OPINIÃO
* Francisco Louçã
A credibilidade mora no sentido, não tanto no simples gesto. Reduzido a uma estratégia de entretenimento, o gesto esvai-se na banalidade. É o caso da polémica sobre se “devia ter havido sangue, devia ter havido mortos” na revolução do 25 de Abril. Vagamente inconsequente, não é?
Aexpressão épater le bourgeois, ou surpreender o burguês, terá sido utilizada por Charles Baudelaire, mas diversas fontes relacionam-na, de modo mais amplo, com uma atitude geracional, a de poetas malditos do final do século XIX, apelidados com ligeireza de decadentistas, como Arthur Rimbaud, ou mesmo Oscar Wilde. Precursores do dada ou do surrealismo, dizem-nos.
Se bem que a origem exata da frase seja obscura e, portanto, incerta, pode ter sido usada por Baudelaire para descrever a estratégia comercial dos artistas plásticos e das suas galerias, que teriam que exibir objetos surpreendentes para chamar a atenção dos eventuais compradores. Não basta mostrar um urinol, teria ele dito, é preciso ser ainda mais provocador.
Para combater o tédio, privilégio do dinheiro, a arte deveria chocar os aperaltados clientes das galerias. Devia fazer-se ouvir, mesmo que fosse, e até seria melhor se fosse pela rejeição pela sociedade bem pensante (desde que um generoso investidor apreciasse ser a exceção).
A técnica de chamar a atenção pelo insólito não foi inventada por estes poetas nem pelos pintores que descrevem. É mesmo uma constante universal. Desde que existe linguagem e comunicação que as interjeições, os gritos, as frases retumbantes, os grandes efeitos são usados em abundância. Por isso mesmo, tais técnicas de épater le bourgeois podem ter muitas declinações.
Num discurso de um célebre parlamentar português e reputado orador de há um século, ao lado de uma frase de efeito esperado surge a anotação “aqui, mais forte”. Um político e militar que tomou o poder na China dizia, prosaicamente, que é preferível que o inimigo nos insulte do que nos ignore, tudo depende da atenção. Nestes casos, a atenção é suscitada pelo volume da fala ou pela ameaça; noutros, será simplesmente pelo inusitado.
O problema é que mesmo épater le bourgeois exige alguma dimensão. A credibilidade mora no sentido, não tanto no simples gesto. Reduzido a uma estratégia de entretenimento, o gesto esvai-se na banalidade. É o caso da polémica sobre se “devia ter havido sangue, devia ter havido mortos” na revolução do 25 de Abril. Vagamente inconsequente, não é? Pedir mortes que não houve, naturalmente desde que não seja a minha, cruzes canhoto, e imaginar um passado glorioso com esse sangue que faltou, é um heroísmo um tudo nada bacoco. Na verdade, trata-se unicamente da sequência da proposta sobre a “demolição” do Padrão dos Descobrimentos, que parece ter sido logo seguida de uma explicação pacificadora, tratar-se-ia de uma mera metáfora, seria então o apelo a uma destruição assim a modos que fictícia, tudo fica na mesma.
O curioso nestas frases é precisamente o efeito da sequência, dado que, se não têm valor de proposta nem sequer de política, são somente uma representação do grito, uma chamada de atenção. Elas dão um título de jornal e isso é tudo o que é preciso. O mesmo se pode dizer das descobertas espantosas do comentador que sentencia que os pobres têm uma estrutura cerebral deficiente e distinta do comum dos mortais, coitados. Ou da forma como Ventura faz comunicação, tudo são gestos tonitruantes. Ou, para não o esquecer, da proposta de ilegalização do Chega, ou ainda de tantas outras afirmações e polémicas cuja utilidade é esgotarem-se de imediato.
A estratégia da atenção faz parte de toda a política, ou até da vida, concedo. Comunicação é atenção, um discurso do Presidente ou do ministro, uma proposta parlamentar, um comentário televisivo, tudo busca atenção. No entanto, há uma diferença entre a fala e a simulação. A fala é argumentativa e, por isso, sujeita à crítica; a simulação é nada mais do que um pretexto, que usa a encenação contra o discurso. Uma tem consequência e vale por ela, a outra é inconsequente e afirma-se pela irrelevância.
Percebo que em partidos políticos, ou no espaço público, esse seja o recurso disponível para quem luta por um lugar: a afirmação de um particularismo, mesmo se for, sobretudo se for uma posição chocante, é porventura um caminho para preservar a posição na lista eleitoral seguinte, ou na notícia do dia. Há quem se torne incontornável por ser campeão da impertinência. De facto, nesse jardim das vaidades é melhor investimento ser flamingo do que ser pombo. Infelizmente, isso nem chega para épater le bourgeois, que prosseguirá seraficamente o seu empreendimento.
2 MARÇO 2021 11:37
https://expresso.pt/opiniao/2021-03-02-Epater-le-bourgeois-ou-o-grito-pelo-sangue
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