18-3-2011
O REINO DA ESTUPIDEZ
A Inquisição de Coimbra foi especialmente dura com dez
estudantes que prendeu no ano de 1779. À morte de Pombal, os Inquisidores
sentiram que os ventos da política lhes eram agora favoráveis e afiaram as
garras. Os livros proibidos proliferavam em Coimbra, e a simples posse era
sancionada pelo Santo Ofício. Bastou que dois estudantes amedrontados
apresentassem as suas denúncias, para que os Inquisidores ficassem com um rol
de nomes à sua disposição (Ver A Inquisição no tempo da
Viradeira). Os estudantes brasileiros estavam mais fragilizados que os
outros, porque não tinham em Portugal parentes chegados que os pudessem tentar
proteger. Assim, foram presos no grupo os estudantes seguintes vindos do
Brasil:
António Pereira de Sousa Caldas (1762 -1814) , o Caldinhas;
António de Morais e Silva (1755 – 1824);
Francisco de Melo Franco (1757 – 1823).
A vingança deste último, foi escrever um poema em que põe a
ridículo a Universidade de Coimbra e o seu Reitor, conseguindo fazer a difusão
do poema sem ser conhecido. Foi nisso ajudado por José Bonifácio de Andrada e
Silva (1763 – 1838), recém-chegado do Brasil, que fez algumas cópias do poema.
Teófilo Braga narrou estes casos na sua História da
Literatura (ver aqui) e
também na História da Universidade de Coimbra, vol. III, pags. 675 a 697). É o
segundo texto que aqui transcrevo e que se refere especialmente ao poema.
É neste momento critico que aparece manuscrito em Coimbra um
poema em quatro cantos, em verso solto, intitulado Reino da Estupidez,
descrevendo o estado mental dos lentes da Universidade e do seu reitor, o
Principal Mendonça. O poema apareceu ou correu de mão em mão anónimo, e
provocou réplicas e Epistolas satíricas, com alguns desgostos causados por
infundadas suspeitas. Atribuiu-se ao Dr. António Ribeiro dos Santos, homem
grave, erudito e privado de todo o espírito irónico; atribui-se ao jovem poeta
brasileiro António Pereira de Sousa Caldas, que sairá da Inquisição de Coimbra,
e se achava em 1784 em Paris; também se chegou a atribuir a Ricardo Raimundo
Nogueira. Estavam todos inocentes desse louvável pecado. Ninguém imaginava que
o Reino da Estupidez era uma sublime vingança do estudante de medicina
Francisco de Mello Franco, que jazera nos cárceres da Inquisição de Coimbra por
o acusarem de Enciclopedista. O seu poema heroi-comico teve o poder da Nemesis,
da justiça implacável: lançou por terra o governo do Principal Mendonça e
provocou as novas reformas encetadas sob o governo do Principal Castro. Hoje,
passados mais de cem anos, são os versos desse poema um quadro pitoresco, vivo,
sarcástico, pintado do natural e com flagrante realidade. Aqui a arte serviu-se
dignamente do elemento satírico como instrumento de demolição do que se
prolonga além do seu tempo.
No meio da indisciplina geral em que ia caindo a
Universidade, era natural que o Dr. José Monteiro da Rocha, que tanto
trabalhara na regeneração dos estudos com D. Francisco de Lemos, não considerasse
o governo do Principal Mendonça como favorável ao novo regime pedagógico e se
visse forçado a manifestar o seu voto individual no Conselho dos Decanos.
Tratando-se da nomeação do Vice-Conservador da Universidade, António José
Saraiva do Amaral, fez o Dr. Monteiro da Rocha consignar nas actas do conselho
o seu protesto contra a inabilidade do nomeado. Foi isto comunicado pelo
vice-reitor ao Principal Mendonça, que tratou imediatamente de obter do governo
uma carta régia para que o voto individual de Monteiro da Rocha fosse trancado;
efectivamente foi passada essa carta em data de 19 de Abril de 1784. [1] O Principal
Mendonça, fortificando-se com ela, chamou em 3 de Junho o secretário da Universidade,
Gaspar Honorato da Motta e Silva, aquele pobre homem de quem faz engraçada
chacota o poema do Reino da Estupidez nos versos:
O douto secretário, que em Aveiro
Alçou já vara branca, e subescripsi
Põe no fim do papel... [2]
Mas o pobre homem era um homem digno e forte pela sua
probidade; apresentou-se-lhe. Ordenou o Principal Mendonça que lhe trouxesse o
Livro dos Conselhos e lhe mostrasse a folha em que estava o voto de Monteiro da
Rocha, para ser riscado, conforme a carta régia que lhe notificou. O secretário
declarou que nada riscava sem primeiramente lavrar o auto da ordem que recebia
e transcrever a carta régia que tal mandava. O Principal Mendonça, defrontando-se
com um homem consciencioso, disse-lhe que tinha razão. Depois da leitura da
carta régia pelo secretário, na qual ele era censurado, declarou com
simplicidade que nada registara, porquanto o voto que escrevera fora no Livro
dos Conselhos, nos quais por ordem dos mesmos lavra todas as decisões; e que
por assento do mesmo Conselho aí se declara que por unanimidade se resolveu que
ficasse escrito o voto do Dr. José Monteiro da Rocha. O Principal Mendonça
confessou que ignorava esse facto, atribuindo-o só á deliberação dele
secretário. Replicou-lhe Motta e Silva, que logo depois da sessão lhe fora
entregue uma certidão autêntica da acta. Apanhado nesta perfídia, o Principal
Mendonça confessou que não reparara na acta e que informara mal o governo a respeito
dele secretário. Que se não afligisse, porque trancando-se o assento do
Conselho de decanos tudo ficava sanado. Com toda a hombridade declarou o
secretário que só riscava o voto, porque só isso mandava a carta régia, e ali
no mesmo Livro dos Conselhos lhe mostrou outras decisões unânimes com documento
da aprovação régia junto delas exarado [3].
