domingo, 29 de abril de 2012

António Cabral - Poesia







LEONOR

A Leonor continua descalça,
o que sempre lhe deu certa graça.

Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre ò pé.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor

Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia já podre no pão.

Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.

- António Cabral, Antologia dos Poemas Durienses, Chaves, Edições Tartaruga, 1999.


O Sonho que nos legaram
Douro dos montes em calvário
e dos passos vertiginosos,
ouve-me:
assim não havemos de morrer.
Estenderemos o sonho que nos legaram
os que morreram antes de nós;
estenderemos esse manto azul
e, um dia, sabemos
que é nossa a terra da promissão.
Bela é a flor do pessegueiro:
ela germina dentro de nós.
Que aconteceu ao homem sem esperança?
Uma serpente lhe entrou nos olhos
e não deixou mais que um lugar vazio.
Nós seguiremos pelo deserto
das horas fundas e turvas,
até à colina que está no fim
do nosso  desejo.
Um dia bate alguém à nossa porta
e diz:
« vê este regaço cheio de papoilas:
os campos estão limpos. Cantam
livremente a cigarra e a cotovia. »
Essa é a hora.
Então
desceremos a escada de todas as mágoas,
e o sonho que nos legaram
dará o seu fruto,
dará
mesmo que seja a última colheita.

in Poemas Durienses

A Solidão (O Isolamento da Condição Humana)



Quando voltares, põe na tua voz
aquela flor azul que te ofereci.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham, outra vez.

Ainda tens no gesto aquele susto
que se enrolava todo nos meus dedos
e punha à nossa volta
um colar de silêncios ardendo?

Tudo mudou, bem sei. Naquela tília
o Outono já começou;
e nas tuas palavras
algumas folhas devem ter caído.

Mas, se voltares, põe a flor azul,
põe o passado no gesto e na voz.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham. É tão fácil!




in Quando o Silêncio Reverdece

Acorda, amor. Não ouves o silêncio
ranger à volta da nossa casa?
Algo se passa. As aves na palmeira
do pátio acabam de estremecer.
Ouço-as pelas frestas da velha parede
e o medo volta de novo ao meu coração.
Bem sei que não devia ter medo, que o sono
é esse doce país cantado pelo poeta,
onde os rios não correm somente
para demarcar os ódios, e as nuvens
apenas ocultam a boa água fertilizante.
Condeno-me por isto. Por tremer
diante dum pensamento e acordar, a teu lado,
quando um leve sussurro atravessa a noite.
É como se a tua presença não bastasse,
fechando não sei que porta imaginável.
Desculpa, amor.  Mas tremo. A teu lado.
Apesar do teu rosto amanecente.
Mesmo sabendo que em teu corpo
se abriu a corola de todas as delícias.
Pelas frestas da velha parede,
eis-me a interrogar a noite. Que acontece?
Que sombras se movem além do rio?
Talvez eu delire, ainda sob a impressão
do último bombardeamento. Lembras-te?
Num momento, destruíram os favos
da nossa alegria. E o mel de tantos anos
barbaramente se diluiu na enxurrada infernal.
Foi como se enorme sanguessuga de repente
se colasse a nós. Ainda tremo.
Tu escondeste a cabeça no meu peito
e eu, quando acordei sob os escombros,
tinha uma perna destroçada. Podia ter as duas.
Não é isso que me faz tremer. Mas recordo
a febre de teus  lábios em minhas mãos,
o quadro dos teus cabelos outonais
e o corpo do nosso filho, parado, no teu regaço.
Perdoa, amor, esta lágrima. Não acordes.
Se eles voltarem, cobrir-te-ei com o meu corpo,
com este corpo inútil que me deixaram.
Não acordes, amor. Em que estrela
buscas agora o nosso filho? Que palmeira
o acolhe à sua benigna sombra?
Ele põe a mão na rosa do teu seio
e nos teus lábios ardem pétalas. Meu filho!
Lembras-te como eu gostava de o levantar
bem alto? Meus braços, agora débeis,
fremiam,  reverdeciam  como ramos,
e tu dizias, luminosa: o tronco e a flor.
Era como se o dia voltasse a nascer,
nascesse a cada instante,
cingindo-me aos teus olhos belamente doirados.
Era. Agora,  não. Agora é noite. Prolongada.
Não durmo. Doem-me as pálpebras e a alma.
A paz escoa-se pelas frestas da parede.
Que sombras se movem aquém do rio,
fazendo ranger todo o silêncio?
Se vierem… que venham. Dorme, amor.
Amamenta em sossego o nosso filho.
Se vierem,
Cobrir-te-ei com o que resta do meu corpo.

