terça-feira, 2 de março de 2021

Domingos Lobo - A literatura da Guerra Colonial



A literatura portuguesa sobre a guerra colonial desenvolve-se numa visão progressista

*  Domingos Lobo

No ano de brasa de 1961, em Fevereiro, há sessenta anos portanto, os movimentos de libertação angolanos iniciavam, com o ataque à cadeia de Luanda, a primeira das insurreições armadas que se estenderiam, nos anos seguintes, a outros territórios do império colonial: Moçambique e Guiné.

Mais de um milhão de jovens foram enviados, ao longo de 13 anos, para esses três cenários de guerra. A nossa literatura irá reflectir, anos mais tarde, como nenhuma outra literatura o fez, essa dolorosa experiência, a da Guerra Colonial, que deixou um rasto de milhares de mortos e estropiados e uma memória colectiva doendo, ainda em ferida.

Não tenho conhecimento de que a catarse individual que os mais importantes títulos da nossa literatura sobre o conflito colonial opera, tivesse transcrição semelhante noutras literaturas que inventariam a guerra, e os fenómenos sociais e psicológicos a ela ligados. Embora existam algumas correspondências na literatura alemã da 2.ª Guerra (Günter Grass mas, sobretudo, Heinrich Böll) e na do Vietname – ambas, no entanto, o fazem sobre a perspectiva dos vencidos, enquanto a nossa, a sua produção mais significativa, se desenvolve numa visão progressista da história, ou seja, numa oposição clara e frontal aos pressupostos do conflito; do opressor que, enquanto tal, se questiona, entendendo a posição justa dos povos que era forçado a oprimir é, nesse contexto, uma literatura que questiona dialecticamente o sentido da história. Não existe, no cânone restrito da literatura portuguesa da guerra, uma concepção imperial ferida, mas a rejeição liminar do absurdo, do inumano que ela foi, e sua veemente denúncia.

Humanismo universal

Há pois, entre a nossa literatura de guerra e as duas referidas, diferenças conceptuais e ideológicas significativas, as quais originaram dinâmicas e imaginários diversos. Existe nela, a par da contextualização autobiográfica do fenómeno, uma dimensão cívica, moral e reflexiva de assunção da verdade como método estruturante do narrado, o estigma da culpa geracional e colectiva, uma dextra capacidade de ficcionar os factos históricos, de envolver na narrativa (mesmo no hiperbólico emotivo, como faz João de Melo), elementos factuais, entrelaçando-os com a reflexão do tempo social e político.

A literatura da Guerra Colonial, ao mesmo tempo que exorciza os fantasmas pessoais, constrói uma escrita de coragem, no assumir dos factos e das feridas que lhe estão no cerne: o sujeito, enquanto agente de uma determinada realidade e da sua efabulação. Há uma componente humanista (no sentido heideggeriano) universal nestes textos que é, na sua proposição subjectiva, um traço determinante de intervenção sobre o real.

Se o acto de escrever é um processo de responsabilização – cultural, cívica e ética –, os autores que vieram da guerra e a escreveram atingiram, nos títulos mais significativos desse processo, o estágio supremo da criação literária.

Raramente a literatura portuguesa deu a dimensão trágica, o absoluto do drama, do épico, como nos textos em que a Guerra Colonial surge como suporte ficcional. É a tragédia do homem só com sua consciência, com a conflitualidade íntima, entre o dever, a justiça e a dignidade – o homem e o seu estupor existencial, as suas perplexidades, em estado imanente, e esses estágios do Ser raramente a literatura portuguesa conseguiu traduzir de modo tão veemente.

Bastam-nos umas dezenas de obras, entre mais de 200 até hoje publicadas – algumas, estreias notáveis dos seus autores –, para provar que foi decisiva essa contribuição para a projecção abrangente, com olhar plural e incisivo, das omissões sobre um dos períodos mais dramáticos da História portuguesa dos anos 1961/1974:

O Capitão Nemo e Eu, de Álvaro Guerra; Lugar de Massacre, de José Martins Garcia; História do Soldado que não Foi Condecorado, de Modesto Navarro; Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes; Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz; Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo; Jornada de África, de Manuel Alegre; Salário de Guerra, de Vergílio Alberto Vieira; Memória de Cão, de Álamo Oliveira; A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge; Diário Pueril da Guerra, de Sérgio de Sousa; Os Navios Negreiros Não Sobem o Cuando, de Domingos Lobo; Adeus Até ao Meu Regresso, de Mário Beja Santos, e No Percurso de Guerras Coloniais, de Mário Moutinho de Pádua.

Livros que andam por aí, que nos contam os duros dias dessas guerras.

https://www.avante.pt/pt/2465/argumentos/163210/A-literatura-da-Guerra-Colonial.htm

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