Há um aspecto que merece ser pensado no comportamento dos governantes e pessoas poderosas julgados e condenados por crimes cometidos no âmbito da sua actividade pública: mesmo depois de provada a sua culpa, não aceitam a vergonha e parecem eximir-se ao aspecto social, à partilha comunitária de valores, que é a premissa dessa tonalidade emotiva que se chama vergonha.
Digo “vergonha” e não “culpa”, pensando na crítica que o jurista alemão Carl Schmitt fez à redução da culpa, enquanto conceito fundamental do direito penal, a uma categoria psicológica. Na definição puramente jurídica de Schmitt, não existe culpa se ela não for punida. No final de O Processo, de Kafka, podemos perceber que Josef K. se esforçou por conseguir salvar não a sua inocência, mas a sua vergonha. No livro do Génesis, a vergonha é a punição divina que Adão sofre por ter transgredido a proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento. Perante o olhar de Deus, Adão toma consciência da sua presença como corpo nu. Sentir vergonha é sentir-se pequeno ou mesmo ridículo, exposto nos seus erros e fraquezas à vista de todos e, sobretudo, à vista de si próprio. Uma reminiscência da cena bíblica, primordial, que liga a vergonha à nudez é um sonho recorrente que quase todos conhecem: estamos num sítio público e de repente damo-nos conta de que estamos nus e somos vistos. Sentimos então uma vergonha exagerada, insuportável, que muitas vezes nos faz acordar. A vergonha não deriva, como defendem os moralistas clássicos, de uma falha em relação à qual tomamos a devida distância. Não, a vergonha (e poderíamos citar aqui o filósofo Lévinas, que a este sentimento dedicou algumas páginas em De l’évasion) advém da incapacidade de fugirmos de nós próprios, da impossibilidade radical de nos escondermos (dos outros e de nós), expondo assim a nossa intimidade última, o nosso ser total, na sua expressão mais brutal.
Porque é que estas pessoas a que me referi no início parecem não sentir vergonha? Ou porque entraram no delírio que cria um ecrã, ou porque as circunstâncias actuais dos processos e julgamentos públicos em vez de entregar o autor dos crimes a um íntimo inassumível (sejamos directos: um primeiro-ministro que se deixou corromper é algo intimamente inassumível) entrega-os ao espectáculo público, mediático, do processo. E, aqui, o aspecto social enquanto premissa da vergonha fica sujeito a outro regime, onde vergonha, intimidade e imoralidade não vigoram. Como podemos alguma vez esperar que a vergonha, isto é, a pura forma do mais íntimo sentimento do “eu”, possa emergir nas representações judiciárias de comediantes, mártires, mediadores públicos e clandestinos, espectadores em fúria? Quando o próprio processo se transformou numa sentença, a culpa dilui-se e torna-se uma fantasmagoria.Poderíamos pensar que a mediatização dos processos em que estão envolvidos os chamados “poderosos” (isto é, aqueles que têm os meios para usarem as manhas e subtilezas da formalidade judicial) submeteria estes a um opróbrio público mais pesado, a uma penalização social mais forte. Mas, como é fácil verificar, não é isso que acontece. A lógica mediática é a da representação e é criadora de álibis. Perante ela, face ao seu poder e às suas encenações grandiosas e romanescas, todos têm oportunidade de se representarem como inocentes ou de serem suficientemente espertos para aproveitar as prerrogativas que por esse meio lhes são oferecidas, usando como remédio o veneno que lhes foi ministrado.
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