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Simone de Oliveira. "As mulheres apanhavam dos
maridos e ficavam em casa, achei que não ia ser assim"
A mulher que disse não ao tradicional papel que lhe queriam
atribuir. Hoje, aos 83 anos, orgulha-se de tudo o que conquistou ao longo da
vida e de como ultrapassou todos os contratempos. Diz que vem de lá atrás mas
muito à frente do seu tempo. As suas frases acabam muitas vezes com uma boa
gargalhada, sempre com a resposta na ponta da língua.
Céu
Neves
08 Março 2021 — 00:17
Tornou-se cantora quando o que se esperava de uma mulher era
que fosse professora. Fugiu de casa quando o marido lhe bateu, ao contrário de
muitas mulheres da sua geração que "comiam e calavam". Teve sempre
opinião, o que não era suposto. Os filhos tinham "mãe incógnita" porque
se os registassem com o seu nome, seriam automaticamente perfilhados pelo
ex-marido com quem tinha casado pela igreja. Não havia divórcio. Simone de
Oliveira conseguiu "a separação judicial de pessoas e bens". Eram os
anos 1960, que, para a artista, não têm qualquer comparação com a atualidade.
Mas sente que ainda falta dar passos para a igualdade de géneros, sobretudo na
política.
Lembra-se da primeira vez em que foi celebrado em
Portugal o Dia Internacional da Mulher?
Não me lembro, mas seguramente que foi depois do 25 de Abril. Tudo o que de bom
pode ter acontecido no país foi depois do 25 de Abril. Venho de lá atrás, da
metade do século passado, onde não havia estas comemorações.
Cresceu e tornou-se adulta num país muito diferente do
atual a nível dos direitos das mulheres.
Não há comparação possível. Ser mulher nessa altura era muito complicado. Tinha
que se estar em casa, ser muito boa filha, o que significava ser bem
comportada. Tirar um curso que não podia ser de medicina ou engenharia, uma
mulher devia ser professora, de preferência do liceu ou da instrução primária,
nem químicas nem engenharias, isso era quase um pecado.
Tudo o que a Simone não fez.
Fiz tudo ao contrário. Fui tudo o que as pessoas não queriam.
Refere-se aos seus pais?
Não, antes pelo contrário, não estou a falar dos meus pais, que a única coisa
que queriam era que eu fosse feliz. Fui cantar por causa de um problema muito
complicado na minha vida, um casamento que acabou da pior forma, fiquei muito
doente psicologicamente. Cantar foi uma forma de ultrapassar essa fase e os
meus pais foram verdadeiramente extraordinários. Tiveram que aturar esta filha,
completamente ao contrário do que havia nessa altura.
Aceitaram com naturalidade a separação?
Tive um pai e uma mãe extraordinários, naquela altura, nenhum pai e nenhuma mãe
reagiriam como eles quando lhes apareci em casa. Disse-lhes: "Podem
mandar-me para a rua, eu vou, mas não volto". O meu pai olhou para mim,
tinha uns olhos azuis maravilhosos, e perguntou se era isso que eu queria.
Aceitaram os dois.
Não havia divórcios?
Não, uma menina que casa pela igreja e, ao fim de três meses, foge, não era
nada normal para aquela altura. As mulheres apanhavam dos maridos e ficavam em
casa, eu achei que não ia ser assim. Saí de casa e não me arrependo de nada.
Lutei muito para ter a minha liberdade. Ser mulher é uma coisa boa, mas para
ser honesta gostava de ter sido homem.
Porquê?
Teria sido mais fácil manter as atitudes que tive se fosse homem, talvez não
tivesse sido tão penalizada por fazer coisas que considerava absolutamente
normais e naturais. Naquela altura, isso não era bem aceite. Um dia fui chamada
ao liceu da minha filha - os meus filhos sempre foram bons alunos -, perguntei
se havia algum problema com a Eduarda, a diretora diz-me que não há problema,
que ela é extraordinária, mas estava confusa. E disse: "O que me espanta é
como é que a filha de uma cantora, que se deita tarde, que fuma e usa decotes,
pode ser tão boa aluna?" Respondi-lhe que o melhor era perguntar-lhe.
"O melhor é falar com ela, pergunte-lhe porque é assim tão boa".
Sentia que os seus filhos eram discriminados?
