As passagens racistas em Os Maias justificam nota pedagógica — defende investigadora
A Associação de Professores de Português (APF) considera que
uma leitura da obra de de Eça de Queirós implica a análise dos preconceitos
raciais do discurso narrativo e das personagens.
7 de Março de 2021, 11:18
Fotografia de Eça de Queirós numa exposição organizada em 2018 na Fundacão Gulbenkian a propósito dos 130 anos da publicação do romance DANIEL ROCHA
Uma investigadora cabo-verdiana identificou em Os Maias, de Eça de Queirós, várias
passagens racistas que na sua opinião não retiram valor à obra literária, mas
justificam a inclusão de “um comentário pedagógico”, para que a questão racial
não seja ignorada.
“A inferioridade dos africanos e o desdenho pelo negro ou
qualquer aspecto relacionado à raça negra é presente na linguagem do narrador e
reforçada através de acções e pensamentos de personagens e da idealização da
branquitude em crianças, homens e principalmente mulheres”, disse Vanusa
Vera-Cruz Lima, em entrevista à agência Lusa.
Professora de Português na Universidade de Massachusetts
Dartmouth, nos Estados Unidos, onde está a tirar o doutoramento em Estudos e
Teoria Luso-Afro-Brasileiros, Vanussa Vera-Cruz Lima faz questão de sublinhar
que “as passagens raciais não retiram nem adicionam o valor que esta obra
representa na literatura portuguesa”, mas criam “oportunidades de ensino e
instrução culturalmente responsáveis”.
A investigadora, que leu Os Maias pela primeira vez
durante o ensino secundário, em Cabo Verde, quando Eça de Queirós lhe foi
apresentado como “um dos mais importantes escritores da literatura portuguesa”,
voltou à obra no âmbito do programa do seu doutoramento. “Penso que é
importante separarmos o romance, que é uma das maiores obras de arte da cultura
portuguesa, das passagens racistas nela encontradas”, disse, acrescentando que
o que está em causa na sua análise é a obra e não o autor, Eça de Queirós, pois
“para tal seria preciso um estudo muito mais aprofundado, investigação profunda
sobra a vida dele e seus escritos profissionais e pessoais”.
Segundo a investigação de Vanusa Vera-Cruz Lima — que para
esta análise recorreu à teoria crítica da raça, uma área de pensamento teórico
contemporâneo que “revela como o racismo molda a realidade quotidiana do mundo”
— a linguagem do narrador “reproduz a superioridade da raça branca sobre a raça
negra, evidenciada através do discurso, frases, escolha de palavras,
pensamentos das personagens de que a raça branca merecia ter o poder absoluto
sobre a raça negra”.
“Ao celebrar extravagantemente a branquitude, o romance
envia uma mensagem de que a negritude não é algo de que se orgulhar e,
portanto, como o preto e o branco estão sempre em oposição, a glorificação de
um, rebaixa o outro”, referiu.
Uma das passagens que a investigadora usou para exemplificar
a sua afirmação consta do capítulo XVI da obra, escrita em 1880: “Ela [Maria
Eduarda], por seu lado, loira, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor
de uma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e
morenas”.
Para a doutoranda, “todas as personagens do romance são um
produto do ambiente em que o branco é considerado superior em relação ao
negro”, embora estas possam “ser divididas em camadas com diferentes
intensidade, consciência e intenção”.
“João da Ega é o personagem em que o racismo mais se
evidencia. De acordo com Ega, da mesma forma que Portugal aspira ser
‘civilizado’, os negros tentam agir como brancos fantasiando e vestindo a
jaqueta do seu mestre”, ilustra.
Segundo a investigadora e docente, “há dois excertos em que
João da Ega evidencia essas ideologias de forma bem intencional, quando
descreve, em eventos sociais, a sua posição em relação à escravatura,
defendendo-a para garantir os confortos da vida, e numa reflexão com Carlos da
Maia, no final do romance, em que ele revela uma forte aversão ao facto de os
negros estarem a fazer um esforço enorme usando certos acessórios para serem
considerados imensamente ‘civilizados’ e ‘imensamente brancos'”.
Escreveu Eça (capítulo XII): “Ega declarou muito
decididamente que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele,
tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido
quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus
sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada,
desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas...”.
Vanusa Vera-Cruz Lima cita uma outra passagem do capítulo IV
em que a personagem João da Ega afirma: “Nós julgamo-nos civilizados, como os
negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem
com a tanga uma casaca velha do patrão”.
A doutoranda considera que a obra Os Maias é “uma ferramenta ideal para criar oportunidades de
ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos atender às
necessidades de todos os alunos”.
“É um material para explorarmos valores e comportamentos
relacionados com a raça que existiam na época, mas que continuam a
manifestar-se em vários aspectos da sociedade actual”, disse.
Para Vanusa Vera-Cruz Lima, o fim da leitura de Os Maias não é uma “solução” e nem
esse o propósito da análise que fez à obra, mas sim a consciencialização das
pessoas em relação aos “significados que até agora não têm sido observados, nem
discutidos nos materiais escolares que acompanham a leitura da obra”.
E deixa a proposta de “criar um comentário pedagógico sobre
esta faceta da obra, tal como se comentam outros significados”.
Seria, na sua opinião, uma abertura para “conversas
corajosas sobre raça dentro do romance”, o que “não levaria à desvalorização da
obra tão importante”.
“Mais do que explicar o contexto, é preciso discutir a obra,
usando as lentes actuais, porque apesar de o romance ter sido escrito nos anos
de 1800, faz parte da realidade de milhões de alunos espalhados pelo mundo
lusófono em 2021”, referiu.
A posição da APF
Associação de Professores de Português (APF) considera que
uma leitura de Os Maias implica
a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens,
assim como inserir esse discurso no contexto histórico.
Em declarações à agência Lusa, a propósito da análise de
Vanusa Vera-Cruz Lima, o vice-presidente da AFP, Luís Filipe
Redes, disse que não é precisa “uma análise muito profunda para compreender os
preconceitos raciais presentes em Os
Maias e em outros textos de Eça”.
“Apesar do seu realismo, o autor tem as limitações de um
homem do século XIX. Para não termos visões preconcebidas relativamente aos
outros, temos de interagir com eles, coisa que o Eça não terá tido oportunidade
de fazer, não
obstante a sua passagem por Cuba”, adiantou o professor de Português.
O docente sublinhou que “a perspectiva racista era dominante
nos estudos antropológicos desse tempo”. “Eça era contra o tráfico de escravos
e isso também se lê em Os Maias.
A alternativa ao tráfico de escravos era o desenvolvimento de África que
passava pela ocupação efectiva num movimento que se chamava “colonialismo”. É o
que vemos no trajecto da personagem Gonçalo, da Ilustre Casa de Ramires”, comentou.
Por isso, Luís Filipe Redes considera que a leitura desta
obra “implica a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das
personagens e inserir esse discurso no contexto histórico. O que não podemos
fazer é projectar juízos de valor formados nas vivências do nosso tempo sobre
as acções dos homens do passado”, sublinhou.
Vanusa Vera-Cruz Lima, investigadora cabo-verdiana na
Universidade de Massachusetts Dartmouth, nos Estados Unidos, onde está a tirar
o doutoramento em estudos luso-afro-brasileiros, disse à agência Lusa que esta
obra, publicada em 1888, “transmite uma imagem de África como sendo uma terra
de “selvagens” e “incivilizados”, que resulta na justificação da exploração
portuguesa neste continente”.
Na sua análise racial a uma das obras mais conhecidas de Eça
de Queirós, autor de leitura obrigatória na disciplina de Português no ensino
secundário, Vanusa Vera-Cruz Lima apresenta várias citações do romance que
“evidenciam o processo de colonização” como tendo sido “necessário para a
“salvação” das pessoas que viviam nas terras africanas”.
Para Ega, uma personagem com relevância neste romance, que
relata a história de uma família ao longo de três gerações, em finais do século
XIX, “a colonização tinha um outro “sabor”, porque transformaria os negros em
pessoas “civilizadas” e, com isso, não haveria nada de pitoresco que chamasse a
atenção aos turistas”, refere a autora da tese de doutoramento, para a qual fez
esta análise racial, citando uma passagem da obra.
É também desta personagem a passagem: “Porque não se deixaria
o preto sossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia à ordem
das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrário, davam ao Universo uma
deliciosa quantidade de pitoresco”.
A investigadora sublinha que “o romance, e não
necessariamente o autor, passa uma mensagem de que a colonização em África
trouxe “salvação"”.
E escolheu outra citação do capítulo V da obra: “Mas eu lhe
digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas
grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma
suficiente da moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim o
melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar...
Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque
mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem de um teatro normal, como
elemento civilizador!”.
Vanusa Vera-Cruz Lima afirma que o propósito da sua análise
é contribuir para “se repensar a forma como a obra é ensinada nas escolas,
contribuindo para uma reflexão e expansão racial”. Garante a investigadora que
não defende, com esta avaliação, ao fim da sua leitura no ensino português.
“Pelo contrário, este romance é uma ferramenta ideal para
criar oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que
possamos atender às necessidades de todos os alunos”, disse.
E concluiu: “É um material para explorarmos valores e
comportamentos relacionados com a raça que existiam na época, mas que continuam
a se manifestar em vários aspectos da sociedade actual. Não vejo o cancelamento
de sua leitura como uma solução.”
A agência Lusa contactou Carlos Reis e Isabel Pires de Lima,
especialistas em estudos queirosianos, que optaram por não comentar as
conclusões da investigação de Vanusa Vera-Cruz Lima.
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