Quando o governo do Principal Mendonça estava nesta situação
tensa, em que se achava o corpo docente dividido na Universidade que
Deus haja e na Universidade que Deus guarde, como diziam
os espectadores a frio, caiu neste microcosmo uma bólide, uma Sátira intitulada
o Reino da Estupidez, que foi lida por todos avidamente, apesar de circular em
cópias manuscritas. Compreende-se que tempestade levantariam em uma terra
pequena, fechada aos interesses do resto do mundo, esses arrastados e mal
metrificados hendecassílabos, mas que transudavam o mais fundamental desdém
sobre o pedantismo doutoral e monacal, que imperavam na Universidade. Aí se
glorifica com toda a efusão o Dr. Monteiro da Rocha, como o porta-estandarte
das reformas pedagógicas pombalinas. Como o som da trombeta que fez ruir os
muros de Jericó, agora o poema do Reino da Estupidez teve o prestigioso poder
de libertar a Universidade, apeando o Principal Mendonça. Isto basta para
justificar a necessidade de conhecer este valioso documento literário que se
tornou histórico; e mesmo porque ele suscitou muitas outras sátiras em que se
pinta a vida da Universidade.
O poema é precedido de um pequeno prólogo, em que se
patenteia o intuito do autor, que se conservou no mais rigoroso anonimato, por
ninguém esperar o golpe de um desconhecido e perseguido estudante. É o
contraste desta impotência pessoal com a omnipotência da ideia que nos faz
olhar com respeito para o poema do Reino da Estupidez.
Começa o Prólogo: «Vai ó Poema, não digo discorrer pelo
universo, porque sei que estás escrito em português, mas ao menos corre as mãos
de todos esses que compõem a Universidade.—... diz somente que o fruto que
daqui levam os Legistas é a pedanteria, a vaidade e a indisposição de jamais
saberem; enfarinhados unicamente em quatro petas de Direito romano, não sabem
nem o Direito pátrio, nem o Público, nem o das Gentes, nem Política, nem
Comércio, finalmente, nada útil. Que os Canonistas saem daqui com o cérebro
entumecido com tanto Direito de Graciano, sem crítica, sem método, com alguns
verdadeiros imensos Cânones apócrifos, dando ao Papa a torto e a direito poderes
que lhe não competem por titulo nenhum, e debulhando os Reis dos que por
Direito da Monarquia lhes são devidos. Com estes não te abras mais, e
acrescenta que é melhor morar em uma casa vazia do que em uma cheia de trastes
velhos e desconcertados, onde reina a desordem, a confusão e a imundície. Deves
pois confessar que a reforma trouxe à Universidade as Ciências Naturais, que na
verdade tiveram e têm ainda alguns mestres dignos de tal nome, mas que estes
ficam tão submergidos pela materialidade dos Companheiros que fazem a maior
porção, que para os distinguir é preciso ter vista bem perspicaz; tanto reina
ainda aqui mesmo a Estupidez. Adverte, enfim, que não reparem em não fazermos
menção dos senhores Teólogos, devendo ser os primeiros, porque ex
fructibus eorum cognoscetis eos (S. Mat., c. i.) e invertendo, ex
illis cognoscetis fructus eorum. “
O poema consta de quatro cantos em verso solto, e a sua
estrutura geral lembra o Laus Stultiæ de Erasmo; a situação
era análoga, apesar de três séculos de distância. A Estupidez, entidade
alegórica, sente-se repelida do norte, vem descendo pela Europa, e não achando
abrigo na Alemanha, na França, na Inglaterra, aonde prevalece a civilização,
resolve, acompanhada do Fanatismo, da Superstição e da Hipocrisia, procurar as
amenas regiões das Espanhas.
O bando chega a Lisboa; é o assunto do canto segundo, em que
se descreve a petulância dos fidalgos impunes nos seus atentados; a exploração
dos Padres Capuchos, exorcistas de mulheres, e a sensualidade de um bispo
galante; então a Superstição sustenta que deve em Lisboa assentar a Estupidez o
seu trono:
Lisboa já não é, torno a dizer-vos,
A mesma que há dez anos se mostrava:
É tudo devoção, tudo são terços,
Romarias, novenas, via-sacras.
Aqui é nossa terra, aqui veremos
A nossa cara irmã cobrar seu Reino.
Mas o Fanatismo opôs-lhe uma objecção:
Agora pois só resta que assentemos
Se deve ser aqui se em Coimbra
A nossa cara Irmã entronizada.
Nesta corte, anos há, se tem fundado
Uma coisa chamada Academia;
Mas isto, quanto a mim, sem diferença
É um corpo sem alma, que não pode
Produzir acção própria, ou um fantasma
Que em bem poucos minutos se dissipa.
O meu voto é que vamos demandando
O mesmo assento donde foi lançada
A mansa Estupidez injustamente.
O canto terceiro é a descrição de Coimbra, cercada de
aprazíveis campinas e férteis vales, apresentando «os mais belos passeios do
universo.» Corre a fama de que está prestes a chegar a Estupidez:
A académica gente alvoroçada
Não pensa, não conversa noutra coisa;
Em quase todos geralmente reina
Excessiva alegria, e nos Conventos
De que consta a cidade em grande parte
Mandam os Guardiães, que os refeitórios
De mais vinho e presunto se reencham.
Começa a carga ao Principal Mendonça, que convoca a
Universidade para Claustro pleno, para ser solenemente recebida a Estupidez:
Da Universidade o grande Chefe
Um Claustro universal convoca logo,
Para que em pleno conselho votem todos
O que deve fazer-se neste caso.
Mendonça tira o barrete e acena ao Lente de prima de
Teologia que comece; este, tomada a vénia ao auditório, principia com ênfase:
De que podem servir estes estudos
Que mais da moda se cultivam hoje?
A bárbara Geometria tão gabada,
Que mil proposições todas heréticas
Aqui faz ensinar publicamente,
Sabeis para que presta neste mundo?
Diga-o a Inquisição e mais não digo. [4]
Ó góticos estudos nunca ouvidos,
Nos tempos em que tanto florescia
Um Seara [5], maior do que o seu
nome
Um Pupilo, um Fr. Paulo de San Mauro, [6]
Que sempre chorarão os Frades Bentos!
Historias Naturais, Foronomias,
Químicas, Anatomias, e outros nomes
Difíceis de reter, são as Ciências
Que vieram trazer os Estrangeiros.
E depois de deblaterar contra as dissecções «um cadáver
humano espatifando» termina que se receba a Protectora, e que o domínio que
sempre foi seu em paz governe. Chega a vez de falar Tirceo (José Monteiro da
Rocha, lente de prima em Matemática), que faz uma eloquente evocação à memória
do Marquês de Pombal e repele o culto da Estupidez que agora se implanta:
Ainda reinará, com mágoa o digo,
Na nossa Academia essa tirana
Essa vã Divindade; mas protesto
Que nem hoje o aprovo, e que inimigo
Há-de em mim encontrar, enquanto o sangue
Seu círculo fizer neste meu corpo.
