sábado, 17 de abril de 2021

Luís M. Faria - Meninos do lodo (Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes)

Livros

Meninos do lodo

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) escreveu seis livros, entre os quais dois de contos e um de crónicas. Foi resistente antifascista e dirigente do PCP D.R.

Uma altura em que a miséria e a desigualdade continuam a grassar pelo mundo é tão boa como qualquer outra para revisitar uma obra-chave do nosso neorrealismo. “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, faz 80 anos

TEXTO LUÍS M. FARIA

Para os filhos dos homens que nunca foram meninos.” A famosa dedicatória de “Esteiros”, o primeiro grande romance do neorrealismo português, é ao mesmo tempo triste e cheia de esperança. Triste, pela referência às crianças que não podiam viver como crianças — um espetáculo muito presente no Portugal de 1941, e concretamente em Alhandra, onde Soeiro Pereira Gomes tinha ido viver após um ano em Angola. Da sua janela, ele via as crianças a trabalhar no rio Tejo. O fabrico de tijolos implicava abrir canais (os chamados esteiros), extrair o lodo, cozer o tijolo no forno, retirá-lo ainda quente e pô-lo a secar, bem como atividades adjacentes, como o transporte do carvão que alimentava os fornos, e dos próprios tijolos... Ainda hoje estão vivos idosos que trabalharam nessa indústria em crianças — que, portanto, nunca foram meninos — e recordam as brutalidades a que a pobreza familiar os sujeitava. Da sua janela, Pereira Gomes assistia a essa realidade em direto, e sentiu que não podia deixar de escrever um romance que a perpetuasse na memória. É o caso flagrante de uma história que se impõe a um escritor, a tal ponto que ele não precisa de lhe acrescentar nada, exceto o seu talento.

ESTEIROS

Soeiro Pereira Gomes

Quetzal, 2021, 253 págs., €16,60

Romance

O lado esperançoso da dedicatória tem a ver com a remissão para uma geração futura. Ao dedicar-lhe o livro, o autor presume que ela já estará em condições de o apreciar. Portanto, já terá ido à escola o número de anos suficientes para aprender a ler livros. Uma esperança natural num homem que era membro sénior do PCP, um partido empenhado na transformação social da qual a literatura devia ser um instrumento.
Os membros do grupo de amigos que protagonizam “Esteiros” não têm mais do que o início da escola primária, quando o têm. Entre vários momentos em que o livro nos atinge emocionalmente, um dos primeiros é quando João (um miúdo alcunhado Gaitinhas pela sua propensão a imitar os instrumentos musicais do coreto), filho de um pai que se ausentou para perseguir uma ideia bem intencionada mas irrealista e de uma mãe que está a morrer, recebe a notícia de que vai ter de renunciar ao seu sonho de continuar os estudos, para ir trabalhar. A partir daí, os encontros com o seu melhor amigo da escola, filho do grande proprietário local, tornam-se dolorosos, para não dizer impossíveis. Num texto que prima pela economia narrativa, Pereira Gomes consegue atribuir verdadeira individualidade a cada criança do grupo, sem sequer precisar de os descrever fisicamente. Uma suposição inevitável é que não teriam o ar saudável, bem alimentado e bem vestido em tempos visto numa reconstituição da RTP. Se João é o intelectual do grupo — o único que consegue contar até mil, portanto encarregado de contar o produto de roubos de fruta que os miúdos vão fazendo — Gineto é o líder, o miúdo rebelde que desafia a sociedade e recusa o seu destino marcado à nascença, acabando por não conseguir escapar aos castigos reservados para pessoas como ele. Os restantes incluem o Maquineta, um miúdo que sonha ir trabalhar nas máquinas da Fábrica Grande (que arruína o negócio do telhal onde laboram os miúdos), e Sagui, uma criança de rua que jamais conheceu os pais e não sabe o seu nome verdadeiro, ou sequer a idade que tem.

O estilo pode não ser perfeito, com lugares-comuns e ecos de sermão, mas nada disso incomoda, pois está sempre ao serviço da história e da sua dimensão psicológica

Andam todos pelo fim da infância/início da adolescência, ou seja, algures entre os dez e os doze, o que os predispõe para começar a desejar certo tipo de aventuras, incluindo a descoberta do sexo, numa existência que os levava a tornarem-se homens rapidamente, sem deixarem de pensar como crianças. A personagem da Doida, uma mulher com quem todos acabam envolvidos, podia ter sido uma criação de Fellini, num registo diferente. Aqui é mais um elemento de denúncia dos efeitos da miséria, ou seja, mais um pedaço da tragédia.
Numa obra que assume um propósito de denúncia social, o risco evidente é que a narrativa assuma um carácter quase automático, caricatural. Embora haja elementos disso nalguns personagens de “Esteiros” — em particular o homem rico que diz à mãe desesperada do Gaitinhas que já há doutores a mais e fazem falta operários, portanto ele não tem razão nenhuma para ir estudar —, de um modo geral mesmo essas passagens são convincentes. Pessoas em posições de poder e privilégio de facto falavam assim, e continuam a falar: qual turistas que acorrem de longe a contemplar inundações assassinas em lugares de miséria e dizem atrocidades como as que Pereira Gomes põe na boca dalguns desses espécimes. Muitos de nós, numa altura ou noutra, já teremos emitido frases parecidas a propósito de misérias que sentimos como distantes, até sem dar por isso. “Esteiros” não retira a sua força dessas caricaturas da realidade, ou realidades caricaturais, mas da verdade narrativa e da qualidade da invenção em tudo o resto. O estilo pode não ser perfeito, com lugares-comuns frequentes (“a sinfonia lúgubre do vento”, “o nevoeiro, cerrado como a noite”, etc.) e ecos de sermão (“o lar falto de pão e o telhal farto de trabalhos”), mas nada disso incomoda, pois está sempre ao serviço da história e da sua dimensão psicológica, e de qualquer modo é sintético. O importante são outras coisas. Nas quatro partes do livro, correspondentes às estações do ano, surge um panorama de humanidade muito rico, com espaço também para a alegria e a fantasia, por exemplo quando o grupo vai ao cinema: “Os rapazes fizeram comentários soezes e escolheram melhor lugar. Gaitinhas escondeu-se atrás deles, para que o Arturinho, empertigado no camarote, não lhe visse os rasgões do fato. Teve desejos de lhe desmanchar o cabelo nédio com uma das bolas de papel que Gineto atirava da galeria. Mas as luzes extinguiram-se, e Tim McCoy foi recebido com salvas de palmas. Voltou o sussurro, como ladainha de fiéis. Todos compreendiam agora por que o cowboy arrebatara aos bandidos a menina da diligência. Gineto lembrou-se de Rosete e os companheiros desejaram a Doida. De vez em quando, estrugiam palmas e berros de entusiasmo, que os garotos da rua ouviam lá fora, atrás da porta fechada. (...) Aproximava-se o momento culminante em que o herói iria defrontar o chefe dos bandoleiros. Os rapazes mexiam-se nas cadeiras, sustinham a respiração. Gaitinhas roía as unhas, e, sem saber porquê, tomava partido pelos bandidos.” Mesmo na mais sacrificada das infâncias, há moedas de circulação universal que conservam o seu valor.

 https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2529/html/revista-e/culturas/livros/meninos-do-lodo


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