sexta-feira, 23 de abril de 2021

Rui Tavares - Coisas em que fiquei a pensar depois do curso do PÚBLICO sobre História de Portugal

 OPINIÃO

Dos cerca de novecentos anos que Portugal leva como entidade política estável, mais de metade foram passados com domínios fora da Europa. Diz-se que as fronteiras de Portugal mudaram pouco, mas isso não é verdade.

Rui Tavares

23 de Abril de 2021, 0:01

Na quarta-feira o curso acabou como acabaram todas as aulas deste curso, com vontade de ficarmos à conversa por horas. O Professor Amílcar Guerra, palestrante do dia, tinha falado daquele mistério que é a existência no Alentejo e no Algarve de cerca de uma centena de inscrições numa escrita até hoje indecifrada a que às vezes se chama “tartéssia” ou apenas “escrita do Sudoeste”, representando uma língua local ainda por identificar. Era a última de 25 aulas que coordenei para 25 séculos de história e, como em todas elas, houve muitas perguntas e as mais simples eram as mais fascinantes — as que quebravam a barreira do academismo e deixavam os palestrantes contentes por poderem arriscar mais e os alunos fascinados por quererem saber mais.

Eu saí na minha “nuvem do não-saber” pensando como poderia ser que alguém saindo da serra algarvia há 2500 anos para ir até ao litoral encontrar num dia de caminhada gente falando “tartéssico” ou “fenício”, línguas não só diferentes mas provavelmente de famílias linguísticas diversas, que poderiam ser indo-europeias, semíticas ou (à falta de melhor termo) “ibéricas”. Seria mesmo possível nessa jornada encontrar várias línguas diferentes neste território relativamente exíguo? E depois lembrei-me onde já tinha visto isso: em Timor Leste, onde de aldeia para aldeia se pode falar macassai, fataluco, mambai e mais um tanto de línguas de famílias linguísticas tão distintas como o malaio, o papuano ou o polinésico.

Em tempos o nosso território terá sido assim, mas já então sujeito à influência de “uma certa globalização” trazida pelos fenícios, bem mais indiretamente pelos gregos, depois massivamente pelos romanos, com judeus aqui e ali, num território que era a fachada atlântica do mundo mediterrânico: a orla de um mundo euro-afro-asiático no qual, ao mesmo tempo que alguém escrevia aquela escrita do Sudoeste, sábios como Sócrates, Confúcio e Sidarta “Buda” Gautama dispensavam os seus ensinamentos na Ática, China e Índia. Um território ultraperiférico nessa chamada “era axial”, mas que seria dali a uns séculos incorporado no mundo romano e no qual havia uma vaga lógica litoral norte-sul que resultou na província romana da Lusitânia.

Portugal não é a Lusitânia, até porque uma boa parte dele, acima do Douro, pertencia à Gallaecia, e é de lá que vem a nossa língua e o nome do país. Desse ponto de vista podemos ver o nosso país como uma realidade mais fortuita, um artefacto das cruzadas que se cristalizou? É certo que esse país que se veio a fazer com uma língua “emprestada” dos primos galegos e uma capital “estrangeira” de mouros e moçárabes, num território sem fronteiras naturais, esteve várias vezes para se diluir no todo peninsular e algumas para se separar entre Norte e Sul. Mas a verdade é que isso nunca veio a acontecer de forma duradoura. Devemos então supor que essa lógica de “fachada atlântica do mundo mediterrânico” levasse a uma certa coesão que veio a beneficiar aquele reino da Baixa Idade Média que perdurou? Se é verdade que o território de Portugal não corresponde ao da Lusitânia, não esqueçamos que há muitos países que preservaram o seu nome por mais tempo com mudanças de território de uma amplitude muito maior.

Como intuiu Saramago na sua História do Cerco de Lisboa, sem a tal capital que fora moura a história não só de Portugal, mas da Europa e do mundo, teria sido muito diferente. Sem o maior e mais seguro porto natural atlântico desta macro-região, será que as grandes navegações não teriam partido de uma tal Al-Ushbuna, no Gharb Al Andalus? Impossível saber. Mas sem Lisboa, seria quase inconcebível terem sido navegações portuguesas. E esse momento da expansão acabou por ser determinante para tal fachada atlântica que assim deixou de estar na orla do mundo conhecido para estar no centro em relação ao Novo Mundo, multiplicando os seus pontos de contacto, conquista e comércio (incluindo de pessoas escravizadas), diversificando ainda mais a sua composição étnica e disseminando a língua que entretanto havia chamado sua. Dos cerca de novecentos anos que Portugal leva como entidade política estável, mais de metade foram passados com domínios fora da Europa. Diz-se que as fronteiras de Portugal mudaram pouco, mas isso não é verdade: mudaram muitíssimo, e até muito recentemente não tinham ainda regressado à Europa.

O espaço para a crónica acabou, e ainda não falei de algo crucial para as nossas escolhas hoje. Mas por agora deixo apenas o repto a que se inscrevam em futuros cursos de história do PÚBLICO. E para a semana veremos como uma questão da economia e da educação portuguesa no século XVIII é ainda central para a discussão do que deveremos ser depois da entrega do Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal, que foi feita ontem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Historiador; fundador do Livre

https://www.publico.pt/2021/04/23/opiniao/noticia/fiquei-pensar-curso-publico-historia-portugal-1959684

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