Havia episódios, mas eles também não deixavam avançar qualquer tipo de
discriminação. Numa aula de religião e moral, o professor diz que os filhos de
pais divorciados eram todos infelizes. A minha filha levanta-se e diz:
"Sou filha de pais divorciados e não sou nada infeliz". A Eduarda não
deixa nada por dizer, ainda é pior do que eu.
Quando é que se conseguiu separar oficialmente uma vez
que era casada pela igreja?
Não havia o divórcio, consegui a separação judicial de pessoas e bens, que era
a única coisa que havia. Mas consegui isso porque levei uma grande tareia em
público, havia testemunhas - e não podiam ser da família. Eu estava no centro
de preparação de artistas de rádio - já depois de ter saído de casa - , o homem
de quem tinha fugido foi lá e deu-me uma tareia monumental. Saiu uma
noticiazinha no Século Ilustrado e tinha como testemunhas o Artur Garcia, o
António José, a Maria Marize, e outros, não havia como negar. Ficou escrito no
cartão de identidade e no passaporte S.J.P.B. (Separação Judicial de Pessoas e
Bens). Uma vez fui cantar a Barcelona e perguntaram-me o que queria dizer
S.J.P.B., se era casada, divorciada? Para eles, era impensável essa designação.
Fui passando e aguentando essas fases com muita raiva, muita raiva.
O que é que lhe custou mais em todo esse processo?
O facto de a Eduarda e o Pedro serem filhos de mãe incógnita. Não podiam ser
meus, caso contrário, eram filhos do senhor com quem eu tinha casado pela
igreja. Só muito tempo depois é que consegui que tivessem o meu nome. Foi uma
tragédia, ultrapassei tudo isto com muita raiva.
A quem não perdoou?
Continuo a não perdoar à igreja católica por não terem querido batizar os meus
filhos, porque eu era amancebada. É uma palavra que até hoje considero
horrível. E foi um padre da Amadora, que era considerado comunista, não sei
porquê, que os batizou. Fui a cinco igrejas em Lisboa, ninguém os quis batizar,
já a Eduarda tinha quatro anos e o Pedro dois quando se batizaram. A minha
relação com a igreja católica acabou aí, não estou a dizer que não tenho fé,
inventei um deus à minha maneira. Tenho uma entidade superior que me ajuda, que
não humilha as pessoas, sou muito mais para o lado espiritual. Também lhe posso
dizer que eu, que não rezava, agora de vez em quando dou comigo a rezar.
Aconteceu de há dois a três anos para cá, não sei se é um problema de idade...
Referiu ter sido muito penalizada, de que forma?
Não era livre para fazer o que queria como acontece atualmente. As mulheres
apanhavam e ficavam em casa, não iam a um café porque parecia mal. Eu ia onde
precisasse de ir, nunca me preocupei com o que os outros diziam. Não estou a
dizer que não errei, mas sou por natureza uma lutadora, não sei porquê. A minha
mãe era de uma grande serenidade, o meu pai, que não era português, era de uma
grande integridade, que é algo que sempre admirei. É o que admiro nos meus
filhos.
Há uma grande diferença da geração da Simone para as
atuais, sejam homens ou mulheres.
Muito diferente e para melhor, melhorou bastante. As mulheres hoje têm uma
liberdade e uma voz que não tinham no meu tempo, não há comparação, não é
possível, não existe essa possibilidade. Uma coisa é o antes, e outra, o
depois. Mesmo na própria cidade de Lisboa, tudo mudou. Quem viveu nas décadas
de 1950/60 e agora não pode fazer comparação, isso não existe.
"Não há comparação possível. Ser mulher nessa altura
era muito complicado. Tinha que se estar em casa, ser muito boa filha, o que
significava ser bem comportada. Tirar um curso que não podia ser de medicina ou
engenharia, uma mulher devia ser professora, de preferência do liceu ou da
instrução primária."
Foi mais difícil por ser mulher?
Acredito que sim, mas as primeiras a estarem contra mim eram as mulheres. Era
apelidada de Cleópatra, acharam sempre que eu tinha tido muitos namorados. É
mentira, inventaram sobre mim as coisas mais extraordinárias, inclusive que a
minha filha tinha morrido, como também ligaram para a minha mãe a dizer que eu
tinha morrido. Aconteceu de tudo.
Mas por ser a Simone ou por ser mulher?