in VIETNAME (antologia poética )

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Luís Rosa - O claustro do silêncio

.

O Claustro do Silêncio

Sinopse: O Claustro do Silêncio, a estreia na ficção de Luis Rosa, foi uma obra galardoada por unanimidade com o Prémio Vergílio Ferreira e constituiu uma verdadeira revelação. Luis Rosa surge como um mestre na arte de recriar o tempo histórico no seu universo próprio, que apela a todos os nossos sentidos e a que as mentalidades da época conferem realidade. Do fragor das batalhas aos ecos dos claustros do icónico Mosteiro de Alcobaça, encontramo-nos no conturbado contexto do final das Invasões Francesas e da extinção do Império Cisterciense. Uma belíssima obra literária. 






ficha bibliográfica

autorLuís Rosa
títuloO Claustro do Silêncio
editorEditorial Presença
ano de edição2002
nº de páginas219
época da acçãoSéculo XIX
sinopse
Romance que retrata o período de extinção das ordens religiosas em 1834, tendo como contexto o fim das Guerras Liberais e o consequente abandono do mosteiro de Alcobaça pelos monges cistercenses.
primeiro parágrafo
Eu não tenho idade, amigo. Neste infortúnio de 1834, sinto que vou acabar os dias de uma idade que o mundo conta, mas que, na realidade, se repete em círculo. Talvez mudem os cenários da comédia que a vida representa. Mas as cenas não são novas e as pedras deste Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça já assistiram, com a mesma passividade, a outras iguais. As personagens também são as mesmas. Reencarnam. Transmitem-se. Apenas usam aparência diversa e instrumentos conformes com as épocas. No mais, são iguais em vícios, grandeza, abjecção ou sublimidade. Que de tudo há em todos. Cada um apanha o rosto por que opta, para a construção do papel dos seus dias. O rosto, esse livro aberto! Nascemos apenas com risos e choros, depois vamos vincando o rosto com as marcas da alma e dos actos. Isso. Como as marcas de canteiro espalhadas pelos blocos de pedra das colunas e paredes do meu Mosteiro. Onde ficaram os canteiros? As marcas, sim, estão lá. São a sua perenidade. Riscos fantasiosos, como códigos da alma criativa ou imaginosa. O rosto é isso. A porta dos códigos de tudo aquilo que foi o percurso da alma.
informações complementares
Esta obra venceu o Prémio Vergílio Ferreira 2001 da Câmara Municipal de Gouveia.
http://pedroalmeidavieira.com/?p/785/1089/3140/L/3140/1796/



“O Claustro do Silêncio”, do escritor Luís Rosa, é um dos bons livros que li nos últimos anos. Trata-se de um romance histórico sobre o Mosteiro de Alcobaça. Já o li duas vezes. Partilho uma breve citação das muitas que eu retive. Admirável a definição de fidelidade que o autor transmite:
“Um velho frade, tão velho que os anos já não davam para contar, veio sentar-se a meu lado… fora abade, historiador e professor. Agora era louco e sábio, duas coisas que, quando são reais, são a mesma coisa. Chamava-se frei Leão de Alvorninha. Era o frade mais velho do Mosteiro e atingira a idade de tudo dizer e fazer, até que a morte o aquietasse e calasse.
(…) Estaria (frei Leão de Alvorninha) sempre no sítio preciso a adivinhar-me os passos (…) É assim a fidelidade. Uma atitude para além dos actos. Sente-se no mundo que fica por detrás das palavras”. (Luís Rosa in O claustro do Silêncio)
JLP Regedor


