segunda-feira, 26 de abril de 2021

Daniel Oliveira - Catarina e a beleza da dúvida

OPINIÃO

* Daniel Oliveira

Podemos fazer o mal para praticar o bem? Podemos travar o tirano antes de ele o ser? Os que querem esmagar a liberdade podem usá-la plenamente? E quando chegarem ao poder, não será tarde demais para defender a nossa? Até onde se tolera o intolerante? E quando é que a vontade de o combater nos transforma em seu semelhante? E quando é que a vontade de não nos assemelharmos a ele nos torna em seu cúmplice? “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” dá-nos dilemas em que todas as escolhas são trágicas. Mas não nos propõe a convivência com o fascismo. Perante ele, ou a democracia vence ou será vencida

26 ABRIL 2021 9:09

Édifícil escrever sobre “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues, sem estragar a experiência violenta que espera quem vai assistir. Evitarei ser “spoiler”, ficando-me pelo início do enredo. Ainda assim, se tem esperanças de ver uma peça que o Teatro Dona Maria II devia multiplicar por muito mais sessões, talvez seja melhor parar de ler este texto. Para si, até amanhã.

Os protagonistas pertencem a uma família descendente de uma imaginada amiga de Catarina Eufémia. Ela matou o seu marido, que estava ao lado do tenente da GNR que assassinou a ceifeira. Matou-o por ser cúmplice, sabendo que os cúmplices são os verdadeiros obreiros das tiranias. Todos os anos, no dia 19 de maio, a família segue uma velha tradição deixada por herança desde 1954: matar um fascista. É chegado o batismo macabro para uma das protagonistas, no dia em que faz 26 anos, a idade com que Catarina Eufémia morreu. Tudo acontece em 2028, com a extrema-direita acabada de chegar ao poder.

No palco, as dúvidas de sempre quando temos pela frente o monstro da tirania: como o travar? Podemos fazer o mal para praticar o bem? Podemos aplacar a violência do ódio com ódio e violência? E se não o fizermos, manteremos puros princípios que serão irremediavelmente esmagados? Podemos fiar-nos na repetição da História para travar os que insinuam a barbárie do passado? Podemos travar o tirano antes de ele o ser? E como sabemos se o será? Debate-se com um racista, mesmo sabendo que racismo não é opinião? Podemos dizer que um fascista é fascista apesar de em rigor ser apenas coisa aproximada? Os que querem esmagar a liberdade podem usá-la plenamente? E quando isso os levar ao poder, não será tarde demais para defender a nossa? Até onde vai a tolerância com o intolerante? E quando é que a vontade de o combater nos transforma em seu semelhante? E quando é que a vontade de não nos assemelharmos a ele nos torna em seu cúmplice? Onde está a fronteira entre a coragem e o fanatismo, a cobardia e a dúvida?

Sabendo que a provocação não é gratuita, temos de permitir que “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” se livre do vírus insuportável da literalidade que tomou as cabeças do nosso tempo. Porque estão ali todas as angústias dos democratas. A democracia pode resistir aos novos rostos do fascismo? E não podendo, como eu acho que não pode, o que vamos nós fazer perante o seu avanço? Combater as causas? Sabemos assim tão bem que causas são essas? E a nossa resistência é apenas identitária, um hábito passado de pais para filhos, ou nasce de escolhas individuais pensadas? Até que ponto a força de que precisamos para defender mais uma vez a democracia pode viver com as contradições que nos fazem humanos? Seremos feitos de massa assim tão diferente para nos acharmos moralmente superiores?

Desculpem se só há perguntas. “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” não aponta um caminho que nos livre da sensação de que estamos a viver uma história que já está escrita. Temos a sensação de que nada vale a pena: se usamos o argumento legitimamos, se usamos a força criamos uma vítima, se debatemos normalizamos, até porque é um debate onde as palavras chocam em muros de mentiras e manipulações. Este é o resultado de “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”: saltamos de dúvida em dúvida à medida que ela se contorce em espasmos de dor no palco. Quando nos encaminha para uma resposta que acalma a angústia do democrata, levamos um murro no estômago. Ele não vem com uma previsão sobre o futuro próximo, mas com tudo o que já nos é explicitamente dito agora. A ponto de desafiar, com brutal desconforto emocional e físico, as nossas convicções morais mais profundas. Acho que foi a primeira vez que ouvi um ator ser insultado pela plateia.

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” não nos dá a resposta. A arte não serve para nos oferecer compromissos pacificadores. Dá-nos dilemas em que todos os caminhos são trágicos. Dá-nos uma ventania de dúvidas que entra por todas as frinchas das nossas convicções. Só não nos dá o indiferentismo. Há uma fronteira inultrapassável entre um fascista e um democrata. Tem de haver. Não somos apenas adversários no jogo democrático. Não falo dos que são seduzidos a seguir o demagogo. Desses não se desiste. Falo de quem usa a democracia para a destruir. Tiago Rodrigues confronta-nos com os muitos caminhos que o combate à extrema-direita pode seguir, não nos propõe a convivência com o fascismo. Porque perante ele, ou a democracia o vence ou será vencida.

https://expresso.pt/opiniao/2021-04-26-Catarina-e-a-beleza-da-duvida-2354eba4

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