sexta-feira, 2 de abril de 2021

José Gameiro - ESPECULAÇÃO SOBRE AS FILHAS...

DIÁRIO DE
UM PSIQUIATRA

POR JOSÉ GAMEIRO

A igualdade de géneros tem feito um caminho significativo, mas ainda muito longe do desejável

Há uma frase corrente no léxico da psicologia das famílias, provavelmente injusta, mas que tem força: tudo o que mete miúdas é uma grande confusão. Está ligada àquela ideia de que os rapazes são mais “pontapé na bola” e se preocupam menos com as sensibilidades das relações. As raparigas, desde muito pequenas, são mais recetivas às mensagens negativas dos seus pares, sofrendo com o que sentem serem pequenas críticas. Na adolescência, são mais discriminadas pelo seu aspeto físico, pela sua forma de vestir, pelos seus comportamentos face aos rapazes. Apesar de se ter feito um longo caminho para a igualdade, ainda no meio masculino uma rapariga mais desinibida em termos relacionais pode ser considerada pouco fiável. A divisão, na minha geração, entre as raparigas para casar e as outras não está completamente ultrapassada. Falo com jovens que se sentem intimidados se a rapariga é, logo no início da relação, muito ativa, como se a sua passividade fosse uma espécie de selo de garantia de bom comportamento futuro.

Desde há dezenas de anos que se publicam investigações que procuram correlacionar o risco de divórcio dos casais com o facto de terem uma filha primogénita. Alguns destes trabalhos punham como hipótese a insatisfação do casal por não ter um filho varão... Creio que na nossa cultura isto está ultrapassado, ainda que ter filhos de ambos os sexos, o chamado casalinho, continue a ser um desejo de muitos casais. Recentemente, uma equipa de Melbourne e Atlanta estudou, através dos registos nacionais, a relação entre os divórcios, ter uma filha mais velha na fratria e a sua idade no momento da separação. É na adolescência que este risco aumenta. Até aos 12 anos do primeiro filho, não encontraram diferenças nos casais com rapaz ou rapariga primogénito. A partir dos 13 anos, há clara separação entre a taxa de divórcios, com um pico nos 15 anos da rapariga. O risco de divórcio aumenta cerca de 15%. No entanto, se olharmos para os números dos 0 aos 18 anos, as taxas não são diferentes de uma forma significativa.

Se não podemos contestar os valores numéricos deste trabalho, acreditando que a sua metodologia é correta, mais difícil se torna encontrar uma explicação. A hipótese dos autores centra-se nas dificuldades em lidar com os comportamentos das adolescentes. Existiriam muito mais desacordos entre os pais sobre como lidar com a autoridade, os limites, as formas de vestir, do que em relação aos rapazes. Esta dificuldade seria maior da parte dos pais do que das mães. A ser assim, os preconceitos em relação às raparigas continuam a ser significativos, sendo muito mais fácil a autonomização dos rapazes na adolescência. Todos temos a noção de que os rapazes têm liberdade de movimentos mais cedo do que as raparigas. Estas ainda hoje, nalgumas famílias, são muito coartadas na sua liberdade de movimentos noturnos...

É uma evidência na clínica que as raparigas se intrometem muito mais na relação dos pais, tentando provocar alianças ora com um ora com o outro, numa tentativa de criarem conflitos, com o consequente ganho secundário. Evidentemente que os rapazes também o fazem, mas, sendo menos atingidos pelas limitações comportamentais, têm menos necessidade de o fazer. Este “meter-se” é ainda mais evidente nas chamadas novas famílias, em que os filhos vivem alternadamente com um dos progenitores e os seus novos cônjuges. As raparigas são muito mais persistentes do que os rapazes em quererem voltar a unir os pais e assumem de uma forma mais competente o seu papel “destruidor” da nova relação. Ser mais capaz de refletir sobre os sentimentos, de cuidar das relações, de estar atento aos sinais dos outros pode ser muito bom, mas pode transformá-las em “reguladoras” de relações, com poder excessivo. Uma especulação final: a igualdade de géneros tem feito um caminho significativo, mas ainda muito longe do desejável. O mesmo poder-se-á dizer do poder feminino nas famílias?

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2527/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/especulacao-sobre-as-filha

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