LEONOR
A Leonor continua descalça,
o que sempre lhe deu certa graça.
Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre ò pé.
Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor
Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia já podre no pão.
Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.
Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
- António Cabral, Antologia dos Poemas Durienses, Chaves, Edições Tartaruga, 1999.
O Sonho que nos legaram
Douro dos montes em calvário
e dos passos vertiginosos,
ouve-me:
assim não havemos de morrer.
Estenderemos o sonho que nos legaram
os que morreram antes de nós;
estenderemos esse manto azul
e, um dia, sabemos
que é nossa a terra da promissão.
Bela é a flor do pessegueiro:
ela germina dentro de nós.
e dos passos vertiginosos,
ouve-me:
assim não havemos de morrer.
Estenderemos o sonho que nos legaram
os que morreram antes de nós;
estenderemos esse manto azul
e, um dia, sabemos
que é nossa a terra da promissão.
Bela é a flor do pessegueiro:
ela germina dentro de nós.
Que aconteceu ao homem sem esperança?
Uma serpente lhe entrou nos olhos
e não deixou mais que um lugar vazio.
Nós seguiremos pelo deserto
das horas fundas e turvas,
até à colina que está no fim
do nosso desejo.
Um dia bate alguém à nossa porta
e diz:
« vê este regaço cheio de papoilas:
os campos estão limpos. Cantam
livremente a cigarra e a cotovia. »
Essa é a hora.
Então
desceremos a escada de todas as mágoas,
e o sonho que nos legaram
dará o seu fruto,
dará
mesmo que seja a última colheita.
Uma serpente lhe entrou nos olhos
e não deixou mais que um lugar vazio.
Nós seguiremos pelo deserto
das horas fundas e turvas,
até à colina que está no fim
do nosso desejo.
Um dia bate alguém à nossa porta
e diz:
« vê este regaço cheio de papoilas:
os campos estão limpos. Cantam
livremente a cigarra e a cotovia. »
Essa é a hora.
Então
desceremos a escada de todas as mágoas,
e o sonho que nos legaram
dará o seu fruto,
dará
mesmo que seja a última colheita.
in Poemas Durienses
A Solidão (O Isolamento da Condição Humana)
Quando voltares, põe na tua voz
aquela flor azul que te ofereci.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham, outra vez.
Ainda tens no gesto aquele susto
que se enrolava todo nos meus dedos
e punha à nossa volta
um colar de silêncios ardendo?
Tudo mudou, bem sei. Naquela tília
o Outono já começou;
e nas tuas palavras
algumas folhas devem ter caído.
Mas, se voltares, põe a flor azul,
põe o passado no gesto e na voz.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham. É tão fácil!
in Quando o Silêncio Reverdece
Acorda, amor. Não ouves o silêncio
ranger à volta da nossa casa?
Algo se passa. As aves na palmeira
do pátio acabam de estremecer.
Ouço-as pelas frestas da velha parede
e o medo volta de novo ao meu coração.
Bem sei que não devia ter medo, que o sono
é esse doce país cantado pelo poeta,
onde os rios não correm somente
para demarcar os ódios, e as nuvens
apenas ocultam a boa água fertilizante.
Condeno-me por isto. Por tremer
diante dum pensamento e acordar, a teu lado,
quando um leve sussurro atravessa a noite.
É como se a tua presença não bastasse,
fechando não sei que porta imaginável.
Desculpa, amor. Mas tremo. A teu lado.
Apesar do teu rosto amanecente.
Mesmo sabendo que em teu corpo
se abriu a corola de todas as delícias.
Pelas frestas da velha parede,
eis-me a interrogar a noite. Que acontece?
Que sombras se movem além do rio?
Talvez eu delire, ainda sob a impressão
do último bombardeamento. Lembras-te?
Num momento, destruíram os favos
da nossa alegria. E o mel de tantos anos
barbaramente se diluiu na enxurrada infernal.
Foi como se enorme sanguessuga de repente
se colasse a nós. Ainda tremo.
Tu escondeste a cabeça no meu peito
e eu, quando acordei sob os escombros,
tinha uma perna destroçada. Podia ter as duas.