No canto quarto o Reitor manda pregar um Edital na porta da
sala dos actos grandes para irem em préstito receber a Estupidez, que se vai
hospedar no convento dos Cónegos de Santa Cruz, e ali dá beija mão e lhe fazem
entusiásticas alocuções. Recitam-lhe uma Oração de sapiência, e a Estupidez,
aceitando «a geral confissão de vassalagem», abençoa-os, dizendo: «continuai,
como sois, a ser bons filhos.»
O poema apareceu firmado pelo pseudónimo Fabrício
Cláudio Lucrécio. Suspeitaram que seria escrito por algum lente partidário
da reforma pombalina. Apontaram Ricardo Raimundo Nogueira e António Ribeiro dos
Santos [7]; este
último, que incorrera nos ódios do Principal Mendonça, era o mais visado. Ele
mesmo narra este incidente em duas cartas inéditas que inserimos:
«Meu amigo, as notícias que me mandais não são de
contentamento; corre já por lá o Poema da Estupidez, e sou abocanhado por autor
dele. Com efeito houve aqui quem se atreveu a imputar-me esta obra: fundou-se
em conjecturas que outros colheram como certezas sem mais exame; o que serve de
mostrar quanto é crédula a malignidade humana. Porto, etc.» [8]
«Meu amigo.— Desejais saber qual foi o encontro que eu tive
com o Principal Mendonça, Reformador-Reitor da Universidade, e qual o caso que
ele representou a Sua Majestade como um acto de resistência e atentado contra a
sua autoridade. Eis aqui a história tão verdadeira que dou toda a Universidade
por testemunha.
«Em 7 de Janeiro deste ano houve uma Congregação da
Faculdade de Cânones: o Principal propus nela para se votar:— Se as Conclusões
magnas, que os Presidentes pelos Estatutos são obrigados a subscrever, deviam
ser subscritas antes ou depois de entrarem na censura.
«António Henriques da Silveira, lente de Prima e presidente
dos Actos grandes, assim que o Prelado fez a proposição deu-se por suspeito e
pediu licença para se retirar; e ausentou-se. Eu e outros censores da Faculdade
ficámos enleados a ouvir isto, e muito mais quando o mesmo Prelado nos intimou
que saíssemos também da mesma Congregação como suspeitos. A este passo rompi eu
o silêncio, em que ficámos, e lhe representei que tratando-se ali de um ponto
literário pertencente à observância do Estatuto não havia interesse pessoal, e
consequentemente nem lugar para suspeições. Tornou-me: Que não vinha disputar;
que os censores podiam alegar suas razões se quisessem, mas que expostas elas,
se deviam ausentar. Respondi que a minha obrigação era votar na Congregação,
quando a lei me mandava, e que a não ser nesta figura não podia ali ter outro
lugar. Com isto me retirei e comigo os mais censores. Ficaram na Congregação
três únicos catedráticos e decidiram a questão de plano.
«Eis aqui o facto referido com toda a simplicidade; à vista
dele parecia impossível que o Principal Reformador pusesse na presença da
Rainha a Conta a que se refere o Real Aviso que depois apresentou em outra
Congregação; Aviso que supõe dissensões na Faculdade, falta de reverência em
alguns dos indivíduos, e até espírito de partido e rebelião, etc. Mas quem vê
mais de perto as molas desta máquina conhece que as disposições anteriores em
que estava o Prelado a meu respeito fizeram que tudo quanto eu dissesse lhe
representasse muito diverso do que na verdade era, e que aproveitasse todo o
lanço de me vexar e afligir. Deveis saber que ele nunca me viu com boa sombra,
e sinto ver-me obrigado a dizer-vos os motivos, e a falar contra um Prelado a
quem devo atenção e respeito; mas força-me a isto a necessidade em que ele
mesmo me pôs de ressalvar a minha honra. Este fidalgo é muito aferrado aos
estudos e opiniões com que foi criado, e é muito sensível à adulação, sempre o
governou quem teve a baixeza de o lisonjear por mais grosseira e sórdida que
fosse a adulação e lisonja; é por extremo teimoso, e reputa por altivez e
atentado sacrílego a mais leve diferença de opinião que encontra nos outros.
Ultimamente é parcial declarado do seu Colégio de S. Paulo, e assenta que deve
seguir o partido do Colégio em todas as ocasiões que se oferecerem.
«Havendo no Principal estas disposições, logo desde o
princípio do seu governo me foi desafeiçoado, primeiramente porque o puseram
logo na persuasão de que as minhas opiniões eram diversas das suas; depois
considerava-me como criatura do seu antecessor, a quem ele aborrecia como
declarado Pombalista; além disto eu era do Colégio das Ordens Militares e não
de S. Paulo, a que ele pertencia, e sabeis as intrigas dos Colégios. Demais,
suposto que o tratasse sempre com o respeito e reverência devida ao seu lugar,
nunca contudo me humilhei a lisonjeá-lo com abatimento e a fazer-lhe elogios
aduladores e rasteiros. Porque as pessoas que ele tinha a seu lado, ambiciosas
de o dominarem sem competidor, e conjuradas contra todos os que não seguiam o
seu partido, fomentaram estas minhas ideias, e se aproveitaram de todas as
ocasiões de me malquistarem com ele, representando-me como um homem soberbo,
que queria passar por superior aos demais homens.
“Estas eram as disposições do Principal Reformador quando
desgraçadamente apareceu o chamado Poema da Estupidez. Parece impossível que
houvesse pessoa que me conhecesse, a quem pudesse ocorrer baptizar-me por autor
deste Poema. Eu, certamente, não presumo de Santo, nem de Poeta; mas cuido que
nem me reputam tão maligno e insolente que me atrevesse a escrever uma Sátira
que desacredita os meus companheiros, o meu Prelado e a minha Nação; nem tão
ignorante que, resolvendo-me a pegar na pena para compor tais desatinos,
tivesse a loucura de publicar versos tão miseráveis. Contudo houve quem
aproveitasse a ocasião de me infamar; e apesar da suma improbabilidade para
semelhante imputação, da opinião contrária de todos os homens sensatos e desapaixonados,
e da gravidade do caso, consta que algumas pessoas das que mais figuram na
Universidade tiveram a ousadia de dizerem ao Principal que eu era o autor do
Poema, e de fazer circular a calúnia entre os seus parciais e apaniguados.
