SEXTA-FEIRA, 3 DE JULHO DE 2009
O BELÍSSIMO JEAN-CHRISTOPHE DE ROMAIN ROLLAND EM FRAGMENTOS ESCOLHIDOS
QUEM?
Romain Rolland (1866/1944). Talentoso novelista, biógrafo e músico francês. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1915. Sua sensível obra concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista, além de demonstrar profunda compreensão sobre a alma humana. Escreveu peças de teatro, biografias como a Vida de Beethoven e Mahatma Gandhi, e o espetacular romance Jean-Christophe. Em 1923, fundou a revistaEurope. Romain Rolland fez uma importante observação sobre o livroO Futuro de uma Ilusão de Freud. Esta observação foi a premissa usada por Freud para escrever o seguinte livro: O Mal-estar na Civilização. Quando o filósofo político italiano Antonio Gramsciescreveu, na prisão, que o "pessimismo da inteligência" não deveria abalar o "otimismo da vontade", estava citando Romain Rolland.
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COMENTÁRIO
Só lê Jean-Christophe, o romance do francês Romain Rolland, quem tem fôlego de alpinista e ama de fato as Letras. Ou então, é viciado em literatura e livros clássicos imortais. E, especialmente, quem dispõe de tempo, artigo de luxo nos dias corridos que vivemos hoje. Sim, porque a obra é bela, indubitavelmente, mas muito extensa. São, nada mais nada menos, que cinco volumes de quatrocentos e tantas páginas cada um. Em peso, deve dar uns cinco quilos ou mais de literatura fina e fluida, embotada de sentimentos humanistas e filosóficos interessantíssimos que, realmente, validam sua dilatada estatura e extensão, e com certeza encantará os leitores mais sensíveis que se aventurarem a lê-lo. Sem dúvida, vale a pena. No romance existem centenas de belas passagens, que dariam, com certeza, para encher todo um Blog com seu conteúdo de inegável relevância literata. Na impossibilidade de citar tudo que é notável na referida obra, seguem aqui algumas poucas citações, pequenas pérolas, das muitas que abundam na obra deste brilhante autor francês do tão recente século XX.
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CITAÇÕES
Sobre a riqueza:
"Todo rico é um ser anormal... Estás rindo? Zombas de mim? Ora essa! Sabe lá o rico o que é a vida? Fica ele acaso em comunhão com a rude realidade? Sente ele no rosto o sopro feroz da miséria, o cheiro do pão por ganhar, da terra a revolver? Pode lá compreender, pode ver sequer os seres e as coisas?..." (pág223/vol.IV)
Sobre a arte de escrever:
"Olivier não era bastante forte para lutar. Também ele mudara. Deixara o magistério, não tinha mais tarefa obrigatória. Escrevia somente, e o equilíbrio de sua vida se modificara. Até então, sofrera por não poder entregar-se inteiramente à arte. Agora, era todo da arte e sentia-se perdido no mundo das nuvens. A arte que não tem por contrapeso um ofício e por base uma forte vida prática, a arte que não sente na carne o aguilhão da tarefa cotidiana, a arte que não tem necessidade de ganhar o pão, perde o melhor de sua força e da sua realidade. É a flor do luxo. Não é mais (o que é nos maiores artistas) o fruto sagrado do esforço humano... Olivier conhecia o ócio: Para que? Nada mais o apressava: deixava a pena devanear, flanava, sem rumo." (pág253/vol.IV)
Sobre os gênios e o público:
"O público não suporta os gênios, senão em doses infinitesimais, raspado, limado, depilado, untado com os unguentos em moda..." (pág286/vol.IV)
Sobre o instinto e as tentações:
"Quando se cala a vontade, o instinto fala; na ausência da alma, o corpo segue o seu caminho." (pág293/vol.IV)
Sobre valores:
"- Sim, eu sei, isto lhe parece uma barbárie pré-histórica: matar! É preciso ouvir essa linda sociedade parisiense protestar contra os instintos brutais que levam o macho a matar a fêmea que o engana, e preconizar a indulgente razão! Que bons apóstolos! É uma beleza ver essa matilha de cães de má cruza indignar-se contra a volta à animalidade. Depois de terem ultrajado a vida, depois de a terem desvalorizado por completo, cercam-na de um culto religioso... O quê! Essa vida sem coração e sem honra, essa matéria, esse pulsar de sangue num pedaço de carne, eis o que lhes parece digno de respeito! Toda a consideração é pouca para essa carne de açougue; é um crime tocar nela. Matem a alma, se quiserem, mas o corpo é sagrado..." (pág333/vol.IV)
Sobre a amizade:
"É uma coisa tão rara dois seres que se compreendem, que se estimam, que sabem que estão seguros um do outro, não por uma simples crença de amor muitas vezes ilusória, mas pela experiência dos anos passados juntos, anos sombrios, medíocres, mesmo com - sobretudo com a recordação dos perigos que vencemos. À medida que se envelhece, tudo se torna melhor." (pág335/volIV)
Ainda sobre o gênio e seu meio:
"Agora que todos estavam bem convencidos de que tinham um gênio no meio deles, esforçavam-se, segundo o costume, por abafá-lo. Essa gente só tem uma ideia; ao ver uma flor: pô-la num vaso; ao ver um pássaro: engaiolá-lo; ao ver um homem livre: fazer dele um lacaio."
