COLONIALISMO
Relatórios da administração
colonial que denunciam "o bafio da escravatura" e uma diplomacia que
tenta negar as acusações internacionais e adiar ao máximo a mudança: Portugal e a Questão do Trabalho Forçado,
de José Pedro Monteiro, é um testemunho poderoso sobre o ocaso do Império
português.
Fernanda Cânciocoo
29 Dezembro 2018 — 15:00
"Tratados como animais
bravios", agrilhoados, chicoteados, espancados, "arrebanhados no
mato", com alta taxa de morte no transporte, mantidos décadas longe da
família, à qual eram por vezes devolvidos em "estado de morto de pé",
"grávidas e mulheres com filhos monstruosamente espancadas por abandonarem
o trabalho": as descrições e observações encontradas nos relatórios da
administração colonial portuguesa chocam pela crueza e naturalização daquilo a
que um inspetor chama, em 1949, "o cheiro a bafio da escravatura".
Apesar de os castigos físicos
serem proibidos por lei e de o próprio trabalho forçado ter sido, a partir da
publicação do Código de Trabalho Indígena, de 1928, interditado exceto
"para fins públicos" - e mesmo assim apenas quando estivesse em causa
o interesse das populações que eram para ele mobilizadas --, as autoridades
coloniais continuaram, pelo menos até aos anos 1960 (o Código de Trabalho
Indígena só é revogado em 1962, sendo substituído pelo Código de Trabalho
Rural, que deixa de ter referência racial e proíbe todas as formas de trabalho
forçado, incluindo para fins públicos), a servir de recrutadoras compulsivas
para privados - tratava-se, na linguagem de então, de "contratos com
facilidades" -- e a aceitar as punições corporais com naturalidade, como
vários relatórios reconhecem.
A candura destes relatórios e a
forma como alguns inspetores ou outros membros da administração colonial
exprimem a sua discordância e até revolta face à situação - um deles
chega a escrever, referindo, em 1949 em S. Tomé, a existência de
"grilhetas superiores a dois metros" e o facto e de o governador
certificar que "só ele podia ordenar punições": "E manda ainda o
Senhor Deus pretos a este mundo!" - é, para o leitor não
especialista, uma das grandes surpresas que resulta da leitura de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um
império sob escrutínio (1944-1962), do historiador José Pedro
Monteiro, publicado este mês, e que, nas palavras do próprio, "mobilizando
fontes inéditas, ilustra, pela voz de administradores imperiais e locais e de
testemunhas autóctones, algumas realidades laborais e sociais vigentes nas
colónias, permitindo, deste modo, cotejá-las tanto com as denúncias que se
produziram internacionalmente como com os esforços de refutação oficial, frequentemente
de natureza propagandística."
"É impressionante, no
mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos
por ofensas corporais" ", escrevia, por exemplo, em 1944, o
inspetor Nunes de Oliveira; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe,
em 1947, lia-se: "Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a
tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles, por essa razão; eles
constituem uma considerável multidão, de algumas dezenas de milhar, dispersos
pela densa floresta, e os agentes dos patrões que têm de os conduzir, só tal
conseguem impondo-lhes uma disciplina severa, disciplina que só se consegue por
meio de sanções expeditas e bem sentidas."