«O argumento de que principalmente se valeram foi que
falando-se no Poema em Colégio de S. Pedro (riscado dos Militares)
e aparecendo pelo seu nome alguns indivíduos do de S. Paulo, havia um alto
silêncio a respeito dos Colégios dos Militares; logo, diziam eles, o autor
pertencia a este Colégio; e como sabiam que eu tinha feito algum verso noutro
tempo, concluíram que também agora havia escrito esta Sátira. Se esta casta de
gente fosse capaz de proceder de boa fé, e com desejo sincero de descobrir a
verdade, conheceria à primeira vista: 1.º que falando o Poema indistintamente
em Colégio, compreendida também nesta generalidade o das Ordens Militares; 2.º
que ainda quando a respeito deste se guardasse silêncio, podia isto proceder ou
do acaso ou ainda a afeição que o autor da Obra tivesse àquele Colégio, sem daí
se poder concluir que ele pertencia àquela casa; 3.° que se o autor fosse
Colegial dos Militares por isso mesmo havia de tocar no seu Colégio para
remover toda a suspeita e evitar que se falasse nele; 4.° ultimamente que,
ainda quando contra toda a razão e verosimilhança se pudesse conjecturar que o
autor pertencia aos Militares, não havia fundamento algum para se pôr o dedo em
mim, sendo constante que eu era naturalmente sério e mui recatado em falar das
pessoas da (Universidade?).
“Estas provas, e outras ainda piores inculcadas com arte, em
ocasiões oportunas, e ora em tom persuasivo, ora em ar de compaixão, como quem
se condoía de que eu aplicasse tão mal os meus talentos, produziram ao que
julgo todo o efeito que os caluniadores pretendiam. O Principal estava
costumado a crer cegamente quanto eles lhe diziam, e as provas mais fracas, a
que talvez acrescentariam factos absolutamente falsos, lhe pareceriam na sua
boca argumentos de irresistível evidência; e como tudo isto achava já um animo
disposto e preocupado, assentou firmemente que eu tinha sido o autor daquela
obra; cresceu por conseguinte a sua antiga aversão, desejou ter meios de se
desagravar, e assentou em aproveitar toda a ocasião de me mortificar e oprimir.
Ofereceu-se-lhe esta logo na Congregação de 7 de Janeiro. Os seus validos, que
me tinham representado como homem altivo, insolente e desatento quando me deram
por autor do Poema, lhe haviam dito que eu era um dos que pensavam suscitar na
Faculdade de Cânones que o Presidente devia subscrever as Teses antes da
censura, só a fim de vexar e descompor os lentes de Prima e de censurar e
desaprovar o que eles tinham autenticado com a sua firma; e que todo o meu
sistema era singularizar-me dos outros, desprezar a sua literatura e o seu
método e mostrar-me superior; cheio destas preocupações entrou o Principal na
Congregação, e com tais disposições nem é de admirar que tudo o que eu
dissesse, por mais comedido e ajustado que fosse, lhe parecesse cheio de
acrimónia e altivez, nem que depois exagerasse as minhas acções na presença de
S. Majestade, figurando-as como factos insolentes, altivos e tumultuosos.
Dei-vos conta de toda a história, e ficai sabendo cada vez mais o que são os
homens. Desejo-vos saúde e paz, únicos bens que vos podem fazer feliz. D.s vos
g.de m. am. Porto.» [9]
O atribuir-se a sátira a um lente fez com que lhe ligassem
mais importância, e pouco depois correu um poema em sete cantos, em sextinas
rimadas, intitulado O Zelo, oferecido aos Admiradores da Estupidez, por
Patrício Prudente Calado; aí se apontam entre os autores imputados o Caldinhas (António
Pereira de Sousa Caldas) e o Malhão tio e o sobrinho. Mas
andavam longe, muito longe, da verdade. Transcrevemos no entretanto algumas
estrofes do Zelo que pintam o estado dos espíritos e a
situação da Universidade:
CANTO I
Fervia a papelada, que inspirava
O rancor, e inveja a vates pobres,
E sem rebuço impávida atacava
Ilustres almas e talentos nobres,
Das batinas, das becas, do Prelado
Querendo ver o crédito ofuscado. (St. 1.)
Vê o Chefe de Atenas que a mentira
Intenta profanar o seu respeito;
Mas não arde sua alma em fogo de ira,
Porque habita a clemência em um nobre peito,
Por mais que brade a intriga por cem bocas,
Não se abala ao gritar de Musas loucas. (St. 3.)
…………………………………………………………………………
Um crítico maligno a pena toma
Corta nas becas, morde os estudantes.
Contra os Lentes nenhuma força o doma,
Ataçalha com dentes arrogantes,
Qual pantera ou leão, qual tigre ou ursa,
Batinas, becas e sagrada murça.
Com pretexto de amante patriota
Serve ao seu interesse, e desbocado
Intentando tomar diversa rota
É de todos um crítico malvado;
Elefante ferido que se solta
E contra os seus a tromba volta.
Diz sem pejo este bárbaro inimigo
A quem fúria infernal a boca abriu,
Que a Academia de seu fervor antigo
Por culpa de uns e outros decaiu;
Que reina a Estupidez e o Pedantismo,
E que geme no antigo Barbarismo.
Mas eu sempre quis que durassem restos
Do gosto depravado de algum dia.
Que fossem testemunhos manifestos
Do estado, em que dizia inda estaria,
Se um Carvalho ao Mondego não mandasse
E se um raio de luz lhe não soltasse.
Se um Lemos cuidadoso não criara
Severo executor das leis sagradas
Que o velho venerando lhe ditara,
E se lá das campinas dilatadas
Do aurífero Tejo não trouxera
O benigno Reitor, que hoje impera.
CANTO II
Enquanto isto no trono se passava,
A vil Discórdia as serpes ocultando
Por casa dos livreiros se assentava
Em forma de estudante, e conversando
Ao Poema elogios mil fazia
Dando-lhe diversos autores cada dia. (St. 1.)
Outras vezes fazendo-lhe censura
Contra o mesmo poeta blasfemava,
Sátira horrenda, filha da impostura,
Batendo nos balcões a apelidava,
Razões diversas dando e recebendo.
Fez opostos partidos ir nascendo. (St. 2.)