O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça foi fundado por D.Afonso Henriques em 1178 nas margens do Rio Alcoba e Baça. «Diz-se que o sítio foi assinalado pela lança do Rei, atirada ao alto dos candeeiros e que veio a cair no poço do Suão, na nascente do rio Alcoa. Os Cistercienses mudaram a lança e fizeram o seu mosteiro neste lugar, na confluência dos rios, onde se abrem as terras gordas da planície, e aqui fizeram maravilhas hidraúlicas e a fartura das granjas.» É assim que Luís Rosa, escritor natural de Alcobaça, descreve a fundação da vila em “O Claustro do Silêncio”, um romance histórico situado na vila durante as invasões francesas.






AUTOR:

Luis Rosa

Nacionalidade: Portugal
Biografia: Luis Rosa é natural de Alcobaça, e licenciou-se em Filosofia, dispondo de várias formações multifacetadas, particularmente na área de gestão, exercendo elevadas funções numa grande empresa portuguesa. Desenvolveu também uma intensa actividade como docente. É membro da Academia Portuguesa de História. O seu primeiro romance, O Claustro do Silêncio, foi desde logo a sua consagração, ao ser distinguido com o Prémio Vergílio Ferreira. Seguiu-se-lhe O Terramoto de Lisboa e a Invenção do Mundo, que a crítica não deixou passar sem elogiosas referências e o público esgotou. O Amor Infinito de Pedro e Inês, romance de grande densidade sobre um tema esplendoroso da nossa história, tem sido objecto de sucessivas edições; emBocage — A Vida Apaixonada de Um Genial Libertino, projecta-se o poeta na totalidade das suas dimensões, estas duas obras receberam o mesmo entusiástico acolhimento por parte do público e da crítica, tal como aconteceria também com O Dia de Aljubarrota.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

a fala poética de Francisco Viana

Avante!


N.º 2004 
26.Abril.2012

**

  • Domingos Lobo 



Ao ler os poemas de Francisco Viana recordo-me de um verso de Raul de Carvalho, referindo-se a Álvaro de Campos – tudo aquilo era demasiado meu para ser dele
A duas vertentes da fala poética de Francisco Viana
Terra, o amor e o canto num tempoainda acorrentado

A poesia comprometida, herança nossa de um certo realismo francês – engajamento reeditado pelo Sartre, o qual foi, de certa forma, responsável (graças ao Maio/68) pelo enquadramento ideológico da geração neo-realista de 1960, a que foi à guerra e no-la contou, estupefacta, em prosa e verso –, ainda é possível hoje, em Portugal?


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 Recentemente, a morte roubou-nos Francisco Viana.


Avante! relembra, hoje, o camarada, o amigo, o poeta.
Francisco Viana aderiu ao PCP em meados da década de 40, passando desde logo a desenvolver intensa actividade partidária, designadamente em organizações unitárias antifascistas: primeiro no MUNAF, depois no MUD e, mais tarde, na CDE e no apoio às famílias dos presos políticos.

Ao longo de décadas, a sua casa foi ponto de apoio de funcionários clandestinos do Partido.

Em 1962, na sequência do histórico 1.º de Maio, foi preso pela PIDE.

Após o 25 de Abril, e até que a saúde lho permitiu, prosseguiu a sua actividade partidária, com a mesma entrega de sempre.

Publicou dois livros de poemas: «Naipe de Besoiros» (1965) e «Chão Nosso» (1966), que o afirmaram como um grande poeta.

Depois do 25 de Abril escreveu, para o Trovante, os excelentes poemas que Domingos Lobo trata no texto que se segue.

Foi, ainda, autor dos poemas para um espectáculo do «Fado de Abril», no qual se contava a história da luta do povo daquela «aldeia vermelha», desde o início do século até à construção da Reforma Agrária.