"É impressionante, no
mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos
por ofensas corporais" ", escrevia em 1944 um inspetor; noutro
relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: "Os serviçais
vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio
entre eles,"
É, recorda José Pedro Monteiro, o
mesmo ano do célebre relatório choque que o inspetor-geral da
Administração Colonial Henrique Galvão apresenta à Comissão das Colónias da
Assembleia Nacional (o nome então dado ao parlamento), no qual informa que
"o trabalho forçado ou "contratado" era a norma, as condições de
vida miseráveis, a corrupção entre as autoridades generalizada", chegando
mesmo a dizer que os escravos eram melhor tratados que os trabalhadores
forçados, já que aos primeiros, sendo sua propriedade, o dono se esforçava por
manter vivos e com saúde, enquanto que os segundos, se morriam de fome ou
exaustão, eram substituídos por mais trabalhadores "recrutados" pelo
Estado. Um excerto do relatório de Galvão: "A mortalidade infantil
atingia a percentagem de 60%. O índice de mortalidade era de 40%, mesmo entre
os trabalhadores na plenitude da vida. As figuras era mudas, estáticas. Não
gritavam, não falavam de dor. Era preciso ver com os próprios olhos, era preciso
encorajar até aqueles que queriam ver"
"Grilhetas ao
pescoço" e chicote
Nada que devesse surpreender quem
vinha lendo os documentos das inspeções "normais". Seis anos antes,
diz José Pedro Monteiro, "um relatório do Curador Geral dos Indígenas de
Angola relatava que os "indígenas" sentiam tal
"horror" pelo contrato que, no Lobito, se tinha dado um episódio em
que uns quantos se tinham lançado ao mar para lhe escapar. (...) O
mesmo curador relembrava uma nota confidencial, relativa à intendência do
Moxico, em que se informava que não havia capacidade para recrutar
trabalhadores para a Companhia de Diamantes de Angola porque todos os
"indígenas" que podiam ser recrutados tinham desaparecido. "A
excepcional mortalidade entre os indígenas em serviço naquela companhia e o
"Estado de Morto em pé" com que todos têm sido repatriados, alguns
indígenas que morrem pouco depois [de aqui] chegar, e, ainda, os que com o
corpo mutilado conservam a vida e vivem actualmente pedindo esmola, sem receber
qualquer indemnização da Companhia, constituem, como todos nós sabemos, a razão
da relutância que os indígenas mostram por aquele serviço"".
E em 1945, lê-se em Portugal e a Questão do Trabalho Forçado,
o Curador de S. Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13
anos, "muito além do estabelecido pela lei como limite máximo de
permanência em "contrato", a receber metade do salário (...). Invocava-se
ainda um relatório do Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S.
Tomé, em que se relatava a existência de trabalhadores presos com
"grilhetas" ao pescoço. (...) Turistas estrangeiros tinham
fotografado serviçais a ser chicoteados, do que decorria, segundo o
raciocínio do inspetor, que era preciso pensar estes incidentes à luz do que
vinha ocorrendo nos fora internacionais, onde os Estados Unidos vinham
censurando a solução colonial."
"Em 1945 o Curador de S.
Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13 anos, "muito
além do estabelecido pela lei como limite máximo de permanência em
"contrato", a receber metade do salário (...)". Num relatório do
Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S. Tomé, relatava-se a
existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço. (...)
Turistas estrangeiros tinham fotografado serviçais a ser chicoteados."
Já em 1951, o encarregado de
serviços da Inspeção Superior de Negócios Indígenas, após um introito no qual
"enaltecia a essência humanista e benévola da intervenção portuguesa em
territórios coloniais", prosseguia "desfiando um rol de iniquidades e
abusos. Referia-se à taxa de mortalidade no transporte de 650 indígenas
que era de 15,38 por mil quando comparados com os 4,25 por mil registados nas
minas da África do Sul, um trabalho, já de si, extremamente perigoso; aos
acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como
forma de desresponsabilização, o mesmo recurso estatístico usado também para os
classificar como "agonias e congestões"; aos inválidos que eram
obrigados a trabalhar em S. Tomé ("verdadeiros farrapos humanos") por
salários miseráveis; que não eram pagas às famílias as indemnizações por morte
de trabalhadores em S. Tomé; que milhares de "indígenas" ficaram mais
de uma década para além do termo oficial do seu contrato sem serem repatriados;
que os salários em Moçambique e especialmente em Angola chegavam a constituir
cerca de um sétimo dos valores na África do Sul e menos de metade dos salários
da Rodésia; que mulheres de trabalhadores eram sistematicamente violadas por
grupos de serviçais enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram
"monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas" por terem
abandonado o trabalho.""