Há no alto da rua estafadora
Que tem de Quebra-costas justo nome,
Uma loja de livros, em que mora
Um sincero Francês, hum pobre home'
Que é de todo o vadio porta aberta;
Nela se fala a cara descoberta.
Ali se ajuntam muitos charlatões
Para verem na fonte as aguadeiras,
E tratando das belas edições
De que viram as páginas primeiras
A bons Autores fazem por fadário
Os juízos que vêm no Dicionário.
……………………………………………………….
Era matéria então à solta gente
A fria Estupidez, que recatada
A poucos descobria a magra fronte
E lhe deu o ser rara a fama honrada
De exceder o Lutrin, o rico Hyssope,
E vencer Wychrelei, e o sábio Pope.
Pouco a pouco sentando -se a patrulha
Se falou no Poema a sangue frio:
……………………………………………………………
Que por seus próprios nomes censuradas
Com pejo no libelo infame via,
As pessoas em tudo autorizadas
E zelosas da mesma Academia;
E que este desaforo, esta insolência
Era pecado indigno de indulgência.
Contudo é certo que esta Academia
Mui diferente se vê do que dantes fora,
Se era sábia no tempo em que nascia,
Com a inércia de velha existe agora.
E da antiga, fiel, vivo retrato.
Tudo são formulários e aparato.
Apenas tinha posto os pés de fora
A famosa discreta companhia
Na casa em que o Borel pequeno mora,
Se escutou uma horrenda gritaria;
E quando a confusão mais amainava
Falar só na Estupidez se escutava.
Para lá foram todos: de um mangote
De estudantes se ia rodeando
O Borel, mui vermelho e de capote
Sobre o dito Poema dissertando,
Uns fazendo-lhe crizes bem fundadas,
E o Francês respondendo às gargalhadas.
No Canto III do Zelo descrevem-se as principais capacidades
catedráticas da época:
Um Pedroso, Cujacio lusitano,
Que sendo óptimo desde a tenra idade
Novas luzes derrama de ano em ano
Que há-de com respeito olhar a posteridade;
Na cadeira ditando, ou presidindo
Qual a palma com o peso vai subindo.
………………………………………………………………….
Um Carneiro, das Leis forte coluna,
Em quem a mansidão e saber nobre
Eu prometo que nunca se desuna;
Monteiro, a quem com as asas cobre
A rectidão, a amável diligência,
Alto saber e pura consciência.
Um Montanha, Barroso e Castelo,
Que ao Direito civil dão grande nome,
Cujo fervor, justiça e grande zelo
O tempo em vão pretende que se dome.
Além destes alguns de honrada fama
Que em falta deles a ciência aclama.
Pus por chefe nos Cânones sagrados
Um Henriques solícito e prudente,
Que aos que cingem Tiara e são sagrados
Aquilo que lhes toca dá somente.
Um Pinto, no saber grande e profundo.
Que honra as letras e o novo mundo.
Um Ganhado lhe dei e um Trigoso,
Um recto executor das leis sagradas,
De quem o mundo fala de invejoso..
Dei-lhe um Pires, em letras e virtudes
Aos que tenho contado em tudo igual
Que nascido entre povos quase rudes
Sábio ensina o Direito Natural.
Além destes vou outros omitindo
Que a seu tempo os irão substituindo.
Nas Ciências, que a mente humana excedem,
Um Monteiro profundo fiz nascer,
Por quem de noite e dia as artes pedem
Que das mãos da morte o livre se puder;
Maia, Veiga, Pereira, e fiz rasgar
Um Viturio as campinas do alto mar.
Para o teu simulacro olhei benigna,
E de longe chamei a quem fizesse
Ressuscitar a morta Medicina;
Do meu trabalho o fruto se conhece
Num Pereira, Tavares, e num Leal,
Num Picanso, num Pinto e num Sobral.
Dei os braços à sã Filosofia,
Pus-lhe Mestres de nome, promovidos
De outra parte à lusa Academia…
Teologia, ciência nobre e santa,
Inda tem por colunas a seu lado
Culmieira, Carneiro; e inda espanta
Guadalupe erudito e o bom Calado,
Honra dos seus ilustre e rara,
Delícias da Faculdade e pátria cara.
Era a loja do Alves: lá se achava
Uma corja de mestres de guedelha
Que batendo nas mesas recitava
Acerca do Poema, quanto a orelha
Pescar pôde por casa dos fregueses
Que o peito lhe abrem pelas mais das vezes.
O Silva sustentava que a obra fora
Engendrada em cabeça de mais peso.
O Santos diz que ouvira a uma senhora,
Ó caspité! que o traz em ferros preso
Que sabia quem era, e não passara
Daqueles a que a malha fofa honrara.
O magro Bruxo erguendo a voz cansada
O desmente dizendo, que o fizera
Um sujeito assistente na Calçada.
O Martins praguejando afirma que era
O Caldinhas, que em doce paz descansa
Nas regiões da astuta e sábia França.
Outro disse dali—que tinha sido
O pequeno Malhão, e outro que o velho;
Outro disse que fora produzido
Por homens de saber e de conselho;
Que nas letras há muito floresciam,
Opinião que os mais todos seguiam.
A Estupidez, os Sonhos afrontosos
Cartas loucas, Sonetos desmembrados,
Produções de espíritos invejosos
Contra homens mais doutos sublimados,
Servem só de fazer subir seu nome
Até onde o tempo mármores não come.
Pretendem, mas em vão, peitos perversos
A glória escurecer do bom Prelado,
Mas nada podem mentirosos versos
Quando o contrário a fama tem cantado.
Quando prova e provou a experiência
O seu zelo, saber, sangue e prudência.
O que nos interessa é a reconstrução da vida académica nesta
crise em que as reformas pombalinas estavam prestes a afundar-se; entre as
numerosas poesias suscitadas pelo Reino da Estupidez importa apontar a Ode
a Fileno, dividida em duas partes, em que descreve as duas fases da
Universidade, a medieval e a moderna:
Em especial começo
Referindo os heróis da Faculdade,
Heróis de um alto preço
Que viverá seu nome em toda a idade.
Um Távora, um Sardinha,
Santa Helena, um Jacinto e um Vieira,
E um subtil Doninha,
Chixorros, Daniel, e um Tomás
Pereira.
Sanches, Valézio, Inácio,
Luz, Santo António, Plácido e um Rocha
Que no imenso Lácio
Cada qual se ostentou brilhante entorcha.
