Meninos do lodo
Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) escreveu seis livros, entre
os quais dois de contos e um de crónicas. Foi resistente antifascista e
dirigente do PCP D.R.
Uma altura em que a miséria e a desigualdade continuam a
grassar pelo mundo é tão boa como qualquer outra para revisitar uma obra-chave
do nosso neorrealismo. “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, faz 80 anos
TEXTO LUÍS M. FARIA
Para os filhos dos homens que nunca foram meninos.” A famosa dedicatória de “Esteiros”, o primeiro grande romance do neorrealismo português, é ao mesmo tempo triste e cheia de esperança. Triste, pela referência às crianças que não podiam viver como crianças — um espetáculo muito presente no Portugal de 1941, e concretamente em Alhandra, onde Soeiro Pereira Gomes tinha ido viver após um ano em Angola. Da sua janela, ele via as crianças a trabalhar no rio Tejo. O fabrico de tijolos implicava abrir canais (os chamados esteiros), extrair o lodo, cozer o tijolo no forno, retirá-lo ainda quente e pô-lo a secar, bem como atividades adjacentes, como o transporte do carvão que alimentava os fornos, e dos próprios tijolos... Ainda hoje estão vivos idosos que trabalharam nessa indústria em crianças — que, portanto, nunca foram meninos — e recordam as brutalidades a que a pobreza familiar os sujeitava. Da sua janela, Pereira Gomes assistia a essa realidade em direto, e sentiu que não podia deixar de escrever um romance que a perpetuasse na memória. É o caso flagrante de uma história que se impõe a um escritor, a tal ponto que ele não precisa de lhe acrescentar nada, exceto o seu talento.
ESTEIROS
Soeiro Pereira Gomes
Quetzal, 2021, 253 págs., €16,60
Romance
O lado esperançoso da dedicatória tem a ver com a remissão
para uma geração futura. Ao dedicar-lhe o livro, o autor presume que ela já
estará em condições de o apreciar. Portanto, já terá ido à escola o número de
anos suficientes para aprender a ler livros. Uma esperança natural num homem
que era membro sénior do PCP, um partido empenhado na transformação social da
qual a literatura devia ser um instrumento.
Os membros do grupo de amigos que
protagonizam “Esteiros” não têm mais do que o início da escola primária, quando
o têm. Entre vários momentos em que o livro nos atinge emocionalmente, um dos
primeiros é quando João (um miúdo alcunhado Gaitinhas pela sua propensão a
imitar os instrumentos musicais do coreto), filho de um pai que se ausentou
para perseguir uma ideia bem intencionada mas irrealista e de uma mãe que está
a morrer, recebe a notícia de que vai ter de renunciar ao seu sonho de
continuar os estudos, para ir trabalhar. A partir daí, os encontros com o seu
melhor amigo da escola, filho do grande proprietário local, tornam-se
dolorosos, para não dizer impossíveis. Num texto que prima pela economia
narrativa, Pereira Gomes consegue atribuir verdadeira individualidade a cada
criança do grupo, sem sequer precisar de os descrever fisicamente. Uma suposição
inevitável é que não teriam o ar saudável, bem alimentado e bem vestido em
tempos visto numa reconstituição da RTP. Se João é o intelectual do grupo — o
único que consegue contar até mil, portanto encarregado de contar o produto de
roubos de fruta que os miúdos vão fazendo — Gineto é o líder, o miúdo rebelde
que desafia a sociedade e recusa o seu destino marcado à nascença, acabando por
não conseguir escapar aos castigos reservados para pessoas como ele. Os
restantes incluem o Maquineta, um miúdo que sonha ir trabalhar nas máquinas da
Fábrica Grande (que arruína o negócio do telhal onde laboram os miúdos), e
Sagui, uma criança de rua que jamais conheceu os pais e não sabe o seu nome
verdadeiro, ou sequer a idade que tem.
O estilo pode não ser perfeito, com lugares-comuns e ecos
de sermão, mas nada disso incomoda, pois está sempre ao serviço da história e
da sua dimensão psicológica
Andam todos pelo fim da infância/início da adolescência, ou
seja, algures entre os dez e os doze, o que os predispõe para começar a desejar
certo tipo de aventuras, incluindo a descoberta do sexo, numa existência que os
levava a tornarem-se homens rapidamente, sem deixarem de pensar como crianças.
A personagem da Doida, uma mulher com quem todos acabam envolvidos, podia ter
sido uma criação de Fellini, num registo diferente. Aqui é mais um elemento de
denúncia dos efeitos da miséria, ou seja, mais um pedaço da tragédia.
Numa obra
que assume um propósito de denúncia social, o risco evidente é que a narrativa
assuma um carácter quase automático, caricatural. Embora haja elementos disso
nalguns personagens de “Esteiros” — em particular o homem rico que diz à mãe
desesperada do Gaitinhas que já há doutores a mais e fazem falta operários,
portanto ele não tem razão nenhuma para ir estudar —, de um modo geral mesmo
essas passagens são convincentes. Pessoas em posições de poder e privilégio de
facto falavam assim, e continuam a falar: qual turistas que acorrem de longe a
contemplar inundações assassinas em lugares de miséria e dizem atrocidades como
as que Pereira Gomes põe na boca dalguns desses espécimes. Muitos de nós, numa
altura ou noutra, já teremos emitido frases parecidas a propósito de misérias
que sentimos como distantes, até sem dar por isso. “Esteiros” não retira a sua
força dessas caricaturas da realidade, ou realidades caricaturais, mas da
verdade narrativa e da qualidade da invenção em tudo o resto. O estilo pode não
ser perfeito, com lugares-comuns frequentes (“a sinfonia lúgubre do vento”, “o
nevoeiro, cerrado como a noite”, etc.) e ecos de sermão (“o lar falto de pão e
o telhal farto de trabalhos”), mas nada disso incomoda, pois está sempre ao
serviço da história e da sua dimensão psicológica, e de qualquer modo é
sintético. O importante são outras coisas. Nas quatro partes do livro,
correspondentes às estações do ano, surge um panorama de humanidade muito rico,
com espaço também para a alegria e a fantasia, por exemplo quando o grupo vai
ao cinema: “Os rapazes fizeram comentários soezes e escolheram melhor lugar.
Gaitinhas escondeu-se atrás deles, para que o Arturinho, empertigado no
camarote, não lhe visse os rasgões do fato. Teve desejos de lhe desmanchar o
cabelo nédio com uma das bolas de papel que Gineto atirava da galeria. Mas as
luzes extinguiram-se, e Tim McCoy foi recebido com salvas de palmas. Voltou o
sussurro, como ladainha de fiéis. Todos compreendiam agora por que o cowboy
arrebatara aos bandidos a menina da diligência. Gineto lembrou-se de Rosete e
os companheiros desejaram a Doida. De vez em quando, estrugiam palmas e berros
de entusiasmo, que os garotos da rua ouviam lá fora, atrás da porta fechada.
(...) Aproximava-se o momento culminante em que o herói iria defrontar o chefe
dos bandoleiros. Os rapazes mexiam-se nas cadeiras, sustinham a respiração.
Gaitinhas roía as unhas, e, sem saber porquê, tomava partido pelos bandidos.”
Mesmo na mais sacrificada das infâncias, há moedas de circulação universal que
conservam o seu valor.
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