Esta democracia atraiçoa os ideais da Revolução, escreveu Engelmayer, numa análise à poesia de José Afonso, referindo-se à democracia burguesa saída, a partir de vários golpes contra-revolucionários e de uma fortíssima ingerência internacional, das primeiras eleições pós Abril de 1974. Hoje, com o neoliberalismo instalado, ufano e convencido, 38 anos após essa manhã de esperança e júbilo, a frase de Engelmayer ganha uma evidência que, então, em 1975, ainda não adivinhávamos, em toda a sua perversa e trágica dimensão.


Eduardo Pitta, em texto crítico publicado na revista Ler, corrobora esta afirmação, embora por ínvios caminhos, ao dizer-nos que as coordenadas da actual lírica portuguesa vagueiam longe das preocupações sociais, que há outras urgências ideológicas e estéticas (que acompanha a crescente e desumana globalização neoliberal) e que os cultores da poesia que reflecte o pulsar do seu tempo, de comunhão com a vida, a poesia que se inquieta e indigna, estarão, talvez irremediavelmente, condenados ao ostracismo. Aconteceu com Ary dos Santos porque, segundo Pitta, as irreverências, em país manso, pagam-se caras e só não acontece, por enquanto, com Manuel Alegre graças aos deuses do poder que lhe vão concedendo protecção e algum protagonismo mediático. Portanto, a geração que resistiu ao fascismo, que viveu clandestina no seu próprio país, que sofreu as torturas, a fome e as prisões do regime, que andou pelas guerras coloniais e pelos maios parisienses e nesse atoleiro ainda lhe sobejou esforço e arte para construir uma poética que expressava os medos e as inquietações do seu tempo, que contribuiu, com a palavra certeira e revolta, para o zarpar da pata fascista, permitindo, generosamente, que a libertinagem pós-moderna se instalasse dominadora, discricionária e exultante, que se cuide e male a trouxa. Os cânones da actual vaga, ungidos por este nosso desgraçado tempo e pelos pressurosos media de serviço, são arrogantes e totalitários e quem não alinhar está fora da borda sem remisso nem cântico final.

Longe parecem ir os tempos em que José Gomes Ferreira afirmava, exaltante e certeiro, que os poetas só têm uma missão: cantarem o Presente. Amarem o Presente. Insultarem o Presente. Viverem as paixões, as lutas, os amores, a porcaria, as molezas, as incoerências, o nada e o futuro do Presente.* *

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Um poeta maior



Vem isto a propósito da poesia de um poeta maior, poeta integrante de uma geração que conseguiu transpor os limites formais de um academismo redutor e transportar a poesia para o convívio largo das vastas plateias populares sem, contudo, ceder ao fácil, ao óbvio, mas antes construindo uma poesia metaforicamente exigente, remoçada nas suas cambiantes polifónicas, nos modos de expressar o encantamento, o sonho e o combate, trazendo, sem complexos, a poesia de extracção erudita para as ruas da cidade e dando-a para ser musicada e cantada para que, dessa forma e seguindo os modelos dos antigos jograis, o povo dela mais facilmente se pudesse apossar. Falo, naturalmente, de um poeta que há pouco, e a roçar os 90 anos de vida, nos deixou: Francisco Viana. Muitos o cantaram, muitos ainda hoje o cantam e cantarão no futuro – quantos, desses, no entanto, saberão o seu nome?