Sobre a juventude:
"Toda geração nova precisa de uma boa loucura. Mesmo nos mais egoístas dentre os moços há um excesso de vida, um capital de energia que não quer permanecer improdutivo; procuram gastá-lo numa ação, ou (mais prudentemente) numa teoria. Aviação ou Revolução. Esporte dos músculos das ideias. O moço precisa ter a ilusão de que participa de um grande movimento da humanidade, de que renova o mundo. Nessa idade, os sentidos vibram com todos os sopros do universo. Somos tão livres e tão leves!"
"E além disso é bom amar e odiar, e crer possível transformar a terra com sonhos e gritos! Os jovens são como cães de um alcatéia: fremem e ladram ao vento. Uma injustiça cometida no outro extremo do planeta os fazia delirar..." (pág13 e 14/volV)
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Brilhantemente, sobre a confecção e uso das ideias:
"Para que tantas explicações? Quando já se achou uma coisa, não há necessidade de dizer como foi achada, e sim apenas o que se achou. A análise dos pensamentos é um luxo burguês. O que é preciso às almas do povo é a síntese, ideias já feitas, bem ou malfeitas, e antes mal do que bem, mas que conduzam à ação, realidades prenhes de vida e carregadas de eletricidade." (pág54/volV)
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Sobre os instintos:
"Porque há uma alma secreta, potências cegas, demônios, que cada homem traz aprisionado em si. Todo o esforço humano, desde que o homem existe, consiste em opor a esse mar interior os diques da razão e das religiões. Mas, que se desencadeie uma tempestade (e as almas mais ricas são as mais sujeitas às tempestades), que os diques cedam, que os demônios tenham campo livre e possam ir de encontro a outras almas levantadas pelos mesmo demônios... Atiram-se umas sobre as outras e se enlaçam. Ódio? Amor? Furor de mútua destruição?... A paixão é alma de rapina." (pág150/volV)
Sobre as cidades pequenas:
"Por mais fechada que fosse a casa de Braun, por mais secreta que permanecesse a tragédia burguesa que nela se desenrolava, algo transpirava no exterior. Naquela cidade, ninguém podia gabar-se de esconder a própria vida. É estranho. Nas ruas ninguém nos olha; as portas das casas e as persianas estão fechadas. Há, entretanto, espelhos pendurados nos cantos das janelas; e ouve-se, ao passar, o ruído seco das persianas que se entreabrem e se fecham. Ninguém se preocupa conosco, parece que nos ignoram; mas nos apercebemos de que nenhuma das nossas palavras, nenhum dos dos nossos gestos foram perdidos; sabem o que fazemos, o que dissemos, o que vimos, o que comemos; sabem mesmo, julgar saber, o que pensamos. Uma vigilância oculta, universal, nos cerca a todos. Criados, fornecedores, parentes, amigos, indiferentes, transeuntes desconhecidos, todos colaboram por tácito consentimento nesta espionagem instintiva cujos elementos dispersos se centralizam, não se sabe como. Não se observam unicamente os astros, escrutam-se os corações." (pág155/volV)
Sobre a conduta do artista:
"Um artista deve captar o próprio gênio; não lhe permite dispersar-se ao léu. Canaliza tua força. Constrange-te a hábitos, a uma higiene de trabalho cotidiano, a horas fixas. São esses tão necessários ao artista quanto o hábito dos gestos e dos passos militares ao homem que deve bater-se. Venham momentos de crise - e eles sempre vêm - e essa armadura de ferro impede a alma de cair." (pág179/volV)
Sobre a robusta compleição física de Jean-Christophe, o personagem principal que dá nome à obra, e sua sensível alma combalida:
"Correram os dias. Christophe saiu dali esvaziado de vida. Continuava, entretanto, a manter-se de pé, saía, caminhava. Felizes daqueles a quem uma raça forte sustém nos eclipses da vida! As pernas do pai e do avô carregavam o corpo do filho prestes a esboroar-se; o impulso dos robustos antepassados conduzia a alma despedaçada, como é levado pelo cavalo o cavaleiro morto." (pág186/volV)
Belissimamente, sobre esta força maior que tudo gera, rege e transcende:
"Estava sereno. Agora compreendia. Compreendia a vaidade de seu orgulho, a vaidade do orgulho humano, sob o punho temível da Força que move os mundos. Ninguém é senhor de si, com segurança. É preciso vigilar. Porque, se adormecemos, a Força precipita-se sobre nós e nos arrasta... para que abismos? Ou a torrente se retira e nos deixa em seu leito seco. Não basta mesmo querer lutar. É preciso humilhar-se ante o Deus desconhecido, que flat ubi vult, que sopra quando quer, onde quer, o amor, a morte, ou a vida. A vontade do homem nada pode sem a sua. Um segundo lhe basta para aniquilar anos de labor e de esforços. E, se lhe apraz, pode fazer surgir da lama o eterno. Ninguém, tanto como o artista criador, se sente a sua mercê: porque se é verdadeiramente grande, nada mais diz além daquilo que o espírito lhe dita. E Christophe compreendeu a sabedoria do velho Haydn, pondo-se de joelhos, cada manhã, antes de tomar a pena... Vigila et Ora. Rogai a Deus, a fim de que esteja convosco. Ficai em comunhão amorosa e pia com o espírito da vida." (pág198/volV)
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LIVRO: Jean-Christophe // AUTOR: Romain Rolland // VOLUME: IV // EDITORA: Globo // São Paulo // 1941
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