quinta-feira, 8 de abril de 2021

Correia da Fonseca - Viver com os outros

* Correia da Fonseca

Foi na pas­sada se­gunda-feira: o dia ama­nhe­cera a jus­ti­ficar a sua per­tença à pri­ma­vera, e a te­le­visão, mais exac­ta­mente a RTP1, como que apro­veitou o quase tá­cito con­vite para sair a re­co­lher ima­gens no ex­te­rior, com ci­da­dãos e ci­dadãs que se adi­vi­nhava es­tarem fartos de con­fi­na­mentos de vária ordem a sa­ci­arem pelo menos um pouco a sua sede de ar livre. E, tanto quanto as ima­gens per­mi­tiram ver, não an­davam iso­lados ou apenas aos pares: es­tavam em grupos, como que acres­cen­tando ao prazer do ar livre usu­fruído o outro prazer de es­tarem com ou­tros, como se o ar livre só se com­ple­tasse com a pre­sença de gente e só desse modo o prazer fosse in­teiro. E seria assim, em ver­dade. Porque a ge­ne­ra­li­dade dos pra­zeres que o quo­ti­diano nos ofe­rece só é com­pleto se par­ti­lhável e/​ou par­ti­lhado, ainda que nem sempre te­nhamos clara cons­ci­ência disso. Viver a sério é com os ou­tros, ainda que nem se­quer nos lem­bremos desse con­di­ci­o­na­mento, tão na­tural e bá­sico que ele é. O tí­tulo de um ro­mance de Isabel da Nó­brega, es­cri­tora que pa­rece estar a ser in­jus­ta­mente es­que­cida, é esse mesmo: «Viver com os ou­tros». Que esta apres­sa­dís­sima alusão os re­corde, ao livro e à au­tora, é um mé­rito mí­nimo que lhe cabe.

Ro­binson e Sexta Feira

Sabe-se, é claro, que a so­ci­e­dade hi­per­ca­pi­ta­lista em que vi­vemos, em que na ver­dade es­tamos apri­si­o­nados, pri­vi­legia as so­lu­ções in­di­vi­duais por­ven­tura con­den­sadas no por vezes quase sa­cra­li­zado prin­cípio do de­sen­ras­canço in­di­vi­dual. Até serão muitos os que se sentem cons­tran­gidos pela ne­ces­si­dade prá­tica de viver com os ou­tros e por­ven­tura sentem uma es­pécie de uma in­for­mu­lada e aliás in­con­cre­ti­zável vo­cação para serem Ro­bin­sons Crusoe. Mas até Ro­binson teve o seu Sexta Feira a des­truir a in­teira so­lidão que uma ilha de­serta im­poria e, tanto quanto se en­tende ou adi­vinha, a pre­sença de Sexta Feira foi-lhe de enorme uti­li­dade. Afinal, no de­curso das an­danças que a vida nos impõe, todos pre­ci­samos de Sextas Feiras e só com eles é que tem in­teiro sen­tido o per­curso exis­ten­cial que cum­primos. Por ou­tras e sim­ples pa­la­vras: viver é com os ou­tros e não há outra ma­neira de estar vivo; viver é com os ou­tros mesmo quando pa­rece que viver é contra os ou­tros. Assim, um belo dia so­la­rengo que con­firma a che­gada da Pri­ma­vera só é ade­qua­da­mente sa­bo­reado se o pu­dermos par­ti­lhar com ou­tros. E o que é ver­dade para um dia pri­ma­veril é-o também para ou­tros con­textos menos po­e­ti­zá­veis mas mais ur­gentes: a con­se­cução de ob­jec­tivos co­muns, a de­fesa de di­reitos, a cons­trução de uma so­ci­e­dade. Sem os ou­tros, os ob­jec­tivos bá­sicos somem-se dis­sol­vidos na mi­opia do in­di­vi­du­a­lismo ex­tremo e bronco. Os ou­tros é que dão sen­tido a quase tudo. Vi­vamos com eles.

https://www.avante.pt/pt/2471/argumentos/163676/Viver-com-os-outros.htm

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