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Pedro Tadeu - Marcelo está a pedir-nos o impossível?
terça-feira, 27 de abril de 2021
Fernanda Câncio - "E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo"
COLONIALISMO
Relatórios da administração
colonial que denunciam "o bafio da escravatura" e uma diplomacia que
tenta negar as acusações internacionais e adiar ao máximo a mudança: Portugal e a Questão do Trabalho Forçado,
de José Pedro Monteiro, é um testemunho poderoso sobre o ocaso do Império
português.
Fernanda Cânciocoo
29 Dezembro 2018 — 15:00
"Tratados como animais
bravios", agrilhoados, chicoteados, espancados, "arrebanhados no
mato", com alta taxa de morte no transporte, mantidos décadas longe da
família, à qual eram por vezes devolvidos em "estado de morto de pé",
"grávidas e mulheres com filhos monstruosamente espancadas por abandonarem
o trabalho": as descrições e observações encontradas nos relatórios da
administração colonial portuguesa chocam pela crueza e naturalização daquilo a
que um inspetor chama, em 1949, "o cheiro a bafio da escravatura".
Apesar de os castigos físicos
serem proibidos por lei e de o próprio trabalho forçado ter sido, a partir da
publicação do Código de Trabalho Indígena, de 1928, interditado exceto
"para fins públicos" - e mesmo assim apenas quando estivesse em causa
o interesse das populações que eram para ele mobilizadas --, as autoridades
coloniais continuaram, pelo menos até aos anos 1960 (o Código de Trabalho
Indígena só é revogado em 1962, sendo substituído pelo Código de Trabalho
Rural, que deixa de ter referência racial e proíbe todas as formas de trabalho
forçado, incluindo para fins públicos), a servir de recrutadoras compulsivas
para privados - tratava-se, na linguagem de então, de "contratos com
facilidades" -- e a aceitar as punições corporais com naturalidade, como
vários relatórios reconhecem.
A candura destes relatórios e a
forma como alguns inspetores ou outros membros da administração colonial
exprimem a sua discordância e até revolta face à situação - um deles
chega a escrever, referindo, em 1949 em S. Tomé, a existência de
"grilhetas superiores a dois metros" e o facto e de o governador
certificar que "só ele podia ordenar punições": "E manda ainda o
Senhor Deus pretos a este mundo!" - é, para o leitor não
especialista, uma das grandes surpresas que resulta da leitura de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um
império sob escrutínio (1944-1962), do historiador José Pedro
Monteiro, publicado este mês, e que, nas palavras do próprio, "mobilizando
fontes inéditas, ilustra, pela voz de administradores imperiais e locais e de
testemunhas autóctones, algumas realidades laborais e sociais vigentes nas
colónias, permitindo, deste modo, cotejá-las tanto com as denúncias que se
produziram internacionalmente como com os esforços de refutação oficial, frequentemente
de natureza propagandística."
"É impressionante, no
mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos
por ofensas corporais" ", escrevia, por exemplo, em 1944, o
inspetor Nunes de Oliveira; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe,
em 1947, lia-se: "Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a
tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles, por essa razão; eles
constituem uma considerável multidão, de algumas dezenas de milhar, dispersos
pela densa floresta, e os agentes dos patrões que têm de os conduzir, só tal
conseguem impondo-lhes uma disciplina severa, disciplina que só se consegue por
meio de sanções expeditas e bem sentidas."
"É impressionante, no
mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos
por ofensas corporais" ", escrevia em 1944 um inspetor; noutro
relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: "Os serviçais
vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio
entre eles,"
É, recorda José Pedro Monteiro, o
mesmo ano do célebre relatório choque que o inspetor-geral da
Administração Colonial Henrique Galvão apresenta à Comissão das Colónias da
Assembleia Nacional (o nome então dado ao parlamento), no qual informa que
"o trabalho forçado ou "contratado" era a norma, as condições de
vida miseráveis, a corrupção entre as autoridades generalizada", chegando
mesmo a dizer que os escravos eram melhor tratados que os trabalhadores
forçados, já que aos primeiros, sendo sua propriedade, o dono se esforçava por
manter vivos e com saúde, enquanto que os segundos, se morriam de fome ou
exaustão, eram substituídos por mais trabalhadores "recrutados" pelo
Estado. Um excerto do relatório de Galvão: "A mortalidade infantil
atingia a percentagem de 60%. O índice de mortalidade era de 40%, mesmo entre
os trabalhadores na plenitude da vida. As figuras era mudas, estáticas. Não
gritavam, não falavam de dor. Era preciso ver com os próprios olhos, era preciso
encorajar até aqueles que queriam ver"
"Grilhetas ao
pescoço" e chicote
Nada que devesse surpreender quem
vinha lendo os documentos das inspeções "normais". Seis anos antes,
diz José Pedro Monteiro, "um relatório do Curador Geral dos Indígenas de
Angola relatava que os "indígenas" sentiam tal
"horror" pelo contrato que, no Lobito, se tinha dado um episódio em
que uns quantos se tinham lançado ao mar para lhe escapar. (...) O
mesmo curador relembrava uma nota confidencial, relativa à intendência do
Moxico, em que se informava que não havia capacidade para recrutar
trabalhadores para a Companhia de Diamantes de Angola porque todos os
"indígenas" que podiam ser recrutados tinham desaparecido. "A
excepcional mortalidade entre os indígenas em serviço naquela companhia e o
"Estado de Morto em pé" com que todos têm sido repatriados, alguns
indígenas que morrem pouco depois [de aqui] chegar, e, ainda, os que com o
corpo mutilado conservam a vida e vivem actualmente pedindo esmola, sem receber
qualquer indemnização da Companhia, constituem, como todos nós sabemos, a razão
da relutância que os indígenas mostram por aquele serviço"".
E em 1945, lê-se em Portugal e a Questão do Trabalho Forçado,
o Curador de S. Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13
anos, "muito além do estabelecido pela lei como limite máximo de
permanência em "contrato", a receber metade do salário (...). Invocava-se
ainda um relatório do Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S.
Tomé, em que se relatava a existência de trabalhadores presos com
"grilhetas" ao pescoço. (...) Turistas estrangeiros tinham
fotografado serviçais a ser chicoteados, do que decorria, segundo o
raciocínio do inspetor, que era preciso pensar estes incidentes à luz do que
vinha ocorrendo nos fora internacionais, onde os Estados Unidos vinham
censurando a solução colonial."
"Em 1945 o Curador de S.
Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13 anos, "muito
além do estabelecido pela lei como limite máximo de permanência em
"contrato", a receber metade do salário (...)". Num relatório do
Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S. Tomé, relatava-se a
existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço. (...)
Turistas estrangeiros tinham fotografado serviçais a ser chicoteados."
Já em 1951, o encarregado de
serviços da Inspeção Superior de Negócios Indígenas, após um introito no qual
"enaltecia a essência humanista e benévola da intervenção portuguesa em
territórios coloniais", prosseguia "desfiando um rol de iniquidades e
abusos. Referia-se à taxa de mortalidade no transporte de 650 indígenas
que era de 15,38 por mil quando comparados com os 4,25 por mil registados nas
minas da África do Sul, um trabalho, já de si, extremamente perigoso; aos
acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como
forma de desresponsabilização, o mesmo recurso estatístico usado também para os
classificar como "agonias e congestões"; aos inválidos que eram
obrigados a trabalhar em S. Tomé ("verdadeiros farrapos humanos") por
salários miseráveis; que não eram pagas às famílias as indemnizações por morte
de trabalhadores em S. Tomé; que milhares de "indígenas" ficaram mais
de uma década para além do termo oficial do seu contrato sem serem repatriados;
que os salários em Moçambique e especialmente em Angola chegavam a constituir
cerca de um sétimo dos valores na África do Sul e menos de metade dos salários
da Rodésia; que mulheres de trabalhadores eram sistematicamente violadas por
grupos de serviçais enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram
"monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas" por terem
abandonado o trabalho.""
Muito impressionante também é um
relato de 1949, referente ao "caso dos Tongas" (filhos de
trabalhadores deslocados de outras colónias para trabalho em São Tomé, que
nunca tinham vivido na colónia dos seus pais): "Muitos deles
alegavam que desejavam reencontrar suas famílias, mas o governador-geral de S.
Tomé simplesmente entendia que era um desejo descabido, visto não conhecerem as
famílias, não saberem onde estavam nem sequer se ainda existiam. Ressalve-se
que eram indivíduos com todas as obrigações fiscais e militares cumpridas. Mas
eram também "fortes e saudáveis, educados numa vida de trabalho" e,
como tal, o seu repatriamento devia-lhes ser negado, justificava o
governador."
Não é possível saber, escreve
José Pedro Monteiro, "o destino destas populações, mas a simples ideia de
que o governador entendia possível mantê-las em S. Tomé revela os
termos do debate em matéria de liberdade de trabalho. O relatório é
ainda ilustrativo no sentido em que o funcionário da ISNI, no ensejo de
contrariar a vontade do governador, elencava um conjunto de informação crítica.
Desde logo, referia que serviçais havia que tinham estado entre 10 a 30
anos nas ilhas e que, se o seu contrato tivesse sido cumprido, o problema dos
"Tongas" simplesmente não se punha. Recuperava um trecho do relatório
do curador que os descrevia como "acabrunhados e tristes" e sem
qualquer ideia do que era um contrato livre. Como finalizava o relator:
"As expressões "os meus tongas" ou "tongas das roças"
"embora se autorizem a mudar de situação", como se diz no ofício,
cheiram ainda a bafio de escravatura"."
As descrições são arrasadoras, e
muitas até agora inéditas. Constituindo uma versão editada e revista da tese de
doutoramento do autor, investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, o livro procura dar a compreender "como e
porquê as modalidades de trabalho coercivo se mantiveram política e socialmente
aceitáveis no seio da burocracia imperial portuguesa por um período
consideravelmente mais longo que noutros impérios europeus; porque estavam as
propostas que procuravam pôr-lhes termo tão recuadas face às normas
internacionais; e, finalmente, porque e como foi finalmente concretizada a
reforma que lhes pôs termo, ainda que de modo meramente formal."
O historiador, de 34 anos, que
investigou em vários arquivos -- no arquivo Histórico Diplomático, no Arquivo
Histórico Ultramarino, na Torre do Tombo ("Onde havia pouca coisa"),
e também nos da Organização Internacional do Trabalho em Genebra, da ONU, nos
National Archives nos EUA bem como nos arquivos britânicos, em Kew - conversou
com o DN sobre o seu trabalho.
Houve alguma coisa que o tenha
surpreendido ou chocado particularmente nas suas leituras?
Houve relatórios que li, que
fiquei... Uma pessoa pode-se chocar. Nos debates sobre a escravatura diz-se
muito que é preciso olhar com os olhos daquele tempo. Curiosamente esse é um
dos motivos pelos quais o facto de a abolição da escravatura ter
resultado na generalização do trabalho forçado faz com que com que nas
discussões públicas a questão do trabalho forçado quase não apareça. Porque se
torna um bocadinho mais complicado poder dizer "ah, temos de olhar com os
olhos daquele tempo." Não, aos olhos daquele tempo o trabalho forçado já
era condenado de forma unânime. Não é por acaso que nos debates sobre a
escravatura se alguém quer falar do trabalho forçado vem o "isso era outra
coisa". Reforçando uma distinção legal que não é confirmada pela
continuidade das práticas.
https://www.dn.pt/pais/e-manda-ainda-o-senhor-deus-pretos-a-este-mundo-10343094.html
Fernanda Câncio - Marcelo e o Portugal mais que imperfeito
Em 2017, oito alunos de história do 12.º ano do Liceu Camões aceitaram falar com o DN sobre a forma como viam o passado imperial e colonial português. Para estranheza da própria professora, a maioria reproduziu o mito de que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura apenas no território de Portugal "metropolitano" e mesmo assim não completamente). Do mesmo modo, quando questionados sobre o que sucedera aos escravos depois de em 1869 se ter dado a oficial abolição da escravatura em todos os territórios nacionais, muitos ficaram interditos. Um afirmou: "Então, deram-lhes o estatuto igual aos das outras pessoas."
Não é espantoso. A maioria esmagadora dos portugueses, atrevo-me a dizer - eis uma sondagem que gostava de ver - continua a achar que "fomos os primeiros a abolir" e desconhece totalmente o facto de à escravatura dos negros se ter seguido o trabalho forçado, só formalmente abolido em 1962. Essa realidade do trabalho forçado, que em pouco se distinguia da escravatura, atravessou o final do século XIX, a Primeira República e praticamente todo o Estado Novo. Nas leis, os negros classificados como "indígenas", ou seja a maioria da população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos - constatação que o próprio regime salazarista fez através dos seus documentos internos, como demonstra o historiador José Pedro Monteiro em Portugal e a questão do trabalho forçado (Edições 70, 2018).
A esmagadora maioria dos portugueses, dizia, desconhece estes factos, e desconhece-os não porque eles não estejam amplamente estudados por gerações de historiadores e investigadores académicos, com vasta obra publicada sobre a matéria, mas porque disso pouco tem passado quer para a discussão pública quer, o que é fundamental, para aquilo que se aprende na escola e se lê nos manuais do ensino básico e secundário. E não passa porque haja uma determinação consciente e malévola de mentir, mas porque coletivamente nos apegámos à mistificação.
O problema não é, ao contrário do que se possa crer, exclusivo de pessoas "pouco cultas". Ainda há poucos meses um reputado constitucionalista português me asseverava que o "nosso" regime colonial não foi racista. Quando lhe retorqui com alguns factos básicos - nomeadamente a instituição do trabalho forçado e a lei do indigenato - respondeu-me "era assim também nos outros países". Só ficou sem argumentos quando lhe lembrei que data de 1930 a convenção da Organização Internacional do Trabalho - só ratificada por Portugal em 1956, com prazo de cinco anos para aplicação - obrigando os signatários a acabar com o trabalho forçado no mais curto prazo possível, e que os próprios relatórios dos funcionários coloniais portugueses comparavam, até ao final dos anos 1950, a realidade do trabalho forçado à da escravatura, descrevendo castigos corporais com chicote e grilhetas e chegando a dizer que o primeiro era pior que a segunda, já que nesta ao menos o dono não estava interessado em matar o escravo já que pagara por ele, enquanto no trabalho forçado tanto lhe fazia: se morria pedia outro.
A ideia de que "não se pode olhar para a realidade do passado com os olhos de hoje", tão usada a propósito da história imperial e colonial portuguesa, soçobra perante a evidência de que estamos também a falar de coisas que se passaram há menos de 100 anos, quando outros países ocidentais já tinham iniciado a descolonização e quando eram muitas as vozes, inclusive em Portugal e nas colónias, a criticar - e a lutar contra - o que se passava. Muitos dos olhos de então já olhavam aquela realidade como a olhamos hoje, como iníqua, ilegítima e brutal.
E sim, vem todo este grande introito a propósito do discurso de Marcelo neste 25 de abril - um discurso notável, talvez o melhor que já lhe ouvi, e no qual teve a inteligência de sublinhar a sua condição de filho do último ministro das Colónias e de um dos últimos governadores de Moçambique, testemunha privilegiada (em vários sentidos) do ocaso do império e da ditadura colonial.
Esta assunção da sua condição pessoal - que aliás repetiria a seguir num encontro com capitães de Abril e jovens, no qual também fez um discurso muitíssimo interessante - tem um propósito mais ou menos claro: o de demonstrar, e bem, que o 25 de Abril é simultaneamente rutura e continuidade. Como ele, filho de um alto dignitário da ditadura que faria parte da Assembleia Constituinte de 1975 e acabaria duas vezes eleito presidente da democracia, os militares que fizeram o golpe "não vieram de outras galáxias, nem surgiram num ápice daquela madrugada para fazerem história. Traziam já consigo a sua história." E a sua história eram "as suas comissões em África, uma, duas, três, até quatro, (...) tudo em situações em que a linha que separa o viver ou morrer é muito ténue."
Eram pois os soldados do regime colonial, algozes, ocupantes, matadores, até serem os heróis da libertação. Sabemo-lo, ou devemos sabê-lo - mas saberá Marcelo distinguir entre quem retirou dessa experiência a deliberação de acabar com ela e quem, como Marcelino da Mata, a cujo enterro foi há meses como presidente, ou seja em nome de todos nós, se gabava dos seus crimes nessa guerra e louvava a ditadura?
É que esse é o problema: distinguir. E Marcelo, como a maioria esmagadora dos políticos da democracia, sejam como ele filhos de homens da ditadura ou como António Costa de oposicionistas, têm mostrado dificuldade nessa distinção e nesse olhar para trás, na capacidade de traçar a linha entre o que é admissível e até celebrável e o que deve ser censurado - porque é preciso dizer que houve coisas censuráveis e criminosas, por mais que tenham feito parte de um contexto.
Daí que seja tão bem-vinda a exortação do presidente para "que se faça história, história da história, que se tirem lições de uma e de outra, sem temores sem complexos", o reconhecimento de que "é prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. (...) Que saibamos fazer dessa história lição de presente e de futuro. Sem álibis nem omissões (...)."
É isso mesmo. Ou seria, se a seguir não acrescentasse: "É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas nem autoflagelações globais excessivas (...) nem apoucamentos injustificados." É de novo a preocupação com "a visão auto flageladora da nossa história" que vimos recentemente em António Costa, preocupação extraordinária num país que até hoje se encarniça em negar "o que houve de mau" ou chega mesmo a celebrá-lo; preocupação contraditória num discurso presidencial que nos diz que temos de olhar a história também "pelo olhar dos colonizados".
Olharmo-nos pelo olhar dos "descobertos", dos submetidos, dos colonizados e dos seus descendentes não é só dizer que "nunca houve um Portugal perfeito" - a melhor frase do discurso do presidente. É sobretudo reconhecer o que desse passado mais que imperfeito resta em nós como país, denunciá-lo e combatê-lo. Aquilo, suspeito, a que Marcelo chama "excesso".
Jornalista
NOTA:
Na semana passada, escrevi sobre o Primeiro Plano Nacional Contra o Racismo e o ensino de história no básico e secundário, sob o título Implodir o padrão dos descobrimentos. Cometi erros no que escrevi e fui para isso alertada pela Associação dos Professores de História, por via de um email do seu presidente, Miguel Monteiro de Barros, pelo que me apresso a corrigir, agradecendo a retificação, que foi também colocada no artigo em questão.
Nesse artigo, lê-se: O programa de história do básico e secundário não mexe desde 2002 - ou seja há praticamente 20 anos. A responsabilidade pelos programas, como pela aprovação dos manuais, é das associações de professores - neste caso os de história; os governos limitam-se a homologar. É pois importante saber como a Associação dos Professores de História tenciona pôr em prática o plano de combate ao racismo na sua disciplina; como pensam contribuir para desfazer estereótipos e complexificar a visão romantizada dos "descobrimentos" e daquilo que se lhes seguiu, exorcizando a ideia verdadeiramente insultuosa de que o colonialismo português "não foi racista".
A APH retifica: "O documento curricular de referência já não são os programas, mas as Aprendizagens Essenciais (AE), elaboradas pela Associação de Professores de História, após consulta pública, e homologadas pela DGE (Direção Geral da Educação). O processo de elaboração das AE iniciou-se em 2016, tendo estas sido homologadas em 2018. Esta foi a primeira vez que a Associação de Professores de História foi parceira no processo de elaboração de um documento curricular basilar, nunca antes participou na elaboração de qualquer programa disciplinar, apenas foi consultora."
Parte do erro deveu-se ao facto de me ter baseado na informação que tinha recolhido em 2017 para um artigo sobre os programas e manuais, não me tendo dado conta de que entretanto (em 2018) tinha havido alterações.
Mais uma vez baseando-me nessas informações recolhidas em 2017, afirmei também no referido artigo de opinião que os manuais escolares eram aprovados (querendo dizer certificados) pela APH. Esta nega: "A Associação de Professores de História, tal como acontece com os programas, não possui quaisquer competências para "aprovar manuais". As editoras editam os manuais, sendo estes certificados, atualmente, por centros de certificação existentes em diversas universidades e institutos politécnicos, designados pela tutela. A Associação de Professores de História não tem nada a dizer sobre o assunto."
Manuel Loff - Uma história “sem álibis nem omissões”
OPINIÃO
Pela minha parte, eu e muitos
investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar
tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por
todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, o Estado e a maioria da
sociedade nunca quis assumir.
27 de Abril de 2021, 0:15
Lamento mas, se chegou a haver
alguma unanimidade quanto ao
discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 25 de Abril, eu não me junto a ela.
Por mais corajosa que possa ter parecido a atitude do homem que nos falou como
filho de “governante na ditadura e no Império”, e que entende ser “prioritário
assumir tudo, todo o passado, sem auto-justificações ou auto-contemplações
globais indevidas”, deveria, ele que me desculpe, começar por si próprio.
É compreensível que o filho
de Baltazar
Rebelo de Sousa, cuja carreira política esteve associada até à medula à
gestão colonial nos anos da guerra, nos recorde que, como “constituinte,
[viveu] o arranque do novo tempo democrático (...) como milhões de portugueses
[situado] entre duas histórias da mesma história” – mas já não é aceitável ser
quem nos peça que, ao “revisitarmos a história”, não a julguemos com os valores
do presente. Porque é isso mesmo que ele faz, como fizeram os anteriores
presidentes da República todos os dias 10 de Junho, 1.º de Dezembro, 5 de
Outubro e, claro está, 25 de Abril.
Chama-se a isso o uso político do
passado, que Marcelo usa como usam representantes de Estados que queiram dar
lições aos cidadãos do presente a propósito dos atos dos cidadãos de ontem, e
que, em nome da honestidade, não deveria pretender que é coisa apenas daqueles
que discutem o passado nos termos que lhe não agradam.
Quando Marcelo nos pede para não
“[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...)
agora tidos por evidentes, intemporais e universais”, persiste num dos mais
velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um
tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros
teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram
alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo
tiveram quem as denunciasse.
Marcelo, que em 2017 foi a Gorée
(Senegal) elogiar a precocidade portuguesa na história
da abolição da escravatura, pretendendo que Pombal a teria abolido em 1761,
não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem
anos – eis o (ab)uso político do passado – como sabia
também que a condenação da escravatura, do papel pioneiro e persistente que
portugueses tiveram no tráfico, ou a denúncia do trabalho forçado que se
manteve até aos anos 1960 nas colónias portuguesas, foi contemporânea dos
próprios fenómenos e não é um “juízo do passado com os olhos de hoje”. Como o
anticolonialismo foi contemporâneo do colonialismo, e contemporânea da guerra
foi a recusa em fazê-la (sobre a qual Marcelo não pronunciou uma palavra) e foi
a contestação da resistência antifascista portuguesa à escolha de Salazar em
fazê-la. Nenhuma destas batalhas é recente, pelo que é inaceitável qualquer insinuação
de que estas podem ser “campanhas de certos instantes”.
Era bom que o Presidente
esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele
entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o
sejam alguma vez"
Com toda a razão, o Presidente
diz que “o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder”.
Deveria, contudo, lembrar-se como o seu partido e todo o universo conservador
da sociedade portuguesa, que, logo desde 1974, amaldiçoaram a Revolução e
descreveram a descolonização como uma traição,
não simplesmente procuraram “esconder”, mas pura e simplesmente negaram a
natureza intrínseca da dominação colonial e toda a violência que ela
significou. Se hoje, como Presidente da República, pretende que se faça uma
História “sem álibis nem omissões”, pode desde já ajudar à desclassificação de
muita documentação militar que continua inacessível.
Pela minha parte, eu e muitos
investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar
tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por
todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz
da moral e do Direito (não apenas os de hoje, mas também os do momento em que
foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir e não
quer que se investigue.
Era bom que o Presidente
esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele
entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o
sejam alguma vez”. Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do
discurso. É que só esclarecendo essas “omissões” seria verdade que, enquanto
sociedade, “nos responsabilizamos” pelos nossos “fracassos” históricos da mesma
forma como “assumimos as glórias que nos honram”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico