09/10/2015 por
Sábado à tarde há iscas, bifanas, papas de sarrabulho. Não desfazendo, eu vou pelo convívio. É uma gente tímida, mas tímida também sou eu, e de tanto darmos um jeito para que caiba mais um acabamos por meter conversa.
A casa tem um canto, mais reservado, onde só há uma mesa grande, partilhada por desconhecidos ou disponível para grupos numerosos. Era lá que estavam eles e eu sentei-me por perto com o meu mais reduzido grupo. Eles eram dez, todos homens, todos velhotes, todos castigados por bastante mais do que os anos que tinham passado. Tinham pendurado os bonés no cabide atrás deles, alguns já não se atreviam a tirar o casaco. Um tamborilava os dedos sobre o tampo da mesa, que é uma forma, já se sabe, de marcar o compasso do que se evoca, e os seus olhos húmidos e enevoados confirmavam quão longe ele estava. Os outros seguravam os copos, cada um com o seu, como se houvesse que segurá-lo, não fosse a mesa virar a qualquer momento. Tem destas coisas, a casa, faz-nos sentir no mar alto.
Falavam alto, riam, contavam piadas. Ao segundo ou terceiro copo, um deles começou a cantarolar. Juntou-se logo outro, e outro, e outro. O que começara tinha boa voz, os outros desafinavam. Calaram-se logo em seguida, pediram mais vinho, mais iscas. Mas já se tinham soltado, estavam prontos. O cantor bateu com o copo, sinal de ordem à mesa, os outros calaram-se, a tasca calou-se também, sem saber por que o fazia, e ouviu-se, vinda do canto, uma voz sem rosto:
“No alto daquela serra / no alto daquela serra / está um lenço / está um lenço a acenar”
Os outros juntaram-se-lhe, um coro eufórico e desentoado. Noutra mesa, uma mulher abanou a cabeça para o marido e disse entredentes: “Cambada de bêbados”.
E eram. Uma estupenda cambada de bêbados, velhotes com colesterol alto, triglicerídeos em flecha, hipertensão, flebites nas pernas, diabetes, arritmia. Havia ali caras que pareciam saídas de uma unidade de cuidados intensivos. Se calhar, para a semana já não se levantavam da cama, ou seria para o ano, talvez num par de anos. Se calhar, estavam rijos como um pêro e ainda tinham muitas tardes de sábado. Ou talvez aquele grupo, com cada um dos desafinados, já não se juntasse mais, porque bastaria que faltasse um para que não fosse igual.
Seriam amigos antigos ou recentes, que a velhice traz também amigos, circunstanciais, os que se descobrem por perto apenas na ausência dos outros. Lembrei-me que o meu pai fez amigos até ao fim, o último terá sido uma semana antes, e nem por ser tão recente lhe faltou na despedida.
Chegaram mais iscas, mais jarros de vinho, e nem por isso eles se calaram. Cantavam cada vez mais alto, enchiam a sala, sem vergonha das senhoras com os maridos, nem do turista a gravá-los para o youtube, cantavam com todo o vigor, e no dia seguinte haveriam de acordar sem voz, ou com uma pontada nos pulmões, que diabo importava isso agora?
Encostei-me à parede de granito, ao lado da mesa grande. A algazarra era tanta que havia já quem saísse para não ter de aguentá-los. Ocorreu-me que o meu pai poderia estar ali, ele que até se recusava a cantar, mas que soube sempre tão bem gozar a amizade e as alegrias simples. E pareceu-me que sim, de alguma forma estava, podemos sempre acreditar que estamos onde nos recordam.
Quis sair antes deles, não quis ver o fim da festa, os abraços de despedida. Deixei atrás o coro desafinado e a voz ainda límpida do cantor que, dei-me conta então, era o único cujo rosto eu não tinha visto. Ainda o ouvi repetir os versos do começo:
“Está dizendo viva viva / está dizendo viva viva / morra quem / morra quem não sabe amar”.
Ilustração: Mariano Fortuny y Marsal, “Viejo desnudo al sol” (detalhe), 1863
popular : No alto daquela serra
Letra e música: popularjj
No alto daquela serra
no alto daquela serra
está um lenço
está um lenço a acenar
Está dizendo viva viva
está dizendo viva viva
morra quem
morra quem não sabe amar
Do outro lado do monte
do outro lado do monte
tem meu pai
tem meu pai um castanheiro
Dá castanhas em outubro
dá castanhas em outubro
uvas brancas
uvas brancas em janeiro
No alto daquela serra
no alto daquela serra
está um lenço
está um lenço a acenar
Está dizendo viva viva
está dizendo viva viva
morra quem
morra quem não sabe amar
Do outro lado do monte
do outro lado do monte
tem meu pai
tem meu pai um castanheiro
Dá castanhas em outubro
dá castanhas em outubro
uvas brancas
uvas brancas em janeiro
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