domingo, 25 de outubro de 2015

Guizos, a narrativa poética sobre o homem e sua loucura

23 de outubro de 2015 - 12h23 


Um jovem médico encontra uma criança cega num parque qualquer e a leva para casa, afinal, o pequeno precisa de alguns cuidados e ninguém melhor que um profissional de saúde para atendê-lo. O plano de fundo da história de Tom e o garoto que deixou seu olhos num lago, como se fossem guizos, são a dependência de uma relação de amor “um tanto incompreensível, mas singular”, explica o autor da peça Guizos, Luiz Henrique Dias. 

Por Mariana Serafini


João Aira


Cena da peça Guizos

O personagem Tom é a fusão do homem e sua loucura apresentado por meio de uma narrativa que beira a poesia, sem deixar de lado a prosa. “Guizos narra, mas narra musicalmente, ao menos foi a minha vontade ao escrever o texto”, revela o dramaturgo. 


A peça obscura e minimalista traz à tona um relacionamento que à primeira vista pode ser encarado como “um texto sobre a pedofilia”. Mas não, a história choca ao desarmar o espectador e fazê-lo perceber que a fragilidade e a dependência tem o mesmo grau em ambos os personagens, o que leva a crer que o pequeno não é necessariamente a criança que Tom descreve. “A pedofilia, na verdade, é um simbolismo. Tom, meu personagem, tem um relacionamento de dependência mútua com a outra parte aparentemente mais frágil, que é representada por uma criança sem olhos”, explica Luiz. 


Guizos é fruto da escola contemporânea de teatro experimentada no Brasil a partir do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, de Curitiba, onde Luiz Henirque desenvolveu o texto sob a supervisão do diretor Roberto Alvin. Esta vertente do teatro valoriza a palavra, a sonoridade, o poder do silêncio. Cada palavra está exatamente onde deveria e o ator longe de ser a atração principal no palco.


Segundo Luiz, o teatro contemporâneo ainda é pouco difundido no Brasil e vive do “fomento ou de boa vontade: fomento do público e boa vontade privada”. Ele conta que apesar de haver um público cativo, esta vertente ainda não é a preferência no país, então há dificuldades para manter as peças em cartaz. 


O estilo pode parecer pouco simpático aos olhos de quem está acostumado a atores expansivos, cenários extravagantes e comédias rasas com eventuais pontas de ironia. Pouco ou nenhum cenário, iluminação certeira e atores cuja principal função é empoderar a palavra são marcas desta vertente e, obviamente, características presentes em Guizos


“Não existe experimento sem mecenas. Isso vale para pra tudo que é experimental, do teatro até a busca para a cura de doenças. Então a gente (os poetas, os encenadores, os cientistas) pena para sobreviver”, conta.


Luiz Henrique é o autor de Guizos e nesta versão atual é também o ator. Mas a obra já foi montada outras vezes, com outros atores. Sua principal influência é o ator e dramaturgo britânico Harold Pinter, mas se inspira ainda no escritor francês Michel Vinaver, “mágico com as palavras”. No Brasil ele admira Roberto Alvim e Andrew Know. 


A peça está em cartaz no teatro da Livraria da Vila, no Shopping Higienópolis, na capital paulista, sábados às 20 horas e domingos às 18 horas. A censura é 16 anos, os ingressos custam R$40 e R$20. 


Leia um trecho de Guizos: 


"A convivência destrói a relação. Há alguns dias tivemos um desentendimento. Não havia motivo aparente, mas sua presença me incomodava, me tomava o espaço, me sufocava. Todos os dias atrás de iodo e sopas. Começamos a ter um convívio mais carnal, pelo menos de minha parte. Eu o procurava três ou quatro vezes por dia, o trabalho no consultório estava pesado e eu precisava descontar o sorriso que eu era obrigado a oferecer àquela gente. Saía pelos fundos e corria para seu quarto. Ele já não mais me queria, fazia sinal de dor, de desprazer. Eu estava infeliz com aquilo. Me dedicava dia e noite ao trabalho e à nossa casa. Cheguei a pensar nos mortos e nos espelhos falando, mas decidi então não voltar novamente naquela noite." 

http://www.vermelho.org.br/noticia/271859-11



alexandre o'neill - UM ADEUS PORTUGUÊS

* Alexandre O'Neill

Nos teus olhos altamente perigosos 
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz dos ombros pura e a sombra 
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo 
à roda em que apodreço 
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira 
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual
  
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta pequena dor à portuguesa 
tão mansa quase vegetal

 Mas tu não mereces esta cidade não mereces 
esta roda de náusea em que giramos 
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser

 Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio 
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
  
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti