OPINIÃO
* Nuno Pacheco
8 de Abril de 2021, 0:10
Há momentos em que os deputados nos espantam com gestos enternecedores. Não, nada a ver com os massacres em Moçambique, as cheias em Timor-Leste ou os deserdados da pandemia. Trata-se de um projecto de decreto-lei para proteger uma língua minoritária: o Barranquenho. Apresentado no dia 26 de Fevereiro e subscrito por 22 deputados do Partido Socialista, foi-lhe dado o n.º 708/XIV e foi publicado no Diário da Assembleia da República de 1 de Março. E esta semana, na terça-feira, a Comissão de Educação, Ciência, Juventude e Desporto lá tinha o tema incluído na sua agenda, com a “apreciação e votação do contributo da Comissão” para tal projecto de lei.
Convém explicar (e o PS gastou várias folhas A4 a fazê-lo) que o Barranquenho é uma língua antiga, falada em Portugal desde os tempos medievais. O projecto apresenta-a como “uma língua híbrida, ainda que sem tradição escrita, única no mundo pelo seu carácter misto de português e espanhol, falado pelos cerca de 1300 residentes e por todos os naturais do Concelho há vários séculos”, citando, em seu favor, o linguista, filólogo e etnógrafo Leite de Vasconcelos (1858-1941), que ao estudá-la a referiu como “curioso dialecto [o PS escreve dialeto, mas Leite de Vasconcelos merece que se lhe devolva o C] popular usado no concelho de Barrancos; tem por base o falar do Baixo Alentejo, modificado pelo Estremenho-Andaluz que lhe deu feição muito notável”. O que pretendem os subscritores? Que ao Barranquenho sejam concedidas por lei as mesmas medidas de protecção conferidas ao Mirandês, quando o mesmo hemiciclo votou e aprovou a Lei n.º 7/99, visando (artigo 1.º) “reconhecer e promover a língua mirandesa”. Tal qual o que agora se pede para o Barranquenho: reconhecimento e protecção; reconhecimento do direito à aprendizagem; uso em documentos públicos; apoio científico e educativo “tendo em vista a investigação, a formação de professores de Barranquenho, nos termos a regulamentar.”
Ora sendo este um caminho pedregoso, para escapar à extinção, é bom saber que há quem se interesse por proteger línguas ameaçadas, não só o Mirandês (considerada a segunda língua de Portugal, com cerca de 7 mil a 10 mil falantes no extremo nordeste do país), como agora o Barranquenho ou antes o Minderico, língua falada em Minde, no Ribatejo, que em Outubro de 2015 passou a integrar o Registo da Memória do Mundo da UNESCO. Minde (ou Ninhou, em Minderico) tinha 3.293 habitantes em 2011 (segundo o último censo) e o Minderico teve até direito a uma canção, gravada em 1982 por Pedro Barroso (1950-2020): A Piação dos Ninhou
No mundo, haverá cerca de 3 mil línguas ameaçadas de extinção e é bom haver quem olhe por elas. Isto independentemente de se saber se são mesmo línguas, dialectos ou sociolectos, uma discussão de que se têm ocupados os linguistas – Maria Helena Mira Mateus (1931-2020), por exemplo, defendeu em 2009 à Lusa que em Portugal apenas o mirandês teria “características, fonética e estruturas próprias” que permitem considerá-lo língua e não mero dialecto. Enfim…
Será preciso que o português de Portugal, europeu, para ser reconhecido, promovido, protegido, ensinado e usado em documentos públicos, seja falado e escrito, não por 10 milhões, mas por umas escassas mil, 3 mil ou 10 mil pessoas?
Tudo isto seria muito bonito se aqueles que tão enternecidamente olham para estas línguas, ou dialectos, defendendo-as de ameaças, tivessem idêntica atitude diante do português europeu. Leiam, por favor, este preâmbulo do actual projecto de decreto-lei em defesa do Barranquenho: “Apesar de tradicionalmente afirmada a ideia de que o perfil linguístico de Portugal corresponde a uma realidade homogénea e monolingue, os anos finais do século XX e o século XXI têm permitido reforçar a evidência e a importância da valorização da diversidade linguística existente no território nacional.” Bonito, não é? Alteremo-lo ligeiramente: “Apesar de tradicionalmente afirmada a ideia de que o perfil dos falantes de português no mundo corresponde a uma realidade homogénea, os anos finais do século XX e o século XXI têm permitido reforçar a evidência e a importância da valorização da diversidade do idioma existente nos territórios onde é falado.” Com tal preâmbulo, o Acordo Ortográfico de 1990 teria reconhecido as variantes do português e escusávamos de ler uma proposta, como esta do PS, a defender o Barranquenho… em acordês.
Parece um daqueles filmes em que o padrinho mafioso manda matar os pais e depois dá aos órfãos bolsas de estudo e afagos chorosos! Será preciso que o português de Portugal, europeu, para ser reconhecido, promovido, protegido, ensinado e usado em documentos públicos, seja falado e escrito, não por 10 milhões, mas por umas escassas mil, 3 mil ou 10 mil pessoas?
https://www.publico.pt/2021/04/08/culturaipsilon/noticia/proteger-linguas-ameacadas-boa-ideia-1957509
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