Por ser mulher e, também, porque eu dizia as coisas. Não era normal que as
mulheres tivessem o desplante de dizer o que eu dizia, de falar, dar
entrevistas e, depois, sempre chamei as coisas pelos nomes. Com isto não quer
dizer que as outras pessoas não fizessem as coisas, fazia-se tudo só que era
atrás da cortina. O que eu fiz foi à frente da cortina. A primeira vez que usei
calças de jeans, no Porto, perguntaram onde estava o cavalo. O facto de fumar
também era motivo de crítica. Isso diz tudo, hoje as mulheres podem andar como
quiserem e toda a gente aceita. E quem não aceita, paciência.
O que é que falta às mulheres para alcançarem a
igualdade?
Muita coisa. A mulher conseguiu um lugar na sociedade, mas este ainda não é
generalizado, sobretudo na política, onde deveria haver mais mulheres. A mulher
ainda não conseguiu ter o equilíbrio absoluto com os homens em várias áreas,
ainda não conseguiu ter total igualdade. Também a nível laboral, as coisas não
estão ainda paralelas.
Qual é a principal diferença que existe em relação à
geração dos seus filhos e netos?
Eles vivem num pais melhor no que diz respeito à igualdade entre homens e
mulheres. Por outro lado, os meus filhos foram sempre abertos a tudo,
contei-lhes sempre tudo. E os meus netos, quatro rapazes, foram criados da
mesma maneira, falam comigo de tudo.
"Tenho a obrigação de ser uma mulher feliz, tenho
uns filhos e netos extraordinários, uma irmã maravilhosa, uma casa que comprei
com o meu dinheiro e o meu trabalho. Tenho as minhas coisas e memórias ganhas
por mim, nada me foi dado. As condecorações, os prémios, tudo isso conquistei
com o meu trabalho "
Como é que se sente esta mulher depois de ter passado por
isso tudo?
Tenho a obrigação de ser uma mulher feliz, tenho uns filhos e netos
extraordinários, uma irmã maravilhosa, uma casa que comprei com o meu dinheiro
e o meu trabalho. Tenho as minhas coisas e memórias ganhas por mim, nada me foi
dado. As condecorações, os prémios, tudo isso conquistei com o meu trabalho e,
claro que tive a ajuda de duas coisas fundamentais: os poetas que escreveram
para mim e o público. Não fiz tudo sozinha, tive essa sorte. Vivo
tranquilamente, tenho 83 anos, saúde, tenho os meus achaques. Falo com os meus
filhos todos os dias. Só tenho que agradecer o que a vida me deu.
Qual foi o pior momento a nível profissional?
Quando perdi a voz, foi terrível, precisava de fazer qualquer coisa. Trabalhei
num escritório, também vendi bonecos. Aquela enxada tinha acabado e eu tive que
arranjar outras enxadinhas.
Sentia que a olhavam de outra forma pelas atitudes que
tomou?
Nunca me preocupei muito com isso, mas sim. Por exemplo, quando cantei a
Desfolhada, um dos versos dizia: "Quem faz um filho fá-lo por gosto".
Foi um escândalo. O país caiu, iam-me matando, fizeram-me tudo o que se possa
imaginar. Depois a Desfolhada tornou-se quase um hino nacional.
A Simone não foi a primeira escolha para levar essa
canção ao Festival.
Não, fui a quarta escolha. As outras mulheres não a quiseram cantar por causa
desse verso, uma delas foi a minha querida Madalena Iglésias.
Com quem diziam existir uma grande rivalidade.
Embora sempre tivessem dito que nos dávamos muito mal, tenho o maior respeito
pela memória dela. Aliás, quando foi o meu espetáculo dos 50 anos de carreira,
chamei-a para cantar e dei-lhe todo o espaço que ela merecia. Convivi durante a
minha carreira com muitas pessoas, claro que tenho estima e admiração por todas
elas.
Sente-se uma referência para as mulheres portuguesa?
Julgo que sim, sou muito bem tratada não só por todos os portugueses como pelo
meio artístico, agradeço a todos profundamente e com o maior respeito.
E o futuro?
Estou preparada para ser feliz, viver bem este confinamento, ler, ouvir música,
ver televisão. Faço renda. Tive uma fase, linda, maravilhosa, agora é outra. Só
tenho que aprender a viver com esta idade, com as minhas rugas e os meus
achaques.
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