OPINIÃO
Pela minha parte, eu e muitos
investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar
tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por
todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, o Estado e a maioria da
sociedade nunca quis assumir.
27 de Abril de 2021, 0:15
Lamento mas, se chegou a haver
alguma unanimidade quanto ao
discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 25 de Abril, eu não me junto a ela.
Por mais corajosa que possa ter parecido a atitude do homem que nos falou como
filho de “governante na ditadura e no Império”, e que entende ser “prioritário
assumir tudo, todo o passado, sem auto-justificações ou auto-contemplações
globais indevidas”, deveria, ele que me desculpe, começar por si próprio.
É compreensível que o filho
de Baltazar
Rebelo de Sousa, cuja carreira política esteve associada até à medula à
gestão colonial nos anos da guerra, nos recorde que, como “constituinte,
[viveu] o arranque do novo tempo democrático (...) como milhões de portugueses
[situado] entre duas histórias da mesma história” – mas já não é aceitável ser
quem nos peça que, ao “revisitarmos a história”, não a julguemos com os valores
do presente. Porque é isso mesmo que ele faz, como fizeram os anteriores
presidentes da República todos os dias 10 de Junho, 1.º de Dezembro, 5 de
Outubro e, claro está, 25 de Abril.
Chama-se a isso o uso político do
passado, que Marcelo usa como usam representantes de Estados que queiram dar
lições aos cidadãos do presente a propósito dos atos dos cidadãos de ontem, e
que, em nome da honestidade, não deveria pretender que é coisa apenas daqueles
que discutem o passado nos termos que lhe não agradam.
Quando Marcelo nos pede para não
“[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...)
agora tidos por evidentes, intemporais e universais”, persiste num dos mais
velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um
tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros
teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram
alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo
tiveram quem as denunciasse.
Marcelo, que em 2017 foi a Gorée
(Senegal) elogiar a precocidade portuguesa na história
da abolição da escravatura, pretendendo que Pombal a teria abolido em 1761,
não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem
anos – eis o (ab)uso político do passado – como sabia
também que a condenação da escravatura, do papel pioneiro e persistente que
portugueses tiveram no tráfico, ou a denúncia do trabalho forçado que se
manteve até aos anos 1960 nas colónias portuguesas, foi contemporânea dos
próprios fenómenos e não é um “juízo do passado com os olhos de hoje”. Como o
anticolonialismo foi contemporâneo do colonialismo, e contemporânea da guerra
foi a recusa em fazê-la (sobre a qual Marcelo não pronunciou uma palavra) e foi
a contestação da resistência antifascista portuguesa à escolha de Salazar em
fazê-la. Nenhuma destas batalhas é recente, pelo que é inaceitável qualquer insinuação
de que estas podem ser “campanhas de certos instantes”.
Era bom que o Presidente
esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele
entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o
sejam alguma vez"
Com toda a razão, o Presidente
diz que “o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder”.
Deveria, contudo, lembrar-se como o seu partido e todo o universo conservador
da sociedade portuguesa, que, logo desde 1974, amaldiçoaram a Revolução e
descreveram a descolonização como uma traição,
não simplesmente procuraram “esconder”, mas pura e simplesmente negaram a
natureza intrínseca da dominação colonial e toda a violência que ela
significou. Se hoje, como Presidente da República, pretende que se faça uma
História “sem álibis nem omissões”, pode desde já ajudar à desclassificação de
muita documentação militar que continua inacessível.
Pela minha parte, eu e muitos
investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar
tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por
todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz
da moral e do Direito (não apenas os de hoje, mas também os do momento em que
foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir e não
quer que se investigue.
Era bom que o Presidente
esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele
entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o
sejam alguma vez”. Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do
discurso. É que só esclarecendo essas “omissões” seria verdade que, enquanto
sociedade, “nos responsabilizamos” pelos nossos “fracassos” históricos da mesma
forma como “assumimos as glórias que nos honram”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
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