OPINIÃO
Francisco Camacho Presidente da Juventude Popular
2 ABRIL 2021 17:18
2 de Abril de 1976. O hemiciclo de São Bento estava decorado com flores brancas e, claro, cravos vermelhos. O plenário duplamente iluminado pelos holofotes da televisão. Às 9h30 da manhã, perante a chamada de Henrique Barros – Presidente da Assembleia Constituinte – os deputados, na agitação habitual que caracterizava aquele período, foram entrando na sala. O momento solene estava, pensavam alguns, idealizado para a unanimidade festiva. Os 16 deputados do Partido do Centro Democrático Social estragaram a festa.
Para trás ficavam preenchidos trabalhos parlamentares, dois anos depois das primeiras eleições livres no pós-25 de Abril Com o 28 de Setembro nas costas e o General Spínola em Espanha, uma parte dos presos políticos do 11 de Março em liberdade desde o 25 de Novembro, o fervor revolucionário era bastante mais brando, embora as suas marcas fossem ainda evidentes. A paz no Parlamento fora estabelecida, ultrapassadas as pressões e tentativas de dissolução da Constituinte, ainda com a memória presente no cerco dos trabalhadores da construção civil, durante as longas horas de 12 para 13 de Novembro de 1975, para gáudio do PCP, da UDP e do MDP/CDE.
Às 9h45, António Arnaut inicia a leitura do texto da Constituição, começando naturalmente pelo seu preâmbulo (no “caminho para uma sociedade socialista”) e afirmando em viva voz o seu artigo 1.º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes”. Três horas separam a leitura do primeiro ao último artigo do texto constitucional.
Reabertos os trabalhos às 15h15, cada partido com assento parlamentar teve direito a uma declaração política. A intervenção de Afonso Dias, deputado da UDP (antecâmara do Bloco de Esquerda), revelou bem que a polarização, hoje tão falada, não é um fenómeno virgem na histórica da nossa democracia, criticando “a grande ofensiva fascista (…) de direita do 25 de Novembro” e “os reaccionários e fascistas do PPD, CDS e PDC”. De seguida, veio a intervenção do deputado e líder do CDS, Diogo Freitas do Amaral, cujo teor de felicitação à democracia e à força do parlamentarismo mereceu aplausos, desde a sua bancada à do Partido Socialista, e não destoava de uma ilusória convergência em torno da votação que ocorreria dentro de minutos. Também tomaram da palavra, com juras de fidelidade à Constituição e ao MFA, pela seguinte ordem, os deputados Octávio Pato (PCP), Ferreira Júnior (PPD) e Mário Soares (PS), na intervenção mais aplaudida da sessão.
Chegado o momento da votação, o silêncio imperava. Ao contrário do período da manhã, agora sim, os 250 deputados estavam na sala, sem qualquer excepção. A noção maioritária, dos deputados e da própria imprensa, era que a nova Constituição iria ser aprovada por unanimidade. O clima de júbilo indiciava isso mesmo – em geral, nos dias anteriores, os votos de louvor resultaram em sucessivas aprovações com aplausos constantes e, especificamente, o relatório da Comissão de Redacção do texto constitucional fora aprovado por aclamação no dia 1 de Abril. Parecia mentira.
O Presidente da Assembleia pediu, primeiro, que se levantassem os deputados que votavam contra a Constituição. Sentiu-se um calafrio na sala. Os 16 deputados do CDS, e só esses, ergueram-se para votar contra. Nas galerias e bancadas apupou-se o sentido de votação e gritou-se “ Reaccionários!”.
Posteriormente, levantaram-se os restantes 234 deputados, votando a favor da “Constituição semidemocrática e predominantemente marxista de 1976”, como descreveu Diogo Freitas do Amaral no segundo volume das suas memórias políticas.
Prosseguiu um conjunto de importantes declarações, onde Vítor Sá Machado fundamentou o voto que impediu a unanimidade, em representação daqueles que formaram a única Alternativa em 76 à ideia de avanço “em liberdade” para o socialismo. De entre muitos risos e momentos de desdém, Sá Machado criticou o paternalismo de uma Constituição que deixava os portugueses “juridicamente prisioneiro(s) de um dado momento da sua história”. Passados 45 anos, é admirável perceber que a sua intervenção não se sustentou no anti-socialismo primário; foi a declaração de uma visão distinta, positiva e personalista, por oposição à configuração socialista da lei fundamental, deixando uma pretensão totalmente actual de uma desejável flexibilidade para o texto constitucional, porque “o povo está acima, e sempre, da Constituição, não é a Constituição que está acima do povo.”
Apesar dos aplausos vibrantes e prolongados que se seguiram à aprovação da Constituição, muitos deputados invejaram, em silêncio, a verticalidade daqueles 16. A eles juntaram-se, passadas três semanas, mais 876 mil portugueses, depositando o seu voto no CDS nas eleições realizadas a 25 de Abril desse ano – o dobro dos votos que tivera nas eleições de 74 e o melhor resultado eleitoral de sempre do partido, ao longo de quase meia década de existência.
Mais do que a superação de um partido tantas vezes boicotado e cercado nos seus primeiros anos de vida, o voto contra do CDS foi o garante da liberdade, do pluralismo e de uma via democrática na oposição.
É certo que esta posição não obstaculizou a aprovação final da Constituição de 76, viciada num compromisso que misturava, de forma inconsistente, o modelo pluralista ocidental com o modelo totalitário comunista e a legitimidade democrática com a via revolucionária. Sendo isto verdade, é igualmente indesmentível que a opção daqueles 16 corajosos deputados foi a semente para a Revisão Constitucional de 1982 (projecto assumido pelo CDS), cujo alcance extinguiu os seus principais traços revolucionários e o trunfo para a redefinição do sistema económico, assente numa economia planificada e marxista, só revisto em 1989.
Volvidos 45 anos, o voto contra do CDS, além de exercício de memória histórica, deve ser bússola e inspiração para a redefinição do regime. Após várias revisões, a letra e o espírito da Constituição da República Portuguesa são diferentes, mas, nem por isso, se deve descartar o exercício crítico perante as assunções paternalistas e coercivas que permanecem no texto constitucional.
Portugal não precisa de uma democracia temerária quanto ao seu futuro, nem uma Constituição que fechada ao pluralismo e a opções políticas que, sustentadas na legitimidade democrática e enquadradas num Estado de Direito, divirjam das virtudes cristalizadas de Abril. A recuperação de Portugal no combate à pandemia precisa de se inspirar na coragem daquela minoria parlamentar, sem medo ou desconfiança, abrindo a acção política sem pré-condicionamentos, valorizando – isso sim – a discussão franca e genuinamente interessada nas soluções e no bem-comum, sem reservas.
Precisamos de uma nova página, onde inovadores modelos de bem-estar e relacionamento dos portugueses com o Estado não fiquem inviabilizados por ilusões ultrapassadas. Precisamos de reequacionar a nossa organização política, orientada pela nossa singularidade, para que o País não continue indefinidamente a adiar as necessárias reformas na Administração Pública, na Justiça e na Segurança Social. Precisamos de um novo recomeço, que reconstrua Portugal, transformando o período de crise numa janela de esperança. E a Constituição? Como plasmado, em Abril de 76, no voto contra do CDS, a Constituição não poderá continuar alheia, nem acima do povo real.
https://expresso.pt/opiniao/2021-04-02-Abril-de-76--O-voto-contra-do-CDS-61c1b0bb?fbclid=IwAR2p8z8Jk8wojoE3N4mEabgXNOhOD-R-7HDYju4eIPcEzV4spe3Nb1PmKkQ
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