sexta-feira, 16 de abril de 2021

António Guerreiro - Teoria da vergonha

* António Guerreiro

16 de Abril de 2021, 10:35

Há um aspecto que merece ser pensado no comportamento dos governantes e pessoas poderosas julgados e condenados por crimes cometidos no âmbito da sua actividade pública: mesmo depois de provada a sua culpa, não aceitam a vergonha e parecem eximir-se ao aspecto social, à partilha comunitária de valores, que é a premissa dessa tonalidade emotiva que se chama vergonha.

Digo “vergonha” e não “culpa”, pensando na crítica que o jurista alemão Carl Schmitt fez à redução da culpa, enquanto conceito fundamental do direito penal, a uma categoria psicológica. Na definição puramente jurídica de Schmitt, não existe culpa se ela não for punida. No final de O Processo, de Kafka, podemos perceber que Josef K. se esforçou por conseguir salvar não a sua inocência, mas a sua vergonha. No livro do Génesis, a vergonha é a punição divina que Adão sofre por ter transgredido a proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento. Perante o olhar de Deus, Adão toma consciência da sua presença como corpo nu. Sentir vergonha é sentir-se pequeno ou mesmo ridículo, exposto nos seus erros e fraquezas à vista de todos e, sobretudo, à vista de si próprio. Uma reminiscência da cena bíblica, primordial, que liga a vergonha à nudez é um sonho recorrente que quase todos conhecem: estamos num sítio público e de repente damo-nos conta de que estamos nus e somos vistos. Sentimos então uma vergonha exagerada, insuportável, que muitas vezes nos faz acordar. A vergonha não deriva, como defendem os moralistas clássicos, de uma falha em relação à qual tomamos a devida distância. Não, a vergonha (e poderíamos citar aqui o filósofo Lévinas, que a este sentimento dedicou algumas páginas em De l’évasion) advém da incapacidade de fugirmos de nós próprios, da impossibilidade radical de nos escondermos (dos outros e de nós), expondo assim a nossa intimidade última, o nosso ser total, na sua expressão mais brutal.

Porque é que estas pessoas a que me referi no início parecem não sentir vergonha? Ou porque entraram no delírio que cria um ecrã, ou porque as circunstâncias actuais dos processos e julgamentos públicos em vez de entregar o autor dos crimes a um íntimo inassumível (sejamos directos: um primeiro-ministro que se deixou corromper é algo intimamente inassumível) entrega-os ao espectáculo público, mediático, do processo. E, aqui, o aspecto social enquanto premissa da vergonha fica sujeito a outro regime, onde vergonha, intimidade e imoralidade não vigoram. Como podemos alguma vez esperar que a vergonha, isto é, a pura forma do mais íntimo sentimento do “eu”, possa emergir nas representações judiciárias de comediantes, mártires, mediadores públicos e clandestinos, espectadores em fúria? Quando o próprio processo se transformou numa sentença, a culpa dilui-se e torna-se uma fantasmagoria.Poderíamos pensar que a mediatização dos processos em que estão envolvidos os chamados “poderosos” (isto é, aqueles que têm os meios para usarem as manhas e subtilezas da formalidade judicial) submeteria estes a um opróbrio público mais pesado, a uma penalização social mais forte. Mas, como é fácil verificar, não é isso que acontece. A lógica mediática é a da representação e é criadora de álibis. Perante ela, face ao seu poder e às suas encenações grandiosas e romanescas, todos têm oportunidade de se representarem como inocentes ou de serem suficientemente espertos para aproveitar as prerrogativas que por esse meio lhes são oferecidas, usando como remédio o veneno que lhes foi ministrado.

Deste estado de coisas, da anulação da vergonha pela representação teatral, no palco mediático, da inocência subjectiva do herói, temos um exemplo com desfecho triunfante nos últimos dias. O ponto a que chegou todo o processo pode ser sintetizado desta maneira: em vez da personagem cómica que se purifica da culpa mostrando até ao fim a sua vergonha, temos um herói trágico que não confessa a sua culpa nem aceita a vergonha. Quando ficamos entregues a esta oposição entre a culpa cómica e a culpa trágica, algo de muito errado e pernicioso aconteceu. Sem redenção nem expiação.

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