Muito impressionante também é um
relato de 1949, referente ao "caso dos Tongas" (filhos de
trabalhadores deslocados de outras colónias para trabalho em São Tomé, que
nunca tinham vivido na colónia dos seus pais): "Muitos deles
alegavam que desejavam reencontrar suas famílias, mas o governador-geral de S.
Tomé simplesmente entendia que era um desejo descabido, visto não conhecerem as
famílias, não saberem onde estavam nem sequer se ainda existiam. Ressalve-se
que eram indivíduos com todas as obrigações fiscais e militares cumpridas. Mas
eram também "fortes e saudáveis, educados numa vida de trabalho" e,
como tal, o seu repatriamento devia-lhes ser negado, justificava o
governador."
Não é possível saber, escreve
José Pedro Monteiro, "o destino destas populações, mas a simples ideia de
que o governador entendia possível mantê-las em S. Tomé revela os
termos do debate em matéria de liberdade de trabalho. O relatório é
ainda ilustrativo no sentido em que o funcionário da ISNI, no ensejo de
contrariar a vontade do governador, elencava um conjunto de informação crítica.
Desde logo, referia que serviçais havia que tinham estado entre 10 a 30
anos nas ilhas e que, se o seu contrato tivesse sido cumprido, o problema dos
"Tongas" simplesmente não se punha. Recuperava um trecho do relatório
do curador que os descrevia como "acabrunhados e tristes" e sem
qualquer ideia do que era um contrato livre. Como finalizava o relator:
"As expressões "os meus tongas" ou "tongas das roças"
"embora se autorizem a mudar de situação", como se diz no ofício,
cheiram ainda a bafio de escravatura"."
As descrições são arrasadoras, e
muitas até agora inéditas. Constituindo uma versão editada e revista da tese de
doutoramento do autor, investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, o livro procura dar a compreender "como e
porquê as modalidades de trabalho coercivo se mantiveram política e socialmente
aceitáveis no seio da burocracia imperial portuguesa por um período
consideravelmente mais longo que noutros impérios europeus; porque estavam as
propostas que procuravam pôr-lhes termo tão recuadas face às normas
internacionais; e, finalmente, porque e como foi finalmente concretizada a
reforma que lhes pôs termo, ainda que de modo meramente formal."
O historiador, de 34 anos, que
investigou em vários arquivos -- no arquivo Histórico Diplomático, no Arquivo
Histórico Ultramarino, na Torre do Tombo ("Onde havia pouca coisa"),
e também nos da Organização Internacional do Trabalho em Genebra, da ONU, nos
National Archives nos EUA bem como nos arquivos britânicos, em Kew - conversou
com o DN sobre o seu trabalho.
Houve alguma coisa que o tenha
surpreendido ou chocado particularmente nas suas leituras?
Houve relatórios que li, que
fiquei... Uma pessoa pode-se chocar. Nos debates sobre a escravatura diz-se
muito que é preciso olhar com os olhos daquele tempo. Curiosamente esse é um
dos motivos pelos quais o facto de a abolição da escravatura ter
resultado na generalização do trabalho forçado faz com que com que nas
discussões públicas a questão do trabalho forçado quase não apareça. Porque se
torna um bocadinho mais complicado poder dizer "ah, temos de olhar com os
olhos daquele tempo." Não, aos olhos daquele tempo o trabalho forçado já
era condenado de forma unânime. Não é por acaso que nos debates sobre a
escravatura se alguém quer falar do trabalho forçado vem o "isso era outra
coisa". Reforçando uma distinção legal que não é confirmada pela
continuidade das práticas.
https://www.dn.pt/pais/e-manda-ainda-o-senhor-deus-pretos-a-este-mundo-10343094.html
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