CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
23 de Abril de 2021, 8:17
Há alguns dias, comentando num canal de televisão a
entrevista de José Sócrates na TVI, um convidado utilizou mais de uma
dezena de vezes a palavra “narrativa”. É uma palavra cheia de evocações e que
foi acumulando à sua volta um corpus teórico
de grande alcance e densidade, dando até origem a um campo disciplinar chamado
narratologia. Mas não era obviamente o saber da narratologia, com os seus
conceitos e categorias, nem o imaginário narrativo que fez do romance o género
literário hegemónico do nosso tempo, que o comentador tinha no seu horizonte
quando usou de maneira recorrente a palavra “narrativa”. Conhecemos bem esse
uso porque ele tornou-se frequente no discurso político: “narrativa” significa
uma efabulação ou a criação de um cenário que confere sentido a uma determinada
ordem de factos ou de ideias. O critério de validade de uma “narrativa”,
entendida neste sentido, é a sua verosimilhança e a sua lógica.
O que pode uma narrativa? Pode muito, como sabemos. Tal é
esse poder que não há nenhum poder político que não se aproprie das estratégias
narrativas. A noção de storytelling refere-se
hoje a um modo e ferramenta das práticas gestionárias, publicitárias e
políticas. É o uso da narração para fins de manipulação, de formatação mental e
ideológica e de homogeneização. No seu livro de 1979, La condition potmoderne, que forneceu as bases para a designação de
uma época que não foi bem uma época, Jean-François Lyotard caracterizou a
pós-modernidade como um tempo de crise das “grandes narrativas” formadoras da
modernidade. Por exemplo, a narrativa do progresso. Ora, o triunfo do storytelling edifica-se sobre as
ruínas dessas grandes narrativas que foram narrativas de emancipação, com as
quais a esquerda se identificou e constituíram o seu solo ideológico.
Mas isso pertence a uma história que deu muitos frutos e faz
hoje parte do passado. Se pudemos assistir nas últimas décadas ao triunfo
político de um imaginário narrativo, ele foi criado pelo poder dos media (um
poder mediacrático). O neoliberalismo, o neoconservadorismo, o empreendedorismo
e a meritocracia são as grandes narrativas do nosso tempo. São elas que detêm o
monopólio das ideias de uma sociedade governada pela eficácia e capaz de
fornecer bem-estar e riqueza. Em oposição a esta nova modalidade de “grande
narrativa”, a esquerda tem-se limitado quase exclusivamente a dizer que ela não
é verdadeira, que a verdade está antes na exclusão e na pobreza a que a
maioria, supra-numerários nessa fábula de heróis e protagonistas, está sujeita.
Sem narrativas, nem grandes nem pequenas, a esquerda tem-se limitado a fazer
oposição às narrativas da direita que, tradicionalmente, nunca as tivera. Ou
melhor, as suas narrativas eram de certo modo míticas, eram as narrativas
intemporais do enraizamento, fascinadas com o passado e com a ordem
trans-histórica. Mas mal se entrava no presente, mal se abandonava a História
(com “h” maiúsculo) e se entrava no social e na economia política, entrava-se
no território da esquerda. Como é bem visível, não é isso que acontece hoje.
Parece que as “narrativas” deixaram de servir a mobilização à esquerda e o seu
poder passou a ser usado pela direita e exacerbado de maneira delirante pela extrema-direita
(vejam-se as teorias da conspiração, os negacionismos, os populismos). É aí que
encontramos hoje o seu poder de mobilização. A palavra “propaganda”, que
conhecemos muito bem de momentos sinistros do passado histórico, está a ser
reactualizada por todo o lado, com meios que são próprios das estratégias
narrativas. Perante elas, até o romance como género literário (e que, na
verdade, até já se tinha tornado um género editorial, tal era a vontade que os
editores tinham de que todos os livros que publicavam fossem chamados romances)
parece já não ter o mesmo sucesso que teve até há pouco anos, quando invadiu
com uma tal profusão todo o campo literário que houve quem, com muito boas
razões, o classificasse como o cancro da literatura. A democracia literária de
massa a que se tentou adequar o romance como género editorial é um equivalente
deste poder narrativo que ficou entregue à direita.
Livro de recitações
Foi com uma forte emoção que escutei a injunção
presidencial: “Portugueses, mais um esforço”. Inesperadamente, ali estava o
católico Marcelo Rebelo de Sousa a citar o divino Marquês, a trazer Sade para o
nosso “boudoir”, a actualizar em
época de pandemia e neste país de fraca libertinagem a grande exortação sadiana
de 1795, anexa à Philosophie dans le
boudoir: “Français, encore um effort,
si vous voulez être républicains”. Republicanos, já nós somos,
maioritariamente, e parece que sem esforço. Sermos portugueses, isso sim exige
esforço. Mas é um grandioso destino, diz a malta da filosofia portuguesa que
de “boudoirs” nem quer
ouvir falar, e nunca é sem mais um esforço que se chega ao destino, muito menos
aquele que coincide com a História. Grandioso é o republicano Marcelo a surgir
com as vestes retóricas do Marquês: mais um esforço, e Belém tornar-se-á o
Château de Lacoste, dos 120 dias de confinamento.
https://www.publico.pt/2021/04/23/culturaipsilon/cronica/narrativas-1959402
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