OPINIÃO
* Maria João Marques -
Tenho para mim que a política autárquica é muito apetecível para mulheres. Porém o PSD entendeu dizer a metade do eleitorado (as mulheres, precisamente) que não as considera suficientemente boas para candidatas do partido.
Permitam-me regressar à minha muito favorita série televisiva Sim, Senhor Ministro. Num dos episódios, os vários secretários permanentes de cada ministério reúnem-se para debater a necessidade de mais mulheres nos lugares cimeiros da função pública. Todos concordavam com o princípio (na teoria, claro está) da necessidade discriminação positiva.
Sucede que nos Negócios Estrangeiros não podia ser, porque os muçulmanos e os líderes de países subdesenvolvidos (ao contrário do Ocidente, fica bom de ver) não lidavam bem com mulheres. No Ministério do Trabalho também não, que os líderes sindicais eram intratáveis. Na Segurança Interna, bem, não se colocaria uma mulher a tratar de prisões e polícias, certo? Na Defesa nem pensar – Forças Armadas masculinas. Sir Humphrey, o protagonista, às tantas também se manifesta contra as quotas, garantindo que se tem de escolher ‘o melhor homem para cada lugar, independentemente do sexo’. Apetece dizer: quite.
Sim, Senhor Ministro é dos anos 80. Podemos todos, portanto, alegrarmo-nos pelo slogan de Sir Humphrey Appleby parecer nortear a escolha dos candidatos a presidentes de câmara do PSD quarenta e um anos depois da série estrear na BBC. E já com uma lei da Paridade em vigor que garante representação feminina nas listas eleitorais, impedindo assim que mulheres qualificadas sejam liminarmente preteridas em função de homens com menos qualificações. (Não é má vontade minha. Há homens excelentes na política, claro. No entanto os estudos existentes mostram que a qualificação média dos políticos aumenta quando se obriga à escolha de mulheres através de sistemas de quotas.)
Na semana passada – amargamente perto do Dia Internacional da Mulher – o PSD apresentou 102 candidatos às presidências de câmara para as autárquicas deste ano. Cerca de um terço do total de candidatos. Nestes 102 candidatos, três (repito: três) são mulheres. E com todo o respeito por estes municípios, nem sequer são capitais de distrito ou grandes autarquias.
A minha primeira resposta a estes números – três mulheres em 102 candidatos – foi de incredulidade. Tive de ir consultar a lista completa para acreditar. Como é possível em 2021 – depois do Me Too, de todas as discussões de Trump menorizando mulheres, com uma nova direita que tem no centro nevrálgico o machismo politicamente institucionalizado, os temas da representatividade e da inclusão todos os dias nos media e nas redes sociais – um dos dois maiores partidos portugueses estar tão desligado da realidade, tão dentro da caixa do passado, tão prisioneiro da visão masculina do poder? Pior: tão desfasado dos valores dos eleitores?
Três pormenores tornam tudo mais intragável. Um. O PSD é um partido com uma enorme percentagem de mulheres militantes. Dizem-me que mais de 50%. Não há falta de mulheres podendo candidatar-se. Donde, é espantoso Rui Rio afirmar ‘Nós queremos ter mulheres nas listas, nós queremos dar destaque às mulheres e, no entanto, chegamos à realidade e batemos de frente com a realidade: é que há muito poucas mulheres que estão na política, para não falar nas que estejam disponíveis para a atividade autárquica’.
Curiosamente, conheço várias mulheres no PSD, bastante qualificadas, que se prontificaram já várias vezes a candidatarem-se em variadas eleições – e são preteridas. De facto, é fácil concluir que não existem mulheres na política: basta os homens com poder de decisão não olharem para elas, não as indicarem para estruturas e listas, fingirem que não existem. E, no fim de as relegarem para a invisibilidade, garantem que não há mulheres. Alguém está a ver alguma? Onde?
Esta é a mais velha estratégia para lidar com contributos públicos e profissionais de mulheres, em qualquer área. Ignoram-se, ou atribuem-se a homens, e no fim assevera-se a inexistência.
De há uns três ou quatro anos, em Londres, as estrelas das feiras de arte como a Frieze ou a Masterpiece são mulheres artistas. A curiosidade? Artistas bem entradas na idade, finalmente com o mercado e o público a aplaudir. Toda a gente descobre agora que são ótimas, mas só depois de décadas pretendendo que não existiam ou não possuíam grande talento comparando com os pares homens. E com os preços das obras (o que mais conta) incorporando o desconto relativo ao sexo das autoras.
É hábito transversal, das artes às ciências, passando pela política. A história famosa da pesquisa sobre o DNA de Rosalind Franklin – inteiramente atribuída, com Nobel e tudo, aos homens que usaram o seu trabalho – não é caso único de mulheres a quem foi roubado o crédito do seu trabalho. Afinal quem acredita que mulheres consigam descobrir coisas?
Não são as mulheres que não existem ou não fazem contributos de qualidade. São os homens com poder de decisão que não as querem incluir. E por isso dizem que não existem mulheres. Pronto, está decidido. Os donos da verdade falaram. O problema está no mundo atual, na documentação abundante da discriminação passada, na visibilidade que as mulheres já têm através de redes sociais e media. Torna-se (nesta área como noutras) impossível manter a ficção de mulheres não se interessarem por política e não quererem participar.
O segundo. Tenho para mim, por convicção pessoal, que a política autárquica é muito apetecível para mulheres. Porque implica pragmatismo, capacidade organizativa, pouco tempo perdido com guerrilhas ideológicas, vontade de resolver os problemas concretos das pessoas. Tudo áreas onde as mulheres têm milénios de experiência. É, então, ainda mais escandaloso que se pretenda não se encontrarem mais de três candidatas a câmaras municipais.
Três. A participação de mais mulheres na política diminui o nível de corrupção. Por fatores variados: desde maior aversão a comportamentos arriscados pelas mulheres até ao maior escrutínio a que são sempre sujeitas. Ora um líder político que até já falou em ‘banho de ética’ só poderia estar atento às tendências preventivas das práticas de corrupção, não?
Porém o PSD entendeu dizer a metade do eleitorado (as mulheres, precisamente) que não as considera suficientemente boas para candidatas do partido. (A retribuição do eleitorado feminino virá em forma de votos.) E às suas muitas militantes que só servem para claque dos grandes líderes masculinos sociais-democratas, nada de ideias de voos próprios.
As listas autárquicas do PS veremos como são. E os restantes duzentos candidatos do PSD. Mas, neste caso, aplica-se o dito: não há segunda oportunidade para uma boa primeira impressão.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
10 de Março de 2021, 0:10
Economista
https://www.publico.pt/2021/03/10/opiniao/opiniao/ajudem-psd-descobrir-mulheres-1953730
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