Não é isso que me faz tremer. Mas recordo
a febre de teus lábios em minhas mãos,
o quadro dos teus cabelos outonais
e o corpo do nosso filho, parado, no teu regaço.
Perdoa, amor, esta lágrima. Não acordes.
Se eles voltarem, cobrir-te-ei com o meu corpo,
com este corpo inútil que me deixaram.
Não acordes, amor. Em que estrela
buscas agora o nosso filho? Que palmeira
o acolhe à sua benigna sombra?
Ele põe a mão na rosa do teu seio
e nos teus lábios ardem pétalas. Meu filho!
Lembras-te como eu gostava de o levantar
bem alto? Meus braços, agora débeis,
fremiam, reverdeciam como ramos,
e tu dizias, luminosa: o tronco e a flor.
Era como se o dia voltasse a nascer,
nascesse a cada instante,
cingindo-me aos teus olhos belamente doirados.
Era. Agora, não. Agora é noite. Prolongada.
Não durmo. Doem-me as pálpebras e a alma.
A paz escoa-se pelas frestas da parede.
Que sombras se movem aquém do rio,
fazendo ranger todo o silêncio?
Se vierem… que venham. Dorme, amor.
Amamenta em sossego o nosso filho.
Se vierem,
Cobrir-te-ei com o que resta do meu corpo.
ranger à volta da nossa casa?
Algo se passa. As aves na palmeira
do pátio acabam de estremecer.
Ouço-as pelas frestas da velha parede
e o medo volta de novo ao meu coração.
Bem sei que não devia ter medo, que o sono
é esse doce país cantado pelo poeta,
onde os rios não correm somente
para demarcar os ódios, e as nuvens
apenas ocultam a boa água fertilizante.
Condeno-me por isto. Por tremer
diante dum pensamento e acordar, a teu lado,
quando um leve sussurro atravessa a noite.
É como se a tua presença não bastasse,
fechando não sei que porta imaginável.
Desculpa, amor. Mas tremo. A teu lado.
Apesar do teu rosto amanecente.
Mesmo sabendo que em teu corpo
se abriu a corola de todas as delícias.
Pelas frestas da velha parede,
eis-me a interrogar a noite. Que acontece?
Que sombras se movem além do rio?
Talvez eu delire, ainda sob a impressão
do último bombardeamento. Lembras-te?
Num momento, destruíram os favos
da nossa alegria. E o mel de tantos anos
barbaramente se diluiu na enxurrada infernal.
Foi como se enorme sanguessuga de repente
se colasse a nós. Ainda tremo.
Tu escondeste a cabeça no meu peito
e eu, quando acordei sob os escombros,
tinha uma perna destroçada. Podia ter as duas.
Não é isso que me faz tremer. Mas recordo
a febre de teus lábios em minhas mãos,
o quadro dos teus cabelos outonais
e o corpo do nosso filho, parado, no teu regaço.
Perdoa, amor, esta lágrima. Não acordes.
Se eles voltarem, cobrir-te-ei com o meu corpo,
com este corpo inútil que me deixaram.
Não acordes, amor. Em que estrela
buscas agora o nosso filho? Que palmeira
o acolhe à sua benigna sombra?
Ele põe a mão na rosa do teu seio
e nos teus lábios ardem pétalas. Meu filho!
Lembras-te como eu gostava de o levantar
bem alto? Meus braços, agora débeis,
fremiam, reverdeciam como ramos,
e tu dizias, luminosa: o tronco e a flor.
Era como se o dia voltasse a nascer,
nascesse a cada instante,
cingindo-me aos teus olhos belamente doirados.
Era. Agora, não. Agora é noite. Prolongada.
Não durmo. Doem-me as pálpebras e a alma.
A paz escoa-se pelas frestas da parede.
Que sombras se movem aquém do rio,
fazendo ranger todo o silêncio?
Se vierem… que venham. Dorme, amor.
Amamenta em sossego o nosso filho.
Se vierem,
Cobrir-te-ei com o que resta do meu corpo.
in VIETNAME (antologia poética )