Callai, Costa, Cardoso,
Bartolomeu, Cristóvão, Spectação,
Igual sol luminoso
Feliciano atendo e com razão.
Jaques, Boaventura,
Outro Vieira, Inácio, em tudo iguais,
Doutrina sábia e pura
Nos doutos Chantres, sábios Magistrais.
…………………………………………………………….
Em ambos os Direitos
Que sábios Mestres, que varões famosos,
Que elevados sujeitos,
Na sábia esfera astros luminosos.
Em epílogo abranjo
Os Corifeus dos Cânones sagrados,
A um Miguel Brás Anjo,
Almeidas, Sousas, Pereiras e Berardos.
Peço que os astros pises,
Seixas ali vareis, Bernardos, Gomes,
Arúvjos, Denizes,
Custódios, Rochas, Guerras e outros nomes.
……………………………………………………………..
E que brilhantes astros
Houve nas Leis civis de luzes raras,
Os Cardosos, os Castros,
Pires, Moirões, Pinheiros e Searas.
Amorins e Casados,
Seabras e Viegas singulares,
Luis, Queirós, togados,
Os Novais, os Ferrazes, os Soares.
…………………………………………………
Se falo em Medicina
Ah, que Mestres tão sábios e entendidos,
Sua rara doutrina
Acudia aos enfermos e afligidos.
Os Ortigões, os Vales,
Os Pessoas, os Reis, Lopes, Amados,
Desterravam os males
Com remédios felizes e aprovados.
Os Alvares e Duartes,
Gomes, Silvas e Amaros, os Mirandas,
Mostrarão em tantas partes
As curas eficazes sendo brandas.
Porém sem aparato,
Uma cura fazer quase divina
Pertence ao Doutor Gato,
Como se fosse Deus da Medicina.
………………………………………………….
Eis aqui as Ciências
Que ensina a antiga Academia;
Das outras as regências
Ao Colégio das Artes pertencia. [10]
Às Faculdades grandes
Em nada acrescentou esta moderna,
Amigo; e quando mandes
Mostrarei que esta é verdade eterna.
As Ciências menores,
Porque assim lhe chamou o tempo antigo,
Hoje não são melhores.
Eu vos hei-de mostrar, dilecto amigo.
Na chamada reforma
De novo só há nomes de arrogância.
Tudo é plataforma,
Uns baixos acidentes sem substância.
………………………………………………………………
E se alguns especiosos
Preferem estes estudos aos primeiros,
Ou eles são teimosos.
Ou são aduladores lisonjeiros.
Eu sou sincero, e o provo,
Eu tenho aos novos actos assistido;
Não vi questão de novo
Que aqui se não tivesse defendido.
…………………………………………………………
O Ergo e o Atqui
Lançaram fora com a maior fúria,
Amigo; e eis aqui
A reforma da nova sabia Cúria.
No socrático estilo
Querem que os seus alunos argumentem;
Eu desejava ouvi-lo,
Porém eles a Sócrates desmentem.
São hoje os argumentos
Termos confusos, mil arrazoados,
São vários pensamentos
Deste e daquele livro enmendicados.
Se lhe falam em forma,
Recebem estas vozes com risadas,
Esta é a bela norma
Estas novas cabeças reformadas.
………………………………………………………………
Se falam nos exames
Não vem aqui Novato insapiente.
Pois torcem-se os arames,
Em havendo padrinho ou mão pendente.
………………………………………………………………..
Aqui faço memória
De Mathesis, que goza um só Monteiro,
Da Natural História
Só merece louvor algum estrangeiro.
……………………………………………………………
Da Mathesis a empreza
Abraçaram os estudantes com desvelo,
Congresso da pobreza,
Que de graça tiveram o capelo.
Destes, toda a ciência
Só o grande Monteiro exceptuando,
É só uma aparência;
Mas poderão saber indo estudando.
…………………………………………………………
Se isto desagrada,
Não me retrato, sejam inimigos,
Sim;—nada, nada, nada
Sabem, que não soubessem os antigos.
……………………………………………………………
Nos Estatutos Lemos
Desta monstruosidade foi agente:
Com ódio entranhável
Aos Frades buscou meios sinistros,
Na divisão culpável
Enganando ao seu Rei e aos seus ministros.
O Infante a escutar
Estas disposições, depois de ouvir
Disse: Não vai fundar
As Letras o Marquês, vai-as fundir.
Eu conheço-os a todos,
Sua ciência, vida e seus costumes,
E eu sei por mil modos
Queimar incensos, exalar perfumes.
Eu de um lente moderno
Que fabricou aqui a Estupidez
Por gentil e por terno
Quisera perdoar-lhe desta vez.
Se estúpida é a ciência
A quem regula a presente norma,
Vem sua descendência
Muito lá do princípio da Reforma.
Os Compêndios os mesmos,
Os mesmos mestres bem cheios de brio,
Que foram os tenesmos
Que tolheu a Ciência e decaiu?
Do conceito algum tanto
Caiu o autor da Estupidez moderna
Tendo ao ostentar espanto,
Por livrar a cabeça quebra a perna.
Do Trigoso e Pedroso
Falar, e do Morgado dos Alpões
E ímpeto perigoso
Que lhe podem pisar as presunções.
Se de um D. Carlos fala [11]
Devera o Stupidante na verdade
Saber que não o iguala
Na sua respectiva Faculdade.
Só pode o Stupidante
Dizer que censurava a Anatomia,
Pois o julga ignorante
Como ele na sã filosofia.
É Dom Carlos sublime
Teólogo e Filósofo eminente,
Seria um grande crime
Ser contra a Anatomia; o Autor mente.
Diz que estimavam muito
Os Frades que esta Estupidez viesse,
E que sobre o presunto
À porfia sobre ele se bebesse.
E diz que alvoroçados
Da Estupidez paravam na imagem.
Mandavam os prelados
Que fizessem benigna a hospedagem.
Mais coisas semelhantes
Fingiu o Autor dos celebres Colégios,
Licença dos pedantes
Que tiram da ignorância os privilégios.
E com esta jactância
Nos Regulares deu esta pancada.
É certo que a ignorância
Sempre no mundo foi bem confiada.
……………………………………………………….
Que a Estupidez queriam
Os Regulares, disse este Poeta,
E não quer que se riam,
E mil vezes lhe dizem que é Pateta.
