OPINIÃO
Desligar a globalização não é possível, profetizar o seu fim é fútil. O que nos compete, e fazemos menos do que deveríamos, é debater como a globalização se vai fazer. Como. E não “se”.
* Rui Tavares
29 de Março de 2021, 0:00
Diz-se que os faraós tinham um canal que ligava o Mar Vermelho ao Nilo. Mas o Canal do Suez moderno é definitivamente uma criatura da finança e da indústria do século XIX, e o seu criador é Ferdinand de Lesseps. Diplomata, engenheiro e habilíssimo captador de capital, Ferdinand de Lesseps começou a sonhar construir um canal que ligasse o Mar Vermelho ao Mediterrâneo depois de a sua carreira diplomática o ter levado ao Egito. Mas foi com o apoio do II Império Francês e do seu imperador Napoleão III que a Companhia Universal do Canal do Suez fundada por Lesseps reuniu os mirabolantes fundos necessários para fazer a obra, que o próprio Lesseps dirigiu após a morte do primeiro engenheiro, e que foi completada em dez anos, de 1859 a 1869.
O sucesso quase fácil desta empresa é o ponto de partida para a nossa primeira história — que, com um pouco de batota, até é mais sobre o Canal do Panamá. Na década de 1890, o II Império tinha caído e a III República francesa vivia sob um clima político que faz lembrar os nossos tempos: sucessivos escândalos financeiros e “guerras culturais”, de que o Caso Dreyfus se tornou o maior exemplo, emergência de políticos populistas e autoritários (o caso do General Boulanger, de que falei no meu podcast para o PÚBLICO), e o aumento agressivo do preconceito racial e religioso, sobretudo anti-semita. Ora, a III República estava completamente atolada num projeto que deveria ter sido o “seu” Suez — a construção do Canal do Panamá — mas em que tudo corria mal. O Canal do Panamá atravessava um território mais acidentado, precisava de levar águas a cotas diferentes, e nos seus estaleiros morria-se muitíssimo de doenças tropicais. Depois de umas tantas falsas partidas, Ferdinand de Lesseps e Gustave Eiffel apareceram como as estrelas salvadoras do projeto, o primeiro aureolado do sucesso do Suez, e o segundo celebérrimo pela construção da Torre que leva o seu nome. Mas o projeto era mais difícil do que ambos antecipavam e Ferdinand de Lesseps caiu em desgraça quando se descobriu que tinha feito despesas descontroladas e desfalcado muito desse dinheiro em benefício próprio, acabando por morrer com o nome sujo. Quanto a Eiffel, foi atacado como judeu, apesar de não o ser, apenas porque o seu nome soava estrangeiro. O sucesso do Canal do Suez e fracasso do Canal do Panamá francês (só os americanos o conseguiram acabar, já no século XX) ajudaram a criar o caldo de orgulho ferido que esteve no nascimento das ideologias proto-fascistas e anti-semitas que nos trouxeram ao século XX que tivemos.
Façamos agora um salto para depois da II Guerra Mundial. Em 1956, o líder egípcio Gamal Abdel Nasser decidiu nacionalizar o Canal do Suez, acabando com o que era na prática um mandato colonial, então exercido pelos britânicos, naquela parte do seu país. Uma aventura militar anglo-franco-israelita acabou em desdita quando soviéticos e americanos decidiram não intervir na disputa e os europeus perceberam finalmente que já não eram os donos do globo que antes tinham sido e, em particular, deixariam de poder controlar o acesso fácil ao petróleo de que as suas economias dependiam.
Esse é o ponto de partida para a nossa segunda história. Enquanto a França e o Reino Unido sofriam uma humilhação, uma daquelas figuras que tem a característica de se fazer aparecer sempre no sítio certo ao momento certo com a ideia via aparecer uma oportunidade. Falo de Jean Monnet, negociante de conhaque, diplomata informal e um dos pais do projeto europeu. Então à frente da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, Jean Monnet decidiu juntar um grupo de cientistas e fazê-los visitar centrais nucleares, convencendo depois os países fundadores da Comunidade Económica Europeia a criarem uma alternativa ao petróleo através da EURATOM, agência atómica europeia, que, apesar de pouco conhecida, ainda existe e cujo tratado fundador foi assinado no mesmo dia do Tratado de Roma, em 25 de março de 1957. Mais do que o carvão ou o aço, ou mesmo o urânio, o que importava a Monnet era provar aos europeus que o facto de já não mandarem no mundo os deveria levar a unirem-se, e por isso escreveu no seu diário que, com a nacionalização do Suez, “Nasser merecia uma estátua de grande federalista europeu”.
E isso leva-nos à terceira história. Por estes dias lê-se por aí que o bloqueio do Canal do Suez demonstra a fragilidade da globalização. Nada mais errado. Só que nos anos 1960 o Suez esteve bloqueado oito anos — e o resultado foi a invenção do super-navio de contentores que é um dos principais vetores da globalização material que vivemos, e um dos quais bloqueia agora o Suez, mas não a globalização.
A moral das três histórias é que a globalização é um fenómeno inerente à evolução da espécie e, portanto, não é opcional. Desligar a globalização não é possível, profetizar o seu fim é fútil. O que nos compete, e fazemos menos do que deveríamos, é debater como a globalização se vai fazer. Como. E não “se”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2021/03/29/opiniao/opiniao/duas-tres-historias-suez-1956297
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