domingo, 11 de outubro de 2015

João José Cardoso, ‘o que é um deserto?’

Que merda, João

Esta merda não se faz, João. Um gajo chega aqui e leva com uma notícia destas. A notícia. Esta. O João é um gajo terrível. Com um feitiozinho de mula, teimoso como eu e mais alguns poucos, e acho que foi por isso que nos demos bem. Eu, pelo menos, gostava dele bem antes de conhecê-lo. Lia o Aventar regularmente, comentava furiosamente muitos posts, muitos dele, e ele respondia, normalmente bruto, deliciosamente bruto, com quem dava prazer discordar.
E as vezes que discordámos. Um dia, juntamente com o Nabais, convidou-me para escrever lá. A mim, que escrevia num bloguezinho de segunda liga com umas 50 visitas por dia. Do que ele se foi lembrar. E disse-lhe, clara e abertamente, como disse ao Nabais, que não sabia se era capaz de escrever num dos blogues mais lidos. Um projecto enorme, com uns bastidores de trabalho que vão muito além do que é publicado. O que é que ele me respondeu? Vai-te foder e escreve.
E eu escrevi. E o João farta-se de reclamar, e eu com ele, seu esquerdista ranhoso, com esse braço de aço, incapaz de torcer, com a mania da perseguição estalinista. Portista, ainda por cima. Que merda, João.
Depois saí mas continuei a reclamar com o João e ele comigo. Continuámos a falar, sempre furiosamente, menos pessoalmente. Mas eu acho que é quando escrevemos que somos mais sinceros. E ele e eu somos uns furiosos por natureza. Era a beleza do João. Fodia tudo directamente, insultava como deve ser. Umas vezes subtilmente e as pessoas não percebiam, depois, outras, directamente. “Filho de 50 putas”. É o preço que paga por ser um gajo inteligente.
O João deu-me a Carla, a Noémia, o Dario, o João e soubesse ele o quanto me deu mais.
Eu acho que nunca lhe disse, mas eu adoro o João. E hei-de lê-lo no Aventar sempre que me apetecer rir e pensar e ficar chateado e discordar furiosamente dele. Deve ser por isso que este texto está escrito meio no passado e meio no presente.
Ele há-de estar a rir-se e a insultar-me também nalgum lugar. De uma forma tão pura como fazemos aqui no norte. E não vieste a Leça, pá. Que merda, João.

uma vez escreveste-me um poema e o que é um deserto?

uma vez escreveste-me um poema. não foi só uma vez. mas dessa vez. escreveste-me um poema. éramos, dizias, entre outras coisas, um desencontro de horários. o que era, ainda é, hoje mais que nunca, absolutamente verdade. mas nesse desencontro de horários que nós fomos, encontrámos sempre o tempo para nos encontrarmos. naquilo que importa. entendeste-me como, acho, até hoje e depois de uma certa morte, mais do que qualquer outra pessoa. sabias quem eu era. sabias. e eu sabia quem tu eras. nunca andámos longe, apesar dos horários. estive muitas vezes contigo, ao longo desta década e meia, desde que nos encontrámos, num horário coincidente, às vezes acontecia, tinha acabado de me acontecer uma coisa que só voltou a acontecer-me agora, contigo. ainda guardo o papelinho onde desenhaste o desencontro, num livrinho que anda sempre comigo. entre outros papeis e desenhos e pétalas e um monte de coisas, joão, com que me fui sempre agarrando à vida. andávamos sempre a dever jantares um ao outro. que pagámos sempre. acho que era a tua vez agora. disseste-me isso, a última vez que falámos ao telefone. mas eu deixo que não me pagues esse jantar. contrariada. mas deixo. será apenas mais um desencontro de horários. a última vez que estivemos juntos, fisicamente, foi dentro de um comboio. menos de uma hora, eu saí em aveiro e tu continuaste até coimbra. menos de uma hora e tu contaste-me coisas que me contavas só a mim e que eu, hoje e antes, guardei sempre. às vezes zangavas-te comigo, porque eu dizia coisas sem pensar. há uns tempos escreveste a ralhar-me. mas eu não me importei. importei e andei a chatear-te para que me desculpasses. sei que tinhas razão. e sei que foi um segundo até dizeres que sou tua amiga. um segundo a sério até dizeres que sou a tua amiga. a quem contavas as coisas. leio por aí que tinhas mau feitio. sei que é verdade. embora comigo, mesmo quando nos zangávamos, tenhas sido sempre ternura. uma vez escreveste-me um poema. não foi só dessa vez. mas dessa vez escreveste-me um poema. éramos, dizias, um desencontro de horários. mas as horas foram sempre certas, menos esta. os copos, os risos, as conversas, os jantares que nos devíamos sempre mutuamente, os ralhetes, as escadas da tua casa, as escadas do quebra costas, a minha varanda, os abraços, as confidências, o sermos – e sabermos isso um do outro – profundamente parvos. as horas foram sempre certas. somos um desencontro de horários. e desta vez é a sério. merda. e não há poesia bastante que apague este desencontro. nem a que (me) escrevias. nem aquele poema que não escreveste para mim, mas que eu adorava. o que é um deserto?
‘O mar ainda acredita nas ondas as areias
desdenham-nas. Amo-te: não diz o homem à
mulher. Acredito, não responde a mulher ao
homem. O mar fica rodeado de maçãs e pergunta:
o que é um deserto?
(João José Cardoso, ‘o que é um deserto?’)
http://aventar.eu/2015/10/11/uma-vez-escreveste-me-um-poema-o-que-e-um-deserto/

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