Francisco Viana viveu como escreveu: sem alardes, sem trombetas, sem exibição mediática – embora grande parte do seu trabalho se destinasse ao palco e às cantigas. Esse recolhimento, essa postura de um continuado e profícuo trabalho, não o impediu de criar uma poética que, embora enquadrando-se, ideologicamente, nos referentes de uma poesia de resistência e de combate, também se sentiu atraída pelo discurso lírico, um lirismo solar, liberto de artificialismos, seduzido pelo jogo revelador das palavras, em que a amada, longe do serôdio romantismo que por aí ainda vegeta, torna livre e vivo o que ama: De que noite demorada/ou de que breve manhã/vieste tu, feiticeira/de nuvens deslumbrada (...) De que fontes de que águas/de que chão de que horizontes/de que neves de que fráguas/de que sedes de que montes/de que norte de que lida/de que deserto de mortes/vieste tu feiticeira/inundar-me de vida. Trata-se de um belíssimo poema no qual se expõe vagos traços de angústia, um tempo, uma monódia exacta que marca esse território dos afectos, da interioridade e dos clamores, da entrega às seduções do verbo (de que fogo renascido/ou de que lume apagado), de um lirismo que se insinua ao rés do texto, no seu mais laudo sentido, que diz a paixão ligando-a à vida, ao seu mais alto estágio, ao mistério de ser: vieste tu, feiticeira/segredar-me ao ouvido. A palavra em Francisco Viana não é um mero artifício, antes se elabora a partir de uma verdade contida, sóbria mas sensitiva, de um lirismo que se oculta e ao mesmo tempo cresce no poema, o ganha por dentro, revelando um tempo dúctil e desdramatizado, uma poesia que transporta um rumor incomum, que se insinua devagar até à sedução, ao apego das palavras certeiras: De que sonho feito mar/ou de que mal não sonhado/vieste tu, feiticeira/aninhar-te ao meu lado.


A poesia de Francisco Viana, mesmo a que teve como objecto primeiro as cantigas, sinaliza alguns dos códigos geracionais da nossa arte poética, num concerto que passa por alguma vertente surrializante, que José Afonso também experimentou, vem do nosso neo-realismo e estua em delta largo nos poetas revelados nos anos 70/80 do século XX: José Jorge Letria, Hugo Santos, António Cabral, Fernando Grade, José Antunes Ribeiro. O certo é que a poesia de Francisco Viana, embora andando em voo rasante e salutar por diversas correntes literárias, sendo igualmente uma poesia de denúncia e em sintonia com o seu/nosso tempo, não expressa as frustrações de impotência da arte perante as injustiças do mundo, não se demite, não alinha o verbo pelas diversas capelinhas do pronto-a-usar de eco garantido nas gazetas da opinião em moda: é uma poética que se assume na análise, na forma (feita de várias e consabidas influências, porque o autor não está só nesse combate nem descobriu a pólvora), sagaz e inesperada quando investe sobre tudo quanto magoa o poeta e contribui para tornar abjecta a condição humana, sobretudo quando as palavras se erguem para dizer da terra o trabalho suado, o esforço e a conquista do pão de cada dia: Chãonosso,/labotado/pão-a-pão//Dia-em-dia/te daremos/a vontade/do nosso corpo ainda acorrentado. Alguns dirão deste poema, e de outros afins, que estão fora de tempo, que fere as harmonias, os consensos, a paz podre deste reino de lacraus, mas nós sabemos dos caminhos ainda a percorrer, sabemos, como o sabia Francisco Viana muito para além de 1976, que neste Chão Nosso, vivemos ainda acorrentados sabendo, contudo, que um dia nos libertaremos/das ofensas que não perdoamos. Que este espaço que nos é comum, chão nosso/desvendado,/sol-a-sol/pelo fogo do arado, um dia pertencerá ao povo humilhado, explorado e ofendido; que o tempo da barbárie cairá de podre, perecerá como pereceram os tiranos e perecerão os tiranetes actuais e de ti chão nosso/se levantará liberto/nas nossas mãos obreiras/nosso pão de cada dia. Para nos dizer isto, a extensa metáfora deste nosso tempo e do tempo que virá, não hesita o autor em utilizar palavras hoje tidas por incomuns face à deriva mercantilista e usurária, palavras que estão aí, vivas e urgentes a ferir, no clamor alto das ruas, o coração lorpa dos cínicos instalados:batalhar, semeado, razão, arado, cravos, terra, pão (1) palavras que se repetem até nos doerem, até impressivamente nos tocarem no mais fundo da nossa memória colectiva. As palavras, mesmo quando o neoliberalismo lhes tenta expurgar o sentido, ainda retêm no seu claro chão, peso, medida, espessura – o seu significado ainda faz eco por muito que as queiram, atadas ao verniz do esbulho, tornar inócuas.



