sexta-feira, 23 de abril de 2021

António Guerreiro - O poder das narrativas

 CRÓNICA ACÇÃO PARALELA

António Guerreiro

23 de Abril de 2021, 8:17

Há alguns dias, comentando num canal de televisão a entrevista de José Sócrates na TVI, um convidado utilizou mais de uma dezena de vezes a palavra “narrativa”. É uma palavra cheia de evocações e que foi acumulando à sua volta um corpus teórico de grande alcance e densidade, dando até origem a um campo disciplinar chamado narratologia. Mas não era obviamente o saber da narratologia, com os seus conceitos e categorias, nem o imaginário narrativo que fez do romance o género literário hegemónico do nosso tempo, que o comentador tinha no seu horizonte quando usou de maneira recorrente a palavra “narrativa”. Conhecemos bem esse uso porque ele tornou-se frequente no discurso político: “narrativa” significa uma efabulação ou a criação de um cenário que confere sentido a uma determinada ordem de factos ou de ideias. O critério de validade de uma “narrativa”, entendida neste sentido, é a sua verosimilhança e a sua lógica.

O que pode uma narrativa? Pode muito, como sabemos. Tal é esse poder que não há nenhum poder político que não se aproprie das estratégias narrativas. A noção de storytelling refere-se hoje a um modo e ferramenta das práticas gestionárias, publicitárias e políticas. É o uso da narração para fins de manipulação, de formatação mental e ideológica e de homogeneização. No seu livro de 1979, La condition potmoderne, que forneceu as bases para a designação de uma época que não foi bem uma época, Jean-François Lyotard caracterizou a pós-modernidade como um tempo de crise das “grandes narrativas” formadoras da modernidade. Por exemplo, a narrativa do progresso. Ora, o triunfo do storytelling edifica-se sobre as ruínas dessas grandes narrativas que foram narrativas de emancipação, com as quais a esquerda se identificou e constituíram o seu solo ideológico.

Mas isso pertence a uma história que deu muitos frutos e faz hoje parte do passado. Se pudemos assistir nas últimas décadas ao triunfo político de um imaginário narrativo, ele foi criado pelo poder dos media (um poder mediacrático). O neoliberalismo, o neoconservadorismo, o empreendedorismo e a meritocracia são as grandes narrativas do nosso tempo. São elas que detêm o monopólio das ideias de uma sociedade governada pela eficácia e capaz de fornecer bem-estar e riqueza. Em oposição a esta nova modalidade de “grande narrativa”, a esquerda tem-se limitado quase exclusivamente a dizer que ela não é verdadeira, que a verdade está antes na exclusão e na pobreza a que a maioria, supra-numerários nessa fábula de heróis e protagonistas, está sujeita. Sem narrativas, nem grandes nem pequenas, a esquerda tem-se limitado a fazer oposição às narrativas da direita que, tradicionalmente, nunca as tivera. Ou melhor, as suas narrativas eram de certo modo míticas, eram as narrativas intemporais do enraizamento, fascinadas com o passado e com a ordem trans-histórica. Mas mal se entrava no presente, mal se abandonava a História (com “h” maiúsculo) e se entrava no social e na economia política, entrava-se no território da esquerda. Como é bem visível, não é isso que acontece hoje. Parece que as “narrativas” deixaram de servir a mobilização à esquerda e o seu poder passou a ser usado pela direita e exacerbado de maneira delirante pela extrema-direita (vejam-se as teorias da conspiração, os negacionismos, os populismos). É aí que encontramos hoje o seu poder de mobilização. A palavra “propaganda”, que conhecemos muito bem de momentos sinistros do passado histórico, está a ser reactualizada por todo o lado, com meios que são próprios das estratégias narrativas. Perante elas, até o romance como género literário (e que, na verdade, até já se tinha tornado um género editorial, tal era a vontade que os editores tinham de que todos os livros que publicavam fossem chamados romances) parece já não ter o mesmo sucesso que teve até há pouco anos, quando invadiu com uma tal profusão todo o campo literário que houve quem, com muito boas razões, o classificasse como o cancro da literatura. A democracia literária de massa a que se tentou adequar o romance como género editorial é um equivalente deste poder narrativo que ficou entregue à direita.

Livro de recitações

“Portugueses, mais um esforço”
Marcelo Rebelo de Sousa, numa comunicação ao país, na passada quarta-feira, 14/04/2021

Foi com uma forte emoção que escutei a injunção presidencial: “Portugueses, mais um esforço”. Inesperadamente, ali estava o católico Marcelo Rebelo de Sousa a citar o divino Marquês, a trazer Sade para o nosso “boudoir”, a actualizar em época de pandemia e neste país de fraca libertinagem a grande exortação sadiana de 1795, anexa à Philosophie dans le boudoir: “Français, encore um effort, si vous voulez être républicains”. Republicanos, já nós somos, maioritariamente, e parece que sem esforço. Sermos portugueses, isso sim exige esforço. Mas é um grandioso destino, diz a malta da filosofia portuguesa que de “boudoirs” nem quer ouvir falar, e nunca é sem mais um esforço que se chega ao destino, muito menos aquele que coincide com a História. Grandioso é o republicano Marcelo a surgir com as vestes retóricas do Marquês: mais um esforço, e Belém tornar-se-á o Château de Lacoste, dos 120 dias de confinamento.

https://www.publico.pt/2021/04/23/culturaipsilon/cronica/narrativas-1959402

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