………………………………………………………
Estupidez nos Conventos,
Nos Colégios da Atenas lusitana,
Pueris pensamentos
De cabeça mais bruta do que romana.
…………………………………………………………
Já muitos anos antes
Em Coimbra a moderna se sabia
Nos Cónegos Regrantes
E em todos os Colégios da Sofia.
…………………………………………………………
À memoria me vem,
Fileno, pensamentos eficazes.
Que a Estupidez é mãe
De dois estupidantes, dois rapazes.
Subirem aos Capelos
Sem Actos, Argumentos, sem exames,
Podem ser uns camelos,
E sobretudo podem ser infames.
Subir ao Magistério
Sem discípulo ser, e adiantar-se
A um congresso sério,
Muito custa, Fileno, isto tragar-se.
Mas, Fileno, esquecia
Dizer-te que nas outras Faculdades
Já há muito se sabia
Todas estas questões de novidades.
Em ambos os Direitos
Se tinham defendido Conclusões
Por egrégios sujeitos,
Causando á Academia suspensões.
Dos Cânones primeiro
Nas Magnas Conclusões tanto brilharam
Um Melo e um Ribeiro
Onde os modernos ainda não chegaram.
Nem as altas façanhas
Em Conclusões imensas, coisa rara,
Chegam aos Mascarenhas
E a quem lhe presidiu, o bom Seara.
Na cópia do Reino da Estupidez, que se acha
entre os manuscritos da Biblioteca de Évora, o poema traz como autor Francisco
de Mello Franco; a atribuição a outros nomes e a cooperação de um outro autor
mais confirmam esta afirmativa. Assim no Poema dos Burros (Canto
único de 1813) diz José Agostinho de Macedo:
Tu que ao prosa Diniz ditaste o Hyssope,
E a Estupidez ditaste a Almeida e Franco.
Na Lista das pessoas que saíram no Auto de Fé da Inquisição
de Coimbra em 26 de Agosto de 1780 encontra-se com o Caldinhas (também
incriminado como autor do Reino da Estupidez) «Francisco de Mello
Franco, Estudante médico, natural de Peracatú, bispado de Pernambuco:Herege,
Naturalista, Dogmatista; negava o Sacramento do Matrimónio.” E na mesma
Lista (n.° 13) figura também «Francisco José de Almeida, matemático, filho de
José Francisco, natural de Lisboa, herege, naturalista… seguia os mais erros
dos seus sócios, lendo pelo Autor Rousseau e outros hereges.» [12] O que se apura
desta tradição é que Franco foi auxiliado por um outro escritor,
personificando-o em Francisco José de Almeida, por ter como ele sofrido os
rigores da Inquisição de Coimbra e também seguir as Ciências naturais; mas o
cooperador de Mello Franco foi o seu patrício José Bonifácio de Andrade e
Silva, sendo o Reino da Estupidez escrito e copiado em quinze dias, e
sub-repticiamente distribuído por ocasião de uma das festas da Universidade. [13]
[1] «Ex."" e rev.mo sr.—
Sendo presente a S. M, a conta que v. ex.ª me dirigiu com a cópia do voto que
no conselho dos decanos deu o Dr. José Monteiro da Rocha, para mostrar nele a
inabilidade que havia no Dr. António José Saraiva do Amaral, para servir de Vice
-Conservador da Universidade de Coimbra; e com resposta na qual v. ex.ª refuta
os fundamentos do referido voto; e achando a mesma Senhora que pela ocasião do
mesmo voto se praticou a novidade de se registar nos livros do sobredito
conselho, sendo um voto singular que não podia ter força de decisão,
faltando-lhe ou o consenso unânime do mesmo Conselho, ou a real aprovação de
Sua Maj.; é a mesma Senhora servida que v. ex.ª mande logo riscar e trancar de
maneira que mais se não possa ler o registo do referido voto; não só por não
ser este o costume em tempo algum, mas também pelos inconvenientes que da
introdução desta pratica poderiam resultar; fazendo advertir ao secretário que
o registou que fique na inteligência de que os livros de registo que tem a seu
cargo só são destinados para as reais ordens de S. Maj.; para as decisões do
mesmo Conselho, nos casos que lhe estão cometidos e pode resolver; e para
aquelas ordens que pelo seu expediente se costumam e devem expedir. O que tudo
de ordem de S. Maj. participo a v. ex.ª para que assim o fique entendendo e
faça executar nesta conformidade. Deus guarde a v. ex.ª. Palácio de Nossa
Senhora da Ajuda em 19 de Abril de 1784. — Visconde de Vila Nova da Cerveira. —
Senhor Principal Mendonça, Reformador e Reitor da Universidade.
[2] Canto III. Em nota acrescenta: «O
que então era secretário da Universidade costumava pôr subescripsi em
vez de subscripsi.
[3] Instituto, de Coimbra,
vol. xxxvii, p. 75 a 77.
[4] Referia-se ao recente e inaudito
processo de José Anastácio da Cunha.
[5] Dr. António Cardoso Seara, lente
de prima de Leis.
[6] Lente de Gabriel, graduado em 4
de Outubro de 1738.
[7] Soneto contra o autor do Reino
da Estupidez. (Ms. da Academia, G. 5, Est. 14, n.º 16.)— «Entre os
perseguidos contam-se Ricardo Raimundo Nogueira e António Ribeiro dos Santos,
homens cujo carácter circunspecto e princípios moderados deviam pô-los ao
abrigo de qualquer suspeita.» (Conimbricense, de 1867, n.º 2058.)
[8] Mss. do Dr. Ribeiro dos Santos,
vol. 130, fl. 93. (Na Bibl. Nac.)
[9] Mss. de Ribeiro dos Santos, vol.
130, fl. 27 a 31.
[10] Ode a Fileno, sócio da
Academia das Ciências de Lisboa, consultando a Fábio lhe relate os progressos
das Ciências em a nova plantação da Universidade, pedindo-lhe juntamente o seu
parecer a respeito das Ciências modernas e antigas. Responde Fábio, dividindo a
sua Ode em dois cantos; no primeiro no que pertence à antiga, no segundo no que
pertence á moderna. (Ms. da Academia, G. 5, Est. 23, n.° 42.)
