segunda-feira, 9 de abril de 2012

António Sousa Homem - Os livros que andam nas nuvens


Correio da Manhã
em certos aspectos


O meu editor, o Dr. Boavida, telefonou na semana passada. Reconheci-lhe a voz tranquila de um homem dedicado a folhear livros e a evitar as sobras dos meus.
Sempre considerei estas crónicas como um reduto da vaidade extrema a que pode chegar um velho minhoto quase contemporâneo do Titanic e que, em vez de se dedicar a cuidar, em exclusivo, dos hibiscos, das begónias e das japoneiras que ainda enfeitam o jardim da casa de Moledo, enche a velha Parker com a tinta que há anos vem da papelaria de Caminha – e tenta gastá-la. A caneta, uma velharia bondosa, herdei-a do velho Doutor Homem, meu pai. É a mesma com que assinou o seu assento de casamento com Dona Ester, minha mãe. Conseguiu sobreviver a perdas e danos ao longo de um século e está prometida à minha sobrinha Maria Luísa, que ultimamente pretende obrigar os seus dois filhos a escrever em cadernos de linha estreita para melhorar a ortografia. Os cadernos de linha estreita são também uma velharia; ela descobriu uma caixa numa velha mercearia de Amares e trouxe-a para relembrar à sua descendência que já houve um tempo em que se escrevia com ambas as mãos (uma para segurar na caneta, outra para alisar a folha de papel) e não apenas com a ponta dos dedos, num teclado.
O Dr. Boavida é desse tempo e, se bem que a sua letra não revele um artista da caligrafia, pelo menos entende-se que escreve como um português que sabe existirem sujeito, predicado e complemento. Desta vez, depois de eu o ter esclarecido sobre o ritmo cardíaco e as prescrições que a Dra. Teresa, a médica de Venade, impõe à minha dieta, o Dr. Boavida informou-me que um dos meus livros "vai sair em ebook". E aí estava ele, ao telefone, editor apreensivo, perguntando se eu estava de acordo.
A minha sobrinha Maria Luísa, no intervalo de uma tarde de sábado, tinha já esclarecido o assunto. Um ebook era, pois, um ‘livro electrónico’ que se lê em quase todo o lado, tanto no computador como no telemóvel. A novidade não me surpreendeu. Desde o tempo da obrigatoriedade do óleo de fígado de bacalhau até à democratização da marijuana houve um largo sismo nas nossas vidas.
"E isso não faz mal aos livros?", perguntei eu.
"Não me parece, alguns têm sobrevivido", riu o Dr. Boavida, com horror à minha ignorância.
Pois que seja um ebook. O assunto ultrapassa-me. O meu editor, generoso e moderno, ainda me informou que, daqui em diante, enfim, lá para Maio, o livro ia estar ‘disponível na nuvem’. Trocámos saudações e recusei saber mais sobre o assunto. Com esta idade, acredito que o saber ocupa lugar. No jardim, limitei-me a olhar para o céu, folheando-o.


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