Uma poética feliz



A poesia de Francisco Viana é igualmente feita de memórias: dos amigos, da família, das guerras, da cupidez – e de afectos, muitos, das solidariedades, das lutas, dos amores. E da festa popular, do baile e das modinhas, dos imaginários mais fundos e perenes da nossa tradição discursiva, das lendas e dos contos de fada que viajaram séculos de sombras até à fonte límpida deste canto: Sete ondas se noivaram/ao luar de sete praias/Sete punhais se afiaram/menina das sete saias//Sete estrelas se apagaram/ sete-que-pena choraias/Sete segredos contaram/Menina das sete saias. A fala de antanho e, no entanto, próxima, as modas populares, o baile e a festa que as palavras urdem em sua desmesura intemporal: Sete faunos contrataram/sete corvos e zagaias(...)Sete princesas toparam/Com mais sete lindas aias(...) Sete vezes se encantaram/no bosque das sete faias/Sete sonhos desfolharam.


Ao ler os poemas de Francisco Viana recordo-me de um verso de Raul de Carvalho, referindo-se a Álvaro de Campos – tudo aquilo era demasiado meu para ser dele. E isto porque a poesia de Francisco Viana nos está próxima, é de geração pelo que nela perpassa de generoso e solidário. Estivemos em semelhantes barricadas, bebemos do mesmo vinho, sofremos dores próximas, desapegos, frustrações, alegrias.


A poética de Francisco Viana, a que anda espalhada por dois livros e numerosas cantigas, é uma poética feliz, no sentido que aponta para a felicidade, para a utopia de manter, apesar dos pesares, vivos os signos da esperança. Uma poesia assim, a um tempo lírica e sagaz, sensível e arguta, demolidora mas também a fazer-se ao rés dos sentidos, das emoções possíveis, no cerne das palavras – uma poesia que anuncia valores que não estão de todo em moda, que não dá dividendos imediatos nem mobiliza os mentores da crítica instalada –, poesia contida e segura na mestria de manipular o verbo, pairando num jogo sedutor de revelações e ocultações, ou seja, uma poesia só possível de acontecer quando se ama o Presente e se sabe Cantá-lo. Deixando testemunhos do nosso tempo, para os dias que virão: Chão nosso/da nossa batalha/Glória, glória/a quem o trabalha.


(1) Aquilo a que muito intelectualzito da nossa praça chama, por vezes, «demagogia» e «panfletarismo» – em convergência, aliás, com amplos sectores reaccionários – não é senão o reflexo artístico (um dos possíveis reflexos artísticos e nunca o único) – dos interesses da classe operária e dos seus aliados, formulados numa linguagem e num contexto que, sem dúvida, lhe permite reforçar a sua dimensão de instrumento ideológico. José Barata Moura


In A Canção Política em Portugal, de José Jorge Letria – Ed. Ulmeiro

Bibliografia:

Álbuns de Trovante e Luís Represas
A Canção Política em Portugal, de José Jorge Letria – Ed. Ulmeiro
Zeca Afonso – As Voltas de Um Andarilho, de Viriato Teles – Ed. Ulmeiro
Comenda de Fogo, de Eduardo Pitta, Ed. Círculo de Leitores
Raízes Intemporais, de Ellys – Ed. Fonte da Palavra

Celebrações

Celebrou Dona Ema seu aniversário natalício.

Santo & Santos, banqueiros, o trigésimo quinto ano 
[do ofício.
Encerrou-se o emprego para celebrar a data do Poder.

Carlos e Branca celebraram seu nó doirado

ainda firme, já um tanto empoeirado.

Clandestinamente, estralejou o foguete

a celebrar o dia de que se querem esquecer:

(a História tem folhas asas

que às vezes não podem poisar.)


Num âmbito vigente de agasalho

celebrou-se o Contrato Colectivo do Trabalho:

quarenta e cinco páginas brancas,

oito capítulos novos,

noventa cláusulas gordas

– e uns salários negros, velhos, magros...

Francisco Viana