[11] Refere-se a ele o seguinte
significativo documento:
«Sendo presente a Sua Maj.de com informação de V." Ex.
e parecer que nele interpôs o Requerimento de D. Carlos Maria de Figueiredo
Pimentel, Lente primário da Cadeira Exegética do Novo Testamento, no qual a
exemplo das igualações graciosas que a mesma Senhora concedeu a outros Lentes
por haverem recitado as Orações fúnebres nas Exéquias do Senhor Rei D. José e
da Senhora Rainha D. Maria Ana Vitória, seus augustos pais, pedia uma jubilação
na Cadeira que ocupa por não haver outra à qual possa ser igualado, havendo
recitado a Oração fúnebre na ocasião das Exéquias do dito Senhor Rei celebradas
na Capela real da Universidade na ocasião em que servia de Vice-Reitor e
Prelado dela. Foi a mesma Senhora servida resolver que, não havendo exemplo
para esta nova pretensão, seria de prejudiciais consequências para a
Universidade a concessão de semelhante graça. Determinando que na dita Cadeira
não pode caber premio de igualação pelos referidos motivos, sendo ela superior
à Faculdade, em consideração da pessoa do sobredito D. Carlos Maria de
Figueiredo Pimentel, do seu reconhecido merecimento e em prémio de haver sido
Orador das referidas Exéquias, além do ordenado que vence da sua cadeira se lhe
dê uma ajuda de custo de cem mil réis cada ano. O que de ordem de S. Maj.de
participo a V.» Ex.ª para que, fazendo-o presente na Junta da Fazenda da
Universidade de Coimbra, assim o haja de executar. Deus g.de a V.ª Ex.ª.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 de Janeiro de 1784. Visconde de
Vlla Nova da Cerveira.» (Ms. n.º 437, fl. 81.)
[12] Vê-se que José Agostinho colheu
em Coimbra a tradição. Em uma nota de Ferreira da Costa (n.° 153) ao poema dos Burros (recensão
integral) lê-se: «Francisco José de Almeida, médico muito pequeno de corpo,
muito verboso, e ainda que ininteligível nas expressões e até nos discursos
escritos, os quais eram de uma linguagem obscura e particular. Foi membro da
Junta de Saúde Pública. Era sócio da Academia, que lhe premiou um Tratado de
Educação Física.»
[13] Consignamos aqui alguns dados
biográficos de Francisco de Mello Franco. Nasceu em Paracatu, na provinda hoje
estado de Minas Gerais, no Brasil, em 17 de Setembro de 1757; foram seus pais
João de Mello Franco e D. Ana Caldeira; recebeu a primeira educação no
Seminário de S. Joaquim, no Rio de Janeiro, distinguindo-se pela sua aplicação;
veio depois para Coimbra seguir os estudos médicos na Universidade, tendo-se
matriculado em 1775 no primeiro ano matemático e no quarto filosófico. Achou-se
pois no período de reacção antipombalina, e, como o lente José Anastácio da
Cunha fora arrojado aos cárceres da Inquisição, Mello Franco com outros
estudantes foi também preso pelo Santo Oficio de Coimbra, jazendo nos cárceres
quatro anos (1777-1781) pelo crime de ler livros dos Enciclopediazitas. Aí se
lhe acordou a veia poética, escrevendo as Noites sem sono.
Acusaram-no também de negar o carácter de sacramento ao casamento, e chamada
como testemunha uma senhora de Coimbra a depor contra ele, recusou-se a isso,
sendo por tal motivo castigada com um ano de reclusão no Santo Oficio. Logo que
Mello Franco saiu solto, desposou essa nobre vítima da humanidade. Por aviso
régio de 29 de Agosto de 1782 foi permitido a Francisco de Mello Franco que
completasse o seu curso na Universidade. Compreende se quanto a indignação
contra o fanatismo bruto que subsistia em Coimbra e dominava na Universidade
lhe suscitou essa terrível execução do Reino da Estupidez. Ninguém
suspeitou do obscuro estudante de medicina. O efeito foi tal que o Principal
Mendonça teve de ser despedido do governo da Universidade, substituindo-o um
homem mais simpático, embora mais austero, o Principal Castro. Graduado em
Medicina, Mello Franco veio para Lisboa, onde exerceu a clínica, e manteve
amizade com José Correia da Serra, António Ribeiro dos Santos e Vila Nova
Portugal, publicando na Academia das Ciências obras valiosas como o Tratado
da Educação Física e o livro da Higiene, sob influência da
leitura de Tissot. Foi um dos fundadores da Academia de Geografia em 1799. Foi
vice-presidente da Academia das Ciências, sendo por ele escrito o Relatório de
1816. Era médico honorário do paço; em 1817 foi com ordem régia à Itália para
acompanhar para o Rio de Janeiro a Arquiduquesa de Áustria, D. Maria
Leopoldina. Vendeu os seus bens para fixar residência no Rio de Janeiro;
seguindo o partido político da emancipação do Brasil, de que era chefe o seu
amigo José Bonifácio de Andrade, D. João VI o demitiu de médico do paço. Além
desta contrariedade, a falência de um negociante seu amigo, que lhe envolveu os
seus pequenos recursos e o deixou na pobreza, forçara-o a retirar-se para a
província de São Paulo com esperança de convalescer de doença agravada por
tantos abalos. Não podendo conformar-se com o isolamento, quis regressar ao Rio
de Janeiro, mas na viagem sentiu as últimas agonias, e pedindo que o
desembarcassem expirou em uma cabana em 22 de Julho de 1823. O poema do Reino
da Estupidez contava já quatro edições: de Paris (1819), de Hamburgo
(1820), de Paris (1821) e de Lisboa (1822 e 1823). O poema tem continuado a ser
reproduzido, e poderemos apontar mais as seguintes edições: de Lisboa (1833),
de Paris (1834, no Parnaso Lusitano) e de Barcelos (1868). Para o estudo da
biografia de Mello Franco convém consultar as Memoriais biográficas dos
Médicos e Cirurgiões portugueses, por F. A. Rodrigues de Gusmão, p. 126; a Revista
trimensal, t. v, p. 345; e Pereira da Silva, Varões ilustres do Brasil,
t. II, p. 173.
Bibliografia
Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, Poema
herói-cómico-satírico em 4 cantos, 1785, in Parnaso Lusitano,
Satíricas, vol VI,Paris, Aillaud, 1834, pag. 149 a 187.
Online: http://books.google.pt
Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, 1785
Lista dos penitenciados pelo Santo Ofício que saíram no Acto
público de Fé, que se fez em Coimbra na Sala do mesmo Tribunal em 26 de Agosto
de 1781
Online: http://